terça-feira, 9 de julho de 2024

Fome não é destino inevitável, mas escolha política

A fome não é um fenômeno natural, mas um reflexo de escolhas políticas e econômicas. No Brasil, a coexistência de um agronegócio influente e milhões de pessoas em insegurança alimentar é a prova certa de que o sistema alimentar atual é falho e excludente. Diante desse cenário, iniciativas como as Cozinhas Solidárias surgem como um ato de resistência e um farol de esperança, mas não podem ser vistas como solução definitiva.

Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan) revelam que, em 2022, mais de 33 milhões de brasileiros viviam em situação de insegurança alimentar, ou seja, não tinham acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente. Esse número representa um aumento significativo em relação aos anos anteriores e evidencia o agravamento da crise alimentar no país.

•        Papel da ciência e da sociedade civil

A ciência e a sociedade civil têm um papel fundamental na construção de um sistema alimentar mais justo e sustentável. Pesquisas como as realizadas pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) são essenciais para entender as causas da insegurança alimentar e os impactos na saúde da população, fornecendo subsídios para a formulação de políticas públicas mais eficazes.

A sociedade civil, por sua vez, tem se mobilizado para denunciar as desigualdades do sistema alimentar; promover a agroecologia e a soberania alimentar; e pressionar o governo por políticas públicas que garantam o direito à alimentação adequada para todos. Iniciativas como o Observatório Brasileiro de Conflito de Interesses em Alimentação e Nutrição buscam monitorar e denunciar a influência da indústria alimentícia na formulação de políticas públicas, contribuindo para a construção de um sistema alimentar mais transparente e democrático.

•        Cozinhas Solidárias

As Cozinhas Solidárias representam uma resposta comunitária à crise alimentar. Inspiradas por movimentos globais e iniciativas locais, essas cozinhas são espaços onde alimentos são preparados e distribuídos gratuitamente para quem precisa. Elas não apenas combatem a fome, mas também promovem inclusão social e solidariedade comunitária. Por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que já distribuiu milhões de refeições desde sua criação, mostra a força das ações coletivas na mitigação da fome.

Exemplos nacionais, como as iniciativas apoiadas pelo Fundo Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira e o Plano Estratégico de Transição para a Agricultura Regenerativa Orgânica em Lagoa do Sino, entre outras organizações da sociedade civil, mostram que é possível promover a soberania alimentar indígena e de outras comunidades tradicionais por meio de modelos participativos e sustentáveis. Elas oferecem um espaço de acolhimento e convivência, onde as pessoas podem compartilhar histórias, trocar experiências e construir redes de apoio mútuo.

A consolidação de experiências institucionais é essencial para combater o conflito de interesses em alimentação e nutrição. O Congresso Brasileiro de Nutrição (Cobran) 2024 destaca a importância de criar um ambiente livre de influências corporativas para garantir que políticas alimentares sejam focadas no bem-estar público. O evento tem sido fundamental para discutir como as políticas alimentares podem ser moldadas para servir melhor a população, eliminando influências que comprometem a saúde pública.

•        Desafios para a soberania alimentar

Apesar dos avanços representados por essas iniciativas, a construção desse sistema ainda enfrenta muitos desafios. Um dos principais é o acesso à terra, que se torna cada vez mais difícil para pequenos agricultores e comunidades tradicionais devido à concentração fundiária e à expansão do agronegócio. O Fundo Fica tem promovido discussões sobre formas de incentivar e proteger os bons usos da terra a longo prazo, destacando a importância de políticas agrárias que favoreçam pequenos produtores e comunidades tradicionais.

Outro desafio é o combate aos lobbies da indústria alimentícia, que influenciam a formulação de políticas públicas e a regulação do setor, muitas vezes em detrimento da saúde da população. Investigações do The Intercept Brasil revelaram que a indústria de alimentos utiliza táticas de desinformação e manipulação para promover produtos e interesses, mesmo quando eles são prejudiciais à saúde pública. O conteúdo do Intercept detalha como essas empresas financiam pesquisas que minimizam os impactos negativos de seus produtos e fazem lobbies agressivos para impedir regulamentações mais rígidas.

•        Política-eleitoral

No dia 11 de junho, pré-candidatos e movimentos sociais se reuniram em uma oficina online para discutir o combate à fome e a segurança alimentar nas eleições municipais de 2024. O evento contou com a participação de lideranças como Eró Silva, do MST; Kiko Afonso, da Ação da Cidadania; Wesley Teixeira, da Coalizão Negra por Direitos; e a Bancada das Mulheres Amazônidas. Durante a oficina, foram debatidas propostas e diretrizes para a elaboração de programas eleitorais, com foco em ações inovadoras e eficientes para enfrentar a fome nas cidades.

A dinâmica da oficina incluiu uma rodada de falas iniciais dos expositores, seguidas por um diálogo aberto com os participantes, no qual foram compartilhadas propostas e questões pertinentes. As perguntas orientadoras foram: “Quais são os focos prioritários para a ação nas cidades em um ano de eleições municipais?” e também “Quais são as boas práticas e referências de administrações municipais inovadoras na agenda de combate à fome e segurança alimentar?”.

Após reflexões, juntamente com participantes da Rede Ypykuéra, as lideranças reforçaram a importância de incluir nas agendas públicas o campo de sistemas alimentares e combate à fome, pela defesa de um projeto de país que coloque a alimentação como um direito humano fundamental, e não como mercadoria.

Enquanto isso, o eleitorado deve estar atento às propostas que visem fortalecer a agricultura familiar, promover a agroecologia e assegurar a distribuição justa de alimentos. Temos provas dentro de “nossas casas” de que políticas que garantam o acesso à terra para agricultores familiares e comunidades tradicionais são essenciais para construir um sistema alimentar eficaz.

 

¨      Pescadores protestam por justiça aos atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP

Os atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão, crime cometido pela Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce em novembro de 2015, vão distribuir três toneladas de um peixe chamado valinha, em frente à Assembleia Legislativa. A manifestação será nesta quarta-feira (10), durante a audiência pública “Os impactos e a revitalização da Bacia do Rio Doce”, quando serão discutidos os impactos do crime socioambiental e a necessidade de reparação, com a participação dos atingidos no processo de repactuação em curso.

A audiência pública será realizada pela Comissão Parlamentar Interestadual de Estudos para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (Cipe Rio Doce), puxada pelo gabinete da deputada estadual Janete de Sá (PSB), atual presidente do colegiado.

O presidente do Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes), João Carlos Gome da Fonseca, o Lambisgoia, afirma que a repactuação está acontecendo “a portas fechadas”, com a Renova, Ministério Público Federal (MPF), Governo Federal, os governos do Espírito Santo e Minas Gerais, e as Defensorias Públicas de ambos os estados, mediados pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região.Embora o MPF e as defensorias atuem em defesa dos direitos das comunidades, os próprios atingidos cobram participação ativa da repactuação.

“Ninguém melhor do que os atingidos para saber os nossos problemas, a nossa realidade. Queremos participar para saber o que está se passando. Está todo mundo com medo, pois as consequências do crime vão ficar e os atingidos têm que ser indenizados por isso”, cobra Lambisgoia.

O pescador informa que na repactuação é discutida a possibilidade de pagamento de uma indenização de cerca de R$ 140 bilhões por parte das empresas, a serem destinados para os governos federal e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, o que não dá garantia de que o recurso chegará aos atingidos. “O que vão fazer com esse dinheiro? Onde está o atingido nessa história? Tem gente que foi atingida e ainda não foi reconhecida”, aponta Lambisgoia.

Ele destaca que até hoje há pontos nos quais os trabalhadores estão impedidos de pescar, como na zona 58, região de Regência, em Linhares, norte do Estado, na qual os rejeitos de minério desembocaram. Além disso, para reconhecimento do pescador como atingido, a Renova “impõe limites que não existem”, como a criação de categorias dentro da profissão, a exemplo das de pescado formal, pescador de fato e pescador de subsistência, sendo que, explica Lambisgoia, há somente duas categorias: pescador artesanal, com cadastro no Governo Federal, e pescador profissional, cadastrado na Capitania dos Portos.

Outra pauta que continua urgente é a grave contaminação da água, do pescado e outros alimentos ao longo de toda a bacia do Rio Doce e de todo o litoral capixaba, como bem confirmou o último relatório da Aecom do Brasil, perita judicial oficial do caso.

Atingidos, principalmente o litoral norte capixaba, organizam ônibus que sairão de várias cidades para ir à Assembleia nesta quarta, fora as pessoas que irão de carro próprio. Em Minas Gerais, os atingidos também se organizam para vir ao Estado somar forças com os capixabas. A pescadora e ilheira Joelma Fernandes Teixeira, de Governador Valadares, afirma que sairão ônibus de municípios mineiros como Aimorés e Rio Doce. “Queremos reivindicar nossos direitos. A repactuação, ao nosso ver, é um mistério, tem que ter transparência”, defende.

Joelma lamenta a falta de punição para a Samarco/Vale-BHP. “São nove anos de impunidade. Queremos justiça. Se a gente matar um tatu para comer, a gente vai preso, mas a Vale comete um crime, mata a flora, mata a fauna, um rio inteiro, tira as pessoas de suas casas, e não acontece nada. A pesca, biblicamente, é a profissão mais antiga do mundo. Respeitem os pescadores e ilheiros”, protesta.

<><> Avanços

Os atingidos tiveram alguns avanços recentemente, como decisões judiciais recentes favoráveis aos atingidos que foram prejudicados pelo Novel – sistema simplificado de indenizações da Fundação Renova, reconhecidamente com cláusulas ilegais de quitação geral de danos – e pelo não cumprimento da Deliberação 58/2017 do Comitê Interfederativo (CIF), que obriga a inclusão de todas as comunidades atingidas nos programas de compensação e reparação de danos da Renova, desde a Praia de Carapebus, na Serra, até Conceição da Barra.

O avanço das ações internacionais, em Londres e na Holanda, também pode ser considerado um fator de pressão às mineradoras, para que cedam e fechem logo um acordo, diante das negativas recentes dos governos.

 

Fonte: Brasil de Fato/Século Diário

 

Nenhum comentário: