terça-feira, 2 de julho de 2024

Fim da boa-fé no comércio de ouro reduz atividade garimpeira declarada na Amazônia

O FIM DA CHAMADA “regra da boa-fé” no comércio de ouro no Brasil, apontada por especialistas como uma das principais facilitadoras do contrabando do minério precioso no país, levou a uma redução drástica nos volumes declarados de ouro retirado de garimpos um ano após sua implementação – sinalizando que lavras garimpeiras legais estavam sendo usadas para esquentar ouro produzido irregularmente. É o que revela um levantamento exclusivo feito pela colaboração internacional Opacidade Dourada: o mecanismo do tráfico de ouro latino-americano, liderada pela organização de jornalismo investigativo do Peru Convoca, e que tem a participação da Repórter Brasil e de outros veículos da Colômbia, do Equador e da Venezuela.

Outra consequência da mudança foi a queda nos volumes de exportação do minério pela cidade de São Paulo, onde estão sediadas as principais Distribuidoras de Valores Mobiliários (DTVMs). Estas são as instituições autorizadas pelo Banco Central a adquirir e revender o ouro proveniente de garimpos da Amazônia, e eram apontadas como as principais beneficiadas pela antiga norma por quem acompanha de perto a cadeia produtiva do ouro no país. “A presunção de boa-fé institucionalizou a lavagem de ouro no Brasil. Graças ao escudo jurídico garantido por esta regra, não eram os garimpeiros que se encarregavam da lavagem, mas sobretudo os compradores, ou seja, as DTVMs e empresas comerciais, conforme apontaram dezenas de investigações”, explica Rodrigo Oliveira, pesquisador e servidor do Ministério Público Federal (MPF) no Pará.

A redução nos volumes de ouro declarado com origem no garimpo legal e nas exportações formais, entretanto, não significa que a atividade ilegal cessou. As cicatrizes de mineração dentro de terras indígenas – onde essa atividade é completamente vetada – visualizadas através de imagens de satélite seguem aumentando, ainda que em velocidade menor. É o que mostra um levantamento inédito do Earth Genome, que mantém a plataforma Amazon Mining Watch em parceria com o Pulitzer Center. Os dados acendem um alerta de que os meios de lavagem de minério ilegal podem estar mudando. Recentemente, a Repórter Brasil revelou que fiscais da Receita Federal identificaram 5 quilos de ouro em pó não declarados, misturados a uma carga de 15 toneladas de carvão ativado que acabou retida no Porto de Santos (SP) sob suspeita de ilegalidade no comércio do minério precioso.

•           Em um mês, ouro extraído de garimpo caiu 50%

Em 5 de maio de 2023, o Supremo Tribunal Federal derrubou a validade do parágrafo 4º do artigo 39 da Lei 12.844/2013, a chamada “regra da boa-fé”. Ela permitia a compra e venda do minério com base apenas nas informações prestadas por garimpeiros na hora da venda, reduzindo a responsabilidade das DTVMs sobre a origem da matéria-prima.  A decisão do pleno do STF dava prazo de 90 dias para o governo federal se adaptar à mudança, que passou a valer a partir de agosto. Naquele mês, garimpos legais do Brasil declararam haver produzido 1,15 tonelada de ouro – volume que reduziu para 530 quilos em setembro, 50% a menos do que no mês anterior. Até maio de 2024, a produção declarada cairia 73% em comparação com o mesmo período antes da mudança na legislação. Isso em meio a uma alta no preço do ouro – em março, o metal precioso atingiu a maior cotação da história –, o que costuma estimular a exploração do minério. A redução da produção garimpeira contabilizada nos registros oficiais fica ainda mais evidente se comparada à produção de ouro industrial no mesmo período, que apresentou um aumento de 12%.

Lavra Garimpeira ou garimpo é a exploração do ouro em áreas superficiais, na terra ou em leito de rios, com separação do ouro usando mercúrio. Já Lavra Industrial é a exploração majoritariamente feita em minas subterrâneas, com utilização de maquinário para a separação do ouro. O número de garimpos declarando produção também despencou após o fim da vigência da “regra da boa-fé”. Eles eram 344 em janeiro de 2023, e apenas para 97 no mesmo mês de 2024. Além do fim da vigência da “regra da boa-fé”, outras medidas de controle recentes ajudaram na mudança de cenário, como a adoção da nota fiscal eletrônica no comércio do ouro.

“Com a instituição da nota fiscal eletrônica do ouro e as mudanças recentes na legislação, a ANM passará a dispor das informações fiscais dos empreendimentos minerários”, observa a Agência Nacional de Mineração (ANM), em nota enviada à Repórter Brasil. “Dessa forma, há um direcionamento mais assertivo das fiscalizações futuras das PLGs [Permissões de Lavras Garimpeiras]”, conclui a agência reguladora.

Procuramos a associação representante das principais DTVMs do país, a Anoro (sigla para Associação Nacional do Ouro), para que a entidade pudesse oferecer seu ponto de vista a respeito da queda na compra de ouro de garimpos. Mas não recebemos resposta para nossas perguntas. O espaço permanece aberto à manifestação.

•           DTVM suspensa volta à ativa e reduz compras

As quatro operações de garimpo que mais declararam produção de ouro até o fim da “regra da boa-fé”, em agosto de 2023 – e encerraram suas atividades desde então – venderam ouro para um mesmo comprador: a empresa Fênix DTVM, com sede em Cuiabá, em Mato Grosso. Em novembro do ano passado, a Fênix DTVM chegou a ter suas atividades suspensas pela Justiça Federal por suspeita de envolvimento em um esquema de esquentamento de ouro ilegal investigado pela PF.  A instituição financeira conseguiu revogar a medida judicial em dezembro do ano passado e voltou à ativa. O volume de negócios, entretanto, é bem mais modesto. Em março de 2024, a empresa declarou a compra de 201 kg de ouro de garimpos, quantidade bem abaixo da uma tonelada de ouro adquirida no mesmo período no ano passado.

Em nota, a empresa diz que parou de comprar ouro dos quatro garimpos “em decorrência de procedimentos internos de mitigação de riscos e prevenção à lavagem de dinheiro”. E afirma que o fim da regra da boa-fé não impactou suas atividades, “pois nunca foi utilizada como alicerce de nossas operações”, que são “pautadas em procedimentos robustos de compliance e gerenciamento de riscos”.

•           Menos pontos de compras e queda nas exportações

Depois que a “regra da boa-fé” foi derrubada, por decisão do STF, o número de postos de compra de ouro das DTVMs caiu, segundo um levantamento feito por Bruno Manzolli, do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Em outubro de 2021, havia 94 postos em atividade, sendo 23 apenas em Itaituba. Hoje, temos 46 no país e somente um em Itaituba”, informa o pesquisador.

Outro desdobramento verificado pelo especialista é a redução da exportação do ouro por São Paulo, onde ficam as sedes das DTVMs. “Entre setembro e dezembro de 2023, após o fim da boa-fé, houve uma redução de 96% em comparação com a média dos quatro anos anteriores, para o mesmo intervalo mensal”, atesta Manzolli.

Servidor do MPF em Santarém, responsável por atender a região do Médio Tapajós, onde está Itaituba – também conhecida como “cidade-pepita” por sua relação com o garimpo –, Rodrigo Oliveira lembra que uma nova normativa do Banco Central, publicada em 2 de abril deste ano, pode reduzir ainda mais a atuação das DTVMs. Essa outra regra define situações em que a origem do ouro declarado é considerada suspeita, como quando o pagamento ocorre em espécie ou através de terceiros, e também quando não é informada a lavra de origem. “Caso efetue a compra mesmo diante das condições expressamente previstas como suspeitas, ficaria mais evidente a má-fé das DTVMs. A minha hipótese é de que a normativa provocará uma redução ainda maior nas operações das DTVMs, atingindo patamares mais compatíveis com o tamanho do mercado legal de ouro”, aposta Oliveira.

 

•           Metade do ouro exportado por países da América do Sul tem origem desconhecida

Três mil toneladas de ouro exportadas por Brasil, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela entre os anos de 2013 e 2023 não possuem origem conhecida. Isso representa a metade de todas as exportações declaradas pelos países (5,9 mil toneladas) e é um sinal de que a mineração ilegal está aumentando seus volumes de exportação como nunca antes. O levantamento inédito, com base em dados públicos dos cinco países, é parte da colaboração jornalística “Opacidade Dourada: mecanismos do tráfico de ouro latino-americano”, liderado pelo veículo jornalístico peruano Convoca e integrado pela Repórter Brasil e por outros meios latinoamericanos de imprensa.

A maior parte do desequilíbrio entre produção e exportação de ouro nesses cinco países (99%) ocorre no Peru, onde as vendas ao exterior na década somam 4,4 mil toneladas, embora o país tenha registrado a produção de apenas 1,3 mil toneladas.

A Colômbia vem em seguida, tendo exportado 59 toneladas de ouro a mais do que sua produção declarada de 559,81 toneladas no período, enquanto o Equador registra um excesso de 12 toneladas exportadas em relação à produção (69 toneladas) entre 2017 a 2023, anos que possuem dados confiáveis para a análise.

No Brasil e na Venezuela há anos em que há mais exportações do que produção, mas os números divulgados por ambos países possuem lacunas que impedem uma análise precisa. No Brasil, foi possível analisar o período entre 2015 e 2021, quando a produção excedeu as exportações por 34 toneladas. Na Venezuela, o balanço é de 52,6 toneladas a mais produzidas do que o total exportado entre 2013 e 2023. No entanto, em ambos países a mineração ilegal está ganhando terreno.

A investigação transnacional revela que além o apetite provocado pelo aumento do preço no mercado internacional, a falta de rastreabilidade tem sido o ponto cego das políticas públicas na região, e também pesa a incapacidade das autoridades de controlar a lavagem do metal precioso. “Outro fator é a atitude geral dos governos em relação à mineração artesanal e de pequena escala. Vemos como as políticas podem influenciar a tolerância em relação a elas”, explica Luca Maiotti, analista de políticas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “Por trás disso, há fatores estruturais, como a baixa presença do governo em áreas remotas de mineração de ouro, altos níveis de informalidade econômica e aumento dos preços do ouro devido a choques geopolíticos e econômicos”, completa. Favorecido pela falta de controle e de políticas adequadas de fiscalização, o ouro ilegal segue caminhos agora desvendados por esta investigação conjunta até ser exportado para outros continentes, ocultando sua origem ilegítima. Parte desse ouro acaba em joalherias de luxo na Europa, em destinos pouco auditados, como Dubai, Turquia e Índia, e nos depósitos de conhecidas fábricas de tecnologia nos Estados Unidos.

•           Brasil passa de lavador a fornecedor de ouro ilegal

Dados da plataforma Amazon Mining Watch revelam que o Brasil concentra a maior parte da degradação ambiental causada pela mineração em toda a Amazônia sul-americana. Ao todo, a área afetada na floresta tropical aumentou de 9,7 mil km² em 2018 para 13 mil km² em 2023. Mas, apenas no Brasil já ultrapassa 5,9 mil km², representando 45% do total. Além do próprio mineral, extraído muitas vezes de forma ilegal, o Brasil sempre foi um conhecido lavador de ouro irregular proveniente de países vizinhos. Segundo apuraram os jornalistas do Consejo de Redacción, garimpeiros colombianos costumam contrabandear seus carregamentos ilegais pelo rio Puruê, na fronteira com o Brasil, onde a presença de guerrilheiros colombianos gera alarme e até mesmo confrontos com a Marinha. Nessas zonas de conflito, o mineral é usado como moeda para comprar outros produtos contrabandeados.

Já o ouro venezuelano ilegal consolidou seus pontos de venda no Brasil, na Colômbia e na República Dominicana, de acordo com as investigações de Armando.Info para esta colaboração jornalística. Porém, a queda de 70% nos volumes de ouro declarados por garimpos legais no Brasil – dado revelado pela investigação da Repórter Brasil no projeto – leva as autoridades a suspeitar que o país deixou de ser um ponto de lavagem de ouro para se tornar um fornecedor de ouro ilegal. “Se a regulamentação não for aprimorada, o novo cenário não levará a uma redução da mineração ilegal, mas apenas a uma maior clandestinidade”, aponta Rodrigo Oliveira, pesquisador e servidor do Ministério Público Federal (MPF) no Pará.

Investigações recentes da Polícia Federal apontam para uma aproximação entre facções criminosas e garimpos ilegais de ouro na Amazônia nos últimos anos. Especialistas apontam que o crime organizado tem se aproveitado das rotas aéreas e fluviais utilizadas para o tráfico de cocaína entre o Brasil e os países vizinhos para transportar também o ouro ilegal, como revela a série Narcogarimpos, publicada pela Repórter Brasil em 2023.

•           Peru: no epicentro da ilegalidade, processadoras evadem fiscalização

No Peru, onde a exportação de ouro excedeu em três vezes o volume da produção declarada, jornalistas do Convoca foram à campo e descobriram plantas de processamento aurífero que exportam mais do que declaram como produção às autoridades, evadindo os mecanismos de controle adequados. Um exemplo é a usina de processamento Laytaruma – a quarta maior exportadora de ouro do Peru, com mais de 1,5 bilhão de dólares em exportações para países como Estados Unidos, Suíça, Emirados Árabes Unidos e Turquia. Essa unidade está registrada na categoria de mineração de pequeno porte, o que permite que a fiscalização seja feita por autoridades regionais, e não pelos supervisores do governo central. No entanto, os repórteres identificaram a chegada de carregamentos com cerca de 650 toneladas por dia à Laytaruma, um volume muito superior às 350 toneladas que são o limite de processamento de plantas de pequeno porte.  A investigação identificou ainda que os documentos exigidos dos transportadores de ouro podem ser obtidos com muita facilidade, o que cria condições para que o ouro ilegal seja misturado à carga legal. Os caminhões levam o minério para as usinas de beneficiamento, onde é convertido em barras para ser exportado para empresas internacionais de refino.

•           Presença do crime organizado é desafio adicional na Colômbia

Na Colômbia, os territórios explorados ilegalmente estão sendo disputados a sangue e fogo por grupos armados como o Exército de Libertação Nacional, o Clã do Golfo ou os dissidentes das FARC. Eles lucram e se financiam com ouro sujo. “A tensão entre os povos indígenas e a criminalidade está presente. É muito desesperador”, diz o pesquisador suíço Mark Pieth, ex-presidente do Instituto de Governança da Basileia e autor do livro “Gold Laundering” (Lavagem de Ouro).  Essas redes criminosas falsificam títulos de mineração, certificados de origem do mineral, registros de mineiros de subsistência e a quantidade de ouro extraída, explica Frédéric Massé, codiretor da Rede de Monitoramento do Crime Organizado na América Latina. Um exemplo é o que aconteceu no noroeste da Colômbia, onde um único indivíduo comprou bancos de dados de beneficiários de programas sociais e registrou 5.000 deles como mineradores independentes. Dessa forma, legalizou mais de 7,5 toneladas de ouro ilegal para serem enviadas aos Estados Unidos, aos Emirados Árabes Unidos e à Índia.

A Colômbia também se tornou um importador de ouro ilegal, segundo a investigação de Consejo de Redacción para esta série de reportagens. Suas usinas de processamento recebem remessas ilegais e removem os vestígios do mercúrio usado na extração.

•           Boom de mineração artesanal no Equador acende alerta

No Equador, a mineração em pequena escala, mais propensa à ilegalidade, ganhou terreno nos últimos anos. Entre 2020 e 2023, suas exportações cresceram 238%. No mesmo período, 10 novas empresas foram criadas e exportaram US$ 530 milhões, conforme revelado nesta investigação. A Organização dos Estados Americanos (OEA) afirma que “os comerciantes e exportadores, e “em particular as novas empresas”, são o “principal ponto de entrada do ouro ilícito nos mercados legais, ocultando a origem ilícita, muitas vezes antes de vendê-lo a refinadores estrangeiros”. O método de lavagem mais usado é a falsificação de notas fiscais, em que “falsos mineradores artesanais ou empresas de fachada são nomeados para justificar a origem do ouro extraído ilegalmente”.

O ecossistema de crime e violência também se expandiu no país, diz a Fundação Ecociencia. Um exemplo são grupos de indígenas Achuar, da Amazônia equatoriana, que estão minerando com maquinário caro, cujo transporte para essa área remota envolve um investimento pesado. “Alguém está colaborando com eles para realizar essa atividade. E dada a proximidade com a fronteira e esses contextos transfronteiriços, sugere-se que essa ajuda venha de movimentos criminosos de tráfico de drogas e outras atividades”, conclui Ecociencia. O registro de concessões de mineração está fechado no Equador há seis anos devido aos protestos de grupos indígenas, que exigem uma lei de consulta prévia. Mas isso não impede a exploração dos solos amazônicos: na bacia do rio Punino 784 hectares de floresta foram perdidos somente em 2023, apesar de ser uma área sem acesso rodoviário. Grupos criminosos colombianos e equatorianos operam no local e devastaram a selva para extrair ouro.

•           Ouro legal responde por apenas 20% do mercado na Venezuela

Na Venezuela, a exportação de ouro é monopólio do Banco Central. Entretanto, estima-se que o “ouro legal” represente apenas 20% do total extraído a cada ano – fora dessa fatia, o tráfico de ouro envolve máfias espalhadas em muitos níveis da sociedade, incluindo funcionários públicos, militares e guerrilheiros colombianos, de acordo com o estudo da OCDE Gold flows from Venezuela. “O regime de [Nicolás] Maduro não está desmantelando a mineração irregular”, diz Cristina Burelli, diretora da SOS Orinoco. Segundo esta ativista, os militares estão ganhando terreno no negócio ilícito. “É uma tendência em diferentes partes da Venezuela. Por um lado, as forças armadas removem os líderes que controlam as minas, mas os substituem por pessoas com igual mentalidade. E a mineração continua da mesma forma e está se expandindo”, conclui.

Com as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos ao setor de ouro na Venezuela, o Banco Central teve que mudar seus destinos de exportação. Em 2021 e 2022, o Líbano foi o destino de mais de 90% das vendas do metal precioso da Venezuela – o que leva organizações não governamentais a alertarem para os riscos de lavagem de ouro, já que este é um país de trânsito, que compra e revende o mineral.

•           Legislação negligente é ponto em comum entre países

No Brasil, os garimpos vivem uma expansão alarmante, um fenômeno que segundo Fabiano Bringel, pesquisador da Universidade do Estado do Pará, é fruto de “uma remoção gradual dos obstáculos legais formais que, de certa forma, disciplinavam essa atividade”. Isso ocorreu especialmente após o impeachment da ex-presidente Dilma Roussef (2016) e com a chegada ao poder de Jair Bolsonaro (2019-2022). Por exemplo, em 2022, foi aprovado um suposto “aprimoramento” do Código Brasileiro de Mineração que flexibiliza a concessão de licenças para garimpeiros sob o argumento de que a mineração artesanal e de pequena escala está sendo incentivada. Com isso, os pedidos de exploração mineral que não forem respondidos pela Agência Nacional de Mineração em 60 dias, serão automaticamente considerados como aceitos.

Bringel comenta que há um “contorcionismo regulatório recente” que acabou com conceitos que diferenciavam a mineração legal do garimpo ilegal. “Há uma série de atividades que, por sua natureza, sequer poderiam ser consideradas garimpo, e que, apesar disso, continuam se valendo de normas menos protetivas”, explica.

Assim, barcos com equipamentos sofisticados e maquinário pesado são vistos nessas zonas de exploração. Outra norma controversa define o limite de concessão de 50 hectares por garimpeiro individual, 1.000 hectares por cooperativa ou até 10.000 hectares se a cooperativa operar na Amazônia.

No Peru, o poder político também favoreceu diretamente a mineração informal. Desde 2002, existe uma Lei de Formalização que tem como objetivo fazer com que os mineiros artesanais e de pequena escala regularizem sua situação e se adaptem aos padrões ambientais. O prazo inicial para adesão era de um ano, mas ele foi prorrogado tantas vezes que, 22 anos depois, ainda é possível proceder a regularização. E recentemente surgiu uma nova iniciativa para prorrogar mais uma vez essa data limite até 2027. Como no Brasil, esses registros formais de mineração também foram usados para como lavras fantasmas que registram a produção apesar de estarem inoperantes.

Na Colômbia, para resolver as lacunas na cadeia produtiva do ouro, o Congresso aprovou uma regulamentação que obriga os comerciantes de ouro e outros metais preciosos a aplicar critérios de due diligence. Embora tenha entrado em vigor em julho de 2022, quase dois anos depois a medida ainda não foi implementada porque o Ministério de Minas não emitiu diretrizes específicas para regulamentar o processo.

A indecisão política também afeta os processos de fiscalização no Equador, justamente quando a incidência desse crime ambiental está em seu auge. Há quatro anos, o então presidente Lenín Moreno decidiu fundir os três órgãos de supervisão dos setores de mineração e energia em uma única instituição – uma operação fracassada, em que muitos recursos foram perdidos, na visão do ex-ministro de Minas do país, Fernando Benalcázar, entrevistado para esta série.

Em maio deste ano, o atual presidente, Daniel Noboa, separou novamente as agências, e as competências da Agência de Regulação e Controle de Mineração foram reestabelecidas. Em 2019, o órgão tentou coletar amostras de laboratório para corroborar a pureza e o peso declarados pelos comerciantes, na tentativa de identificar negócios ilegais. Mas a medida provocou a ira do setor e acabou revertida, com os controles voltando a ser menos rigorosos.

•           Índia e Emirados Árabes são os novos ‘players’ do mercado global

Nos últimos anos houve uma reconfiguração do mercado internacional de ouro, com o surgimento de dois novos grandes compradores: a Índia e os Emirados Árabes Unidos (EUA), que estão entre os principais destinos do ouro exportado oficialmente do Peru, Equador, Brasil e Colômbia. “Por meio da lavagem, o ouro sai do Peru e não vai diretamente para a refinaria nos Estados Unidos ou na Suíça. Ele vai para Dubai (EUA), vai para a China. E sabemos que nesses dois países eles não levam as regras tão a sério”, explica Livia Wagner, especialista da Iniciativa Global Contra o Crime Transnacional, uma organização internacional que promove estratégias para combater o crime organizado.

A Suíça continua sendo o principal demandante de ouro do mundo, com importações no valor de US$ 94 bilhões em 2022, de acordo com o Observatório de Complexidade Econômica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Ao contrário do que se poderia imaginar, seus fornecedores de ouro mais importantes naquele ano não eram latino-americanos, mas os Estados Unidos (22,4%), os Emirados Árabes Unidos (8,7%), Burkina Faso (6,2%), África do Sul (5,9%) e Rússia (3,9%). “Originalmente, a Suíça tinha 70% do ouro do mundo. Agora isso caiu para cerca de 50%, porque há outros refinadores, como Dubai. Mas muito pouco ouro fica na Suíça”, explica Mark Pieth. Na verdade, esse país europeu é, ao mesmo tempo, o maior exportador mundial do metal dourado (US$ 101 bilhões em 2022), pois o minério que ele refina – ou seja, purifica – é reexportado para o Oriente Médio, a Índia ou a China, onde há uma próspera indústria de joias.

Assim, o ouro lavado na América do Sul engrossa as carteiras dos principais atores globais, adorna as vitrines do setor de luxo e é guardado nos cofres dos bancos centrais das principais economias. A essa altura, as cicatrizes deixadas a milhares de quilômetros de distância nos ecossistemas e nas vidas humanas não são mais visíveis. De longe, é uma questão de perspectiva.

 

Fonte: Reporter Brasil

 

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