Energia limpa: o que significa o novo
avanço científico na fusão nuclear?
Por mais de 60 anos,
os cientistas perseguiram um dos desafios físicos mais difíceis já concebidos:
aproveitar a fusão nuclear, fonte de energia das estrelas, para gerar abundante
energia limpa aqui na Terra. Nesta semana, os pesquisadores anunciaram uma
marca histórica neste esforço. Pela primeira vez, um reator de fusão produziu
mais energia do que foi usada para desencadear a reação.
Em 5 de dezembro, uma
série de lasers na Instalação Nacional de Ignição (NIF, na sigla em inglês),
parte do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia (EUA), disparou
2,05 megajoules de energia em um minúsculo cilindro contendo uma pastilha de
deutério e trítio congelados, formas mais pesadas de hidrogênio. A pastilha
comprimiu e gerou temperaturas e pressões intensas o suficiente para causar a
fusão do hidrogênio. Em uma pequena chama que durou menos de um bilionésimo de
segundo, os núcleos atômicos em fusão liberaram 3,15 megajoules de energia –
cerca de 50% a mais do que havia sido usado para aquecer a pastilha.
Embora a conflagração
tenha terminado rapidamente, seu significado perdurará. Há muito tempo que
pesquisadores da fusão procuram obter ganho líquido de energia, o que é chamado
de equilíbrio científico. “Simplificando, este é um dos acontecimentos científicos
mais impressionantes do século 21”, declarou a secretária de Energia dos EUA,
Jennifer Granholm, em um comunicado de imprensa em Washington, DC.
Ao atingir o ponto de
equilíbrio científico, o NIF mostrou que pode atingir a “ignição”: um estado da
matéria que pode facilmente sustentar uma reação de fusão. Ser capaz de estudar
as condições de ignição em detalhes será “um divisor de águas para todo o campo
da fusão termonuclear”, diz Johan Frenje, físico de plasma do MIT cujo
laboratório contribuiu para bater os recordes do NIF.
A conquista não
significa que a fusão seja agora uma fonte de energia viável. Embora a reação
do NIF produzisse mais energia do que o reator usado para aquecer os núcleos
atômicos, ela não gerou mais do que o uso total de energia do reator.
De acordo com Kim
Budil, diretor do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, os lasers exigiam
300 megajoules de energia para produzir cerca de 2 megajoules de energia de
feixe. “Não quero dar a sensação de que vamos conectar o NIF à rede – não é
assim que funciona”, acrescentou Budil. “É um bloco fundamental da construção.”
Mesmo assim, após
décadas de tentativas, os cientistas deram um grande passo em direção à energia
de fusão. “Parece ficção científica, mas eles conseguiram, e o que fizeram é
fantástico”, diz Ambrogio Fasoli, físico de fusão do Instituto de Tecnologia Federal
Suíço em Lausanne (Suíça).
• A faísca da fusão
Embora a fusão e a
fissão nucleares extraiam energia do átomo, elas operam de maneira diferente.
As usinas nucleares de hoje dependem da fissão nuclear, que libera energia
quando se separam átomos grandes e pesados, como o urânio, devido à
desintegração radioativa. Na fusão, no entanto, os átomos leves e pequenos,
como o hidrogênio, fundem-se em outros maiores. No processo, eles liberam uma
pequena parte de sua massa combinada como energia.
Em laboratórios,
provocar a fusão dos núcleos de hidrogênio no hélio requer a criação e
confinamento de um “plasma” – um gás eletricamente carregado, onde os elétrons
não estão mais ligados aos núcleos atômicos – em temperaturas várias vezes mais
altas do que o interior do Sol. Cientistas aprenderam décadas atrás como
desencadear esse processo de forma explosiva dentro de bombas de hidrogênio, e
os reatores de fusão de hoje podem fazer isso acontecer de forma controlada por
instantes fugazes.
Desde o final dos anos
1950 e início dos anos 1960, os reatores de fusão compartilham um objetivo
fundamental: criar um plasma o mais quente e denso possível e, em seguida,
confinar esse material por tempo suficiente para que os núcleos dentro dele
atinjam a ignição. O problema é que o plasma é incontrolável: ele é carregado
eletricamente, o que significa que ele responde a campos magnéticos e gera o
seu próprio campo à medida que se movimenta. Para suportar a fusão, ele precisa
atingir temperaturas realmente impressionantes. No entanto, é tão difuso que
esfria facilmente.
O físico Riccardo
Betti, especialista em fusão nuclear a laser da Universidade de Rochester (Nova
Iorque, EUA), compara o desafio da ignição por fusão à queima de gasolina em um
motor. Uma pequena quantidade de gasolina se mistura com o ar e depois se
inflama com uma faísca. A faísca não é grande, mas não precisa ser: basta
acender uma pequena fração da mistura da gasolina com o ar. Se essa pequena
fração se inflamar, a energia que ela libera é suficiente para incendiar o
resto do combustível.
Em termos de energia
liberada, as reações nucleares têm cerca de um milhão de vezes mais impacto do
que as reações químicas – e são muito mais difíceis de acontecer. Experimentos
de fusão anteriores podem ter alcançado as temperaturas certas, as pressões
certas ou os tempos certos de confinamento de plasma para alcançar a ignição,
mas não todos esses fatores de uma só vez. “Basicamente, a faísca foi gerada,
mas não foi forte o suficiente”, explica Betti.
• Uma pastilha de combustível
O método do NIF para
produzir o combustível nuclear começa com uma pastilha do tamanho de um grão de
pimenta, que contém uma mistura congelada de deutério e trítio, dois isótopos
mais pesados de hidrogênio. Essa cápsula é colocada dentro de um cilindro de
ouro aproximadamente do tamanho da borracha de um lápis, chamada hohlraum, que
é montada em um braço no meio de uma grande câmara perfurada com laser.
Para desencadear a
fusão, o NIF dispara 192 lasers de uma vez no hohlraum, que penetram através de
dois orifícios. Os feixes, então, atingem a superfície interna do hohlraum, o
que provoca que ele cuspa raios-x de alta energia que aquecem rapidamente as camadas
externas da cápsula, e as queima e expulsa para fora.
A parte interna dessa
cápsula se comprime rapidamente quase cem vezes mais densa que o chumbo – o que
força o deutério e o trítio dentro dela a atingirem as temperaturas e pressões
necessárias para a fusão.
Em 1997, a Academia
Nacional de Ciências definiu o que significaria “ignição” para a instalação:
quando a energia de fusão liberada supera a energia dos lasers. A instalação
foi inaugurada em 2009, e atingir esse patamar acabou levando mais de uma
década. Em agosto de 2021, o NIF relatou sua melhor execução experimental até
aquele ponto: 1,32 megajoules de energia de fusão liberada para 1,92 megajoules
de energia de laser inserida.
A corrida de 2021
sinalizou que a ignição poderia ser alcançada dentro do reator NIF. Para
finalmente cruzar o limiar, os pesquisadores do NIF fizeram alguns pequenos
ajustes, que incluíam operar com energias de laser ligeiramente mais altas.
“Qualquer pequena mudança, feita da forma certa, terá mudanças significativas
no resultado”, destaca Frenje.
• O sonho de uma usina de fusão
Apesar de todo o
sucesso do NIF, não seria fácil comercializar esse estilo de reator de fusão.
Betti, o físico da Universidade de Rochester, diz que tal reator precisaria
gerar de 50 a 100 vezes mais energia do que seus lasers emitem para cobrir seu
próprio consumo de energia e colocar energia na rede.
Também teria que
vaporizar 10 cápsulas por segundo, por longos períodos de tempo. No momento, as
cápsulas de combustível são extremamente caras de fabricar e dependem do
trítio, um isótopo radioativo de hidrogênio de vida curta que os futuros
reatores teriam que fabricar no local.
Mas a maioria desses
desafios não é exclusiva do NIF, e os muitos laboratórios e empresas de fusão
do mundo estão lidando com eles. No ano passado, o Joint European Torus (JET),
um reator experimental em Culham, na Inglaterra, estabeleceu um recorde para a
maior quantidade de energia de fusão já liberada durante uma única operação
experimental. Na França está sendo
construído o sucessor do JET, um enorme experimento internacional conhecido
como Iter. E empresas privadas nos Estados Unidos e no Reino Unido construíram
ímãs supercondutores de última geração, que podem ajudar a criar tipos de
reatores menores e mais poderosos.
É difícil dizer
quando, ou mesmo se, esse trabalho produzirá um novo futuro energético. Mas os
pesquisadores de fusão veem a tecnologia como uma ferramenta incrível para a
humanidade – seja daqui a 20, 50 ou 100 anos.
“Quando as pessoas
dizem que a fusão é muito complexa, é verdade, mas quando as pessoas dizem que
a fusão é complexa demais, não é”, enfatiza Fasoli. “Sabemos fazer coisas
complexas… Ir à Lua não é simples. Chegar a esse resultado na fusão não é
simples. E nós demonstramos que podemos fazê-lo. ”
Fonte: National
Geographic Brasil
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