sábado, 20 de julho de 2024

Dengue: por que ignora-se o papel do saneamento?

A indisponibilidade ou precariedade de serviços de saneamento está por trás da incidência de surtos de dengue e outras arboviroses – mas é largamente ignorada no debate público. É o que indicam uma série de estudos publicados no Brasil, que analisaram a situação de dezenas de cidades. Entre os fatores mais preocupantes, estão a irregularidade de abastecimento de água, que obriga moradores a estocarem água, a ausência de esgotamento e falta de planejamento urbano, que empurra a população a terrenos irregulares. Quem mais sofre, os estudos deixam claro, também são os brasileiros mais vulneráveis. E a situação está piorando.

O ano de 2024 começou com números alarmantes de casos de dengue no Brasil. Dados até a semana epidemiológica nº 24, que inclui até a metade do mês de junho, apontaram quase seis milhões de casos prováveis, 3.963 óbitos confirmados, 2.858 óbitos em investigação, 10 estados e 683 municípios com decreto de emergência em saúde pública. A chikungunya também apareceu com casos e óbitos muito maiores do que no ano de 2023. E a febre oropouche, outra arbovirose circulante no país, que era endêmica na Amazônia, mas já está em outros estados, inclusive na região sul do país.

Existem outras doenças transmitidas por mosquitos que podem constituir ameaças de circulação epidêmica no país. Já foram isolados 210 desses tipos de vírus, dos quais 196 foram identificados inicialmente na Amazônia brasileira. Destes, 110 são comprovadamente novos para a ciência e 34 estão associados com infecções humanas.

As altas taxas de incidência das arboviroses nos últimos anos vêm alertando e desafiando pesquisadores, poder público e a sociedade, e causando dor e sofrimento à população – especialmente daquela em situação vulnerável – além de sobrecarregar o setor de saúde. Será mesmo que a única maneira de conter essas doenças é alertando a população a esvaziar seus pneus e tampar caixas d’água?

A indisponibilidade de serviços de saneamento pode contribuir para diversas enfermidades já conhecidas, e também para as arboviroses. Especialistas da ONU3 enfatizam que o acesso à água e ao esgotamento sanitário diminui a prevalência de doenças como a tríplice epidemia que ocorreu em 2016 (dengue, chikungunya e zika). Também adverte que o controle vetorial deve ser adotado como uma política de prevenção e promoção da saúde que não se restrinja unicamente ao combate direto ao mosquito. Isso porque as estratégias mais eficientes e sustentáveis de controle são as melhorias sanitárias – que incluem aumento da cobertura do saneamento básico e redução das desigualdades em saúde.

Arboviroses e saneamento

Em diversos contextos, estudos vêm sugerindo diferentes formas de associação entre variáveis sanitárias relacionadas ao saneamento e a incidência de arboviroses aqui e ao redor do mundo como, dentre outros, no Peru, Tailândia, Filipinas, Paquistão e China.

No Brasil, a falta e/ou irregularidade de serviços de abastecimento de água faz com que a população armazene água e esta variável foi associada com a incidência de casos de dengue em estudos no Recife/PE e no Rio de Janeiro/RJ. Além disso, outros estudos demostraram que a ausência de esgotamento sanitário possibilita o acúmulo de água parada próximo às residências em valas rudimentares, fornecendo condições para manutenção de criadouros de mosquitos vetores conforme estudos em localidades do Acre, no Rio de Janeiro/RJ e em Guanambi/BA.

Existem aproximadamente 155 espécies de Aedes no mundo. A grande capacidade de adaptação do Aedes aegypti ao ambiente urbano é um desafio para muitos pesquisadores em conhecer sua bioecologia e desvendar seus hábitos e comportamentos na natureza e no espaço habitado pelo homem. Esse vetor tem mostrado uma grande capacidade de adaptação a diferentes situações ambientais consideradas desfavoráveis, como por exemplo, larvas encontradas em água poluída e mosquitos adultos em altitudes elevadas.

A infestação domiciliar pelo vetor se faz presente em diversas localidades, mas a letalidade é maior na população economicamente mais vulnerável, com índices de cobertura precários de abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos. Há diversos estudos que demonstram esse fato em localidades como em uma área de favela no Rio de Janeiro/RJ; em Porto Velho/RO; em Oiapoque/AP; na Ilha da Conceição em Niterói/RJ; em São Luís/MA; no Rio de Janeiro/RJ. Estudos específicos em uma comunidade de Fortaleza/CE e na comunidade de Pau da Lima em Salvador/BA apontam os resíduos sólidos descartados irregularmente e encontrados na área peridomiciliar como o principal causador de doenças como a dengue.

Somam-se, ainda, os estudos que enfatizam que as epidemias registradas, em sua maior parte, são causadas pela ineficiência do planejamento urbano e pelo descaso do poder público, afetando a saúde da população. E que, nas áreas periféricas da cidade e dos aglomerados informais, localizados em terrenos inadequados para habitação humana, predominam a falta de higiene e inexistência de condições sanitárias, favorecendo a proliferação de epidemias como em Altamira/PA; em Manaus/AM; em Montes Claros/MG; em Itabuna/BA; em São José do Rio Preto/SP.

Dessa forma, o risco sanitário e ambiental a que a população permanece exposta deve ser tratado prioritariamente, na busca de esforços por se tratar não apenas de uma demanda de grupos de moradores, mas de um direito. Essa foi a reivindicação de pesquisadores em um estudo realizado na Rocinha, no Rio de Janeiro.

Observa-se que os demais eixos que são integrantes do planejamento municipal de saneamento, limpeza urbana e drenagem e manejo das águas pluviais, quando não desempenhados adequadamente, possibilitam a ocorrência de focos do Aedes aegypti. Afinal, de acordo com Cairncross, os mosquitos Aedes se multiplicam também em áreas alagadas e inundadas, e em canais abertos de drenagem de águas pluviais. Assim sendo, torna-se necessário realizar com frequência a limpeza e manutenção desses equipamentos de drenagem nos municípios, especialmente as bocas de lobo, para reduzir os focos destes mosquitos. No entanto, estas atividades são comprometidas, muito em função da falta de recursos humanos e financeiros, aliados à falta de vontade política e desconhecimento das relações existentes entre o saneamento e a ocorrência das arboviroses.

É fundamental salientar que as variáveis sanitárias, unicamente, não explicam totalmente a heterogeneidade das doenças, pois as causas das arboviroses são múltiplas, determinadas por variados aspectos e fatores como as emergências climáticas, mas o acesso adequado ao saneamento constitui um elemento essencial.

Em um evento que aconteceu em abril de 2024, onde a Fiocruz reuniu gestores e pesquisadores para discutir os desafios das arboviroses, a coordenadora de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz, Tânia Maria Peixoto Fonseca, ressaltou a necessidade de ações intersetoriais, reafirmando a importância do saneamento no controle destas enfermidades. “Conhecemos as estratégias para enfrentar os problemas de saúde, mas a infraestrutura não depende apenas de nós”, afirmou. “Temos conhecimento, mas temos falhas na Atenção Básica. Temos conhecimento, mas mesmo assim o manejo vetorial muitas vezes é feito de maneira equivocada. Temos conhecimento, mas mesmo assim a infraestrutura de coleta de lixo, de saneamento e de abastecimento de água em nossas cidades é, em geral, insuficiente”, lamentou Tânia, destacando a importância de trabalho e sinergia entre o poder público e as instituições de ensino e pesquisa.

Não faltam caminhos…

Em um estudo, no qual foi realizada uma análise de conteúdo em oito documentos governamentais de referência que são instrumentos norteadores das políticas públicas de controle das arboviroses no país, concluiu-se que o saneamento não está suficientemente abordado nos instrumentos de enfrentamento às arboviroses – o que pode contribuir para a baixa efetividade de intervenção pública e que, portanto, tal contradição precisa ser superada pelas políticas públicas no Brasil.

Ressalta-se que as políticas públicas voltadas para o controle das arboviroses devem ser intersetoriais e integradas, com base nas características de cada território. Precisam também privilegiar outros modelos que não sejam os verticalizados adotados atualmente pelo poder público, onde a população não tem acesso à informação clara e poderia ser parte mais atuante no processo de minimização do problema. Como questões culturais e sociais influenciam as práticas sanitárias, torna-se imprescindível a participação ativa das comunidades na elaboração destas políticas. Tendo como base os princípios de não-discriminação, participação social, informação, transparência e responsabilização, os diversos grupos sociais devem ser ouvidos e convocados a contribuir com o planejamento das ações. Isso exposto, reafirma-se que a participação da comunidade é parte essencial na construção da política municipal que vise à melhoria do acesso aos serviços de saneamento e, consequentemente, também o controle das arboviroses.

Importante sempre enfatizar que o acesso à água e ao esgotamento sanitário foram reconhecidos como Direito Humano em 2010 pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, e em 2015 o acesso ao esgotamento sanitário foi reconhecido, por sua vez, como um direito independente. A partir desse reconhecimento, os estados devem respeitar, promover e proteger esses direitos tendo como base princípios como não-discriminação, participação social, informação, transparência e prestação de contas. Dessa forma, o referencial teórico do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES) é uma importante ferramenta para regulamentar o uso da água em diversos países, o que pode contribuir para a elaboração e posterior implementação de políticas públicas que sejam mais igualitárias e que promovam a saúde de populações vulneráveis, uma vez que podem contribuir modificando a realidade, por meio do estímulo à participação dos mais diversos grupos nos processos de tomada de decisão.

 

Fonte: Por Josiane Queiroz e Priscila Neves Silva, em Outra Saúde

 

Nenhum comentário: