Dengue: por que ignora-se o papel do
saneamento?
A indisponibilidade ou
precariedade de serviços de saneamento está por trás da incidência de surtos de
dengue e outras arboviroses – mas é largamente ignorada no debate público. É o
que indicam uma série de estudos publicados no Brasil, que analisaram a
situação de dezenas de cidades. Entre os fatores mais preocupantes, estão a
irregularidade de abastecimento de água, que obriga moradores a estocarem água,
a ausência de esgotamento e falta de planejamento urbano, que empurra a
população a terrenos irregulares. Quem mais sofre, os estudos deixam claro,
também são os brasileiros mais vulneráveis. E a situação está piorando.
O ano de 2024 começou
com números alarmantes de casos de dengue no Brasil. Dados até a semana
epidemiológica nº 24, que inclui até a metade do mês de junho, apontaram quase
seis milhões de casos prováveis, 3.963 óbitos confirmados, 2.858 óbitos em
investigação, 10 estados e 683 municípios com decreto de emergência em saúde
pública. A chikungunya também apareceu com casos e óbitos muito maiores do que
no ano de 2023. E a febre oropouche, outra arbovirose circulante no país, que
era endêmica na Amazônia, mas já está em outros estados, inclusive na região
sul do país.
Existem outras doenças
transmitidas por mosquitos que podem constituir ameaças de circulação epidêmica
no país. Já foram isolados 210 desses tipos de vírus, dos quais 196 foram
identificados inicialmente na Amazônia brasileira. Destes, 110 são comprovadamente
novos para a ciência e 34 estão associados com infecções humanas.
As altas taxas de
incidência das arboviroses nos últimos anos vêm alertando e desafiando
pesquisadores, poder público e a sociedade, e causando dor e sofrimento à
população – especialmente daquela em situação vulnerável – além de
sobrecarregar o setor de saúde. Será mesmo que a única maneira de conter essas
doenças é alertando a população a esvaziar seus pneus e tampar caixas d’água?
A indisponibilidade de
serviços de saneamento pode contribuir para diversas enfermidades já
conhecidas, e também para as arboviroses. Especialistas da ONU3 enfatizam que o
acesso à água e ao esgotamento sanitário diminui a prevalência de doenças como
a tríplice epidemia que ocorreu em 2016 (dengue, chikungunya e zika). Também
adverte que o controle vetorial deve ser adotado como uma política de prevenção
e promoção da saúde que não se restrinja unicamente ao combate direto ao
mosquito. Isso porque as estratégias mais eficientes e sustentáveis de controle
são as melhorias sanitárias – que incluem aumento da cobertura do saneamento
básico e redução das desigualdades em saúde.
Arboviroses e
saneamento
Em diversos contextos,
estudos vêm sugerindo diferentes formas de associação entre variáveis
sanitárias relacionadas ao saneamento e a incidência de arboviroses aqui e ao
redor do mundo como, dentre outros, no Peru, Tailândia, Filipinas, Paquistão e
China.
No Brasil, a falta
e/ou irregularidade de serviços de abastecimento de água faz com que a
população armazene água e esta variável foi associada com a incidência de casos
de dengue em estudos no Recife/PE e no Rio de Janeiro/RJ. Além disso, outros
estudos demostraram que a ausência de esgotamento sanitário possibilita o
acúmulo de água parada próximo às residências em valas rudimentares, fornecendo
condições para manutenção de criadouros de mosquitos vetores conforme estudos
em localidades do Acre, no Rio de Janeiro/RJ e em Guanambi/BA.
Existem
aproximadamente 155 espécies de Aedes no mundo. A grande capacidade de
adaptação do Aedes aegypti ao ambiente urbano é um desafio para muitos
pesquisadores em conhecer sua bioecologia e desvendar seus hábitos e
comportamentos na natureza e no espaço habitado pelo homem. Esse vetor tem
mostrado uma grande capacidade de adaptação a diferentes situações ambientais
consideradas desfavoráveis, como por exemplo, larvas encontradas em água
poluída e mosquitos adultos em altitudes elevadas.
A infestação
domiciliar pelo vetor se faz presente em diversas localidades, mas a letalidade
é maior na população economicamente mais vulnerável, com índices de cobertura
precários de abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos
sólidos. Há diversos estudos que demonstram esse fato em localidades como em
uma área de favela no Rio de Janeiro/RJ; em Porto Velho/RO; em Oiapoque/AP; na
Ilha da Conceição em Niterói/RJ; em São Luís/MA; no Rio de Janeiro/RJ. Estudos
específicos em uma comunidade de Fortaleza/CE e na comunidade de Pau da Lima em
Salvador/BA apontam os resíduos sólidos descartados irregularmente e
encontrados na área peridomiciliar como o principal causador de doenças como a
dengue.
Somam-se, ainda, os
estudos que enfatizam que as epidemias registradas, em sua maior parte, são
causadas pela ineficiência do planejamento urbano e pelo descaso do poder
público, afetando a saúde da população. E que, nas áreas periféricas da cidade
e dos aglomerados informais, localizados em terrenos inadequados para habitação
humana, predominam a falta de higiene e inexistência de condições sanitárias,
favorecendo a proliferação de epidemias como em Altamira/PA; em Manaus/AM; em
Montes Claros/MG; em Itabuna/BA; em São José do Rio Preto/SP.
Dessa forma, o risco
sanitário e ambiental a que a população permanece exposta deve ser tratado
prioritariamente, na busca de esforços por se tratar não apenas de uma demanda
de grupos de moradores, mas de um direito. Essa foi a reivindicação de pesquisadores
em um estudo realizado na Rocinha, no Rio de Janeiro.
Observa-se que os
demais eixos que são integrantes do planejamento municipal de saneamento,
limpeza urbana e drenagem e manejo das águas pluviais, quando não desempenhados
adequadamente, possibilitam a ocorrência de focos do Aedes aegypti. Afinal, de
acordo com Cairncross, os mosquitos Aedes se multiplicam também em áreas
alagadas e inundadas, e em canais abertos de drenagem de águas pluviais. Assim
sendo, torna-se necessário realizar com frequência a limpeza e manutenção
desses equipamentos de drenagem nos municípios, especialmente as bocas de lobo,
para reduzir os focos destes mosquitos. No entanto, estas atividades são
comprometidas, muito em função da falta de recursos humanos e financeiros,
aliados à falta de vontade política e desconhecimento das relações existentes
entre o saneamento e a ocorrência das arboviroses.
É fundamental
salientar que as variáveis sanitárias, unicamente, não explicam totalmente a
heterogeneidade das doenças, pois as causas das arboviroses são múltiplas,
determinadas por variados aspectos e fatores como as emergências climáticas,
mas o acesso adequado ao saneamento constitui um elemento essencial.
Em um evento que
aconteceu em abril de 2024, onde a Fiocruz reuniu gestores e pesquisadores para
discutir os desafios das arboviroses, a coordenadora de Vigilância em Saúde e
Laboratórios de Referência da Fiocruz, Tânia Maria Peixoto Fonseca, ressaltou a
necessidade de ações intersetoriais, reafirmando a importância do saneamento no
controle destas enfermidades. “Conhecemos as estratégias para enfrentar os
problemas de saúde, mas a infraestrutura não depende apenas de nós”, afirmou.
“Temos conhecimento, mas temos falhas na Atenção Básica. Temos conhecimento,
mas mesmo assim o manejo vetorial muitas vezes é feito de maneira equivocada.
Temos conhecimento, mas mesmo assim a infraestrutura de coleta de lixo, de
saneamento e de abastecimento de água em nossas cidades é, em geral,
insuficiente”, lamentou Tânia, destacando a importância de trabalho e sinergia
entre o poder público e as instituições de ensino e pesquisa.
Não faltam caminhos…
Em um estudo, no qual
foi realizada uma análise de conteúdo em oito documentos governamentais de
referência que são instrumentos norteadores das políticas públicas de controle
das arboviroses no país, concluiu-se que o saneamento não está suficientemente
abordado nos instrumentos de enfrentamento às arboviroses – o que pode
contribuir para a baixa efetividade de intervenção pública e que, portanto, tal
contradição precisa ser superada pelas políticas públicas no Brasil.
Ressalta-se que as
políticas públicas voltadas para o controle das arboviroses devem ser
intersetoriais e integradas, com base nas características de cada território.
Precisam também privilegiar outros modelos que não sejam os verticalizados
adotados atualmente pelo poder público, onde a população não tem acesso à
informação clara e poderia ser parte mais atuante no processo de minimização do
problema. Como questões culturais e sociais influenciam as práticas sanitárias,
torna-se imprescindível a participação ativa das comunidades na elaboração
destas políticas. Tendo como base os princípios de não-discriminação,
participação social, informação, transparência e responsabilização, os diversos
grupos sociais devem ser ouvidos e convocados a contribuir com o planejamento
das ações. Isso exposto, reafirma-se que a participação da comunidade é parte
essencial na construção da política municipal que vise à melhoria do acesso aos
serviços de saneamento e, consequentemente, também o controle das arboviroses.
Importante sempre
enfatizar que o acesso à água e ao esgotamento sanitário foram reconhecidos
como Direito Humano em 2010 pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas, e em 2015 o acesso ao esgotamento sanitário foi
reconhecido, por sua vez, como um direito independente. A partir desse
reconhecimento, os estados devem respeitar, promover e proteger esses direitos
tendo como base princípios como não-discriminação, participação social,
informação, transparência e prestação de contas. Dessa forma, o referencial
teórico do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES) é uma
importante ferramenta para regulamentar o uso da água em diversos países, o que
pode contribuir para a elaboração e posterior implementação de políticas
públicas que sejam mais igualitárias e que promovam a saúde de populações
vulneráveis, uma vez que podem contribuir modificando a realidade, por meio do
estímulo à participação dos mais diversos grupos nos processos de tomada de
decisão.
Fonte: Por Josiane
Queiroz e Priscila Neves Silva, em Outra Saúde
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