terça-feira, 9 de julho de 2024

Como um mal entendido deu origem ao popular mito dos vampiros

No início do século 18, dezenas de pessoas na Sérvia começaram a morrer misteriosamente, supostamente perseguidas por seus vizinhos mortos — reclamando de uma forte sensação de asfixia ou dificuldade para respirar pouco antes de falecer.

Dois pequenos povoados em particular, Medveda, no sul, e Kisiljevo, no nordeste do país, estavam no epicentro destes rumores.

Os vilarejos ficavam a 200 quilômetros de distância um do outro, mas registraram um padrão semelhante de incidentes curiosos ao longo de uma década.

Médicos austríacos foram até lá para investigar a causa destas mortes, e prepararam relatórios detalhados sobre tudo que descobriram.

As conclusões chegaram rapidamente à imprensa austríaca e, posteriormente, aos círculos acadêmicos.

O historiador alemão Thomas M. Bohn, autor do livro The Vampire: Origins of a European Myth ("Vampiros: a origem do mito europeu", em tradução livre), diz que foi assim que a palavra "vampiro" apareceu pela primeira vez, em 1725, em um jornal austríaco chamado Wienerisches Diarium.

Um vampiro é uma criatura mítica que, segundo a lenda, sobrevive se alimentando do sangue de pessoas vivas.

Relatos de aparições de vampiros foram registrados em diferentes culturas ao redor do mundo, mas o termo "vampiro" ganhou popularidade na Europa Ocidental após esses relatos no século 18.

•        Coisa do 'diabo'

Em Kisiljevo, em 1725, nove pessoas morreram em dois dias. Todas elas mencionaram supostamente um certo vizinho antes de morrer.

Disseram que um homem chamado Petar Blagojevic, que já havia morrido, tinha vindo visitá-las em sonhos e começou a estrangulá-las.

Em resposta, os moradores locais abriram o túmulo de Blagojevic, e encontraram um corpo bem preservado, que foi considerado como "evidência de coisas do diabo".

“O rosto, as mãos e os pés, na verdade, todo o corpo, não poderia ter sido melhor conservado se ele estivesse vivo", escreveu uma autoridade austríaca que esteve presente na exumação.

"Em sua boca, para minha grande surpresa, encontrei sangue fresco que, segundo a crença geral, ele sugou daqueles que matou."

O professor Clemens Ruthner, do Trinity College de Dublin, na Irlanda, acredita que a palavra "vampiro" surgiu a partir do momento em que os médicos austríacos abriram as tumbas e falaram com intérpretes locais para entender o que havia acontecido.

"O intérprete provavelmente murmurou algo como 'upir', que é uma palavra eslovena para demônio, e desse mal-entendido nasceu a palavra 'vampiro'", sugere.

Segundo ele, por meio do encontro entre autoridades austríacas que se consideravam "cultas" e moradores locais que eram considerados "primitivos" pelos austríacos, surgiu uma nova criatura.

Para deter Petar Blagojevic, os moradores supostamente enfiaram uma estaca em seu coração, e depois queimaram seu corpo, pondo fim aos relatos de vampiros no vilarejo.

Embora estes incidentes tenham chamado a atenção, ainda não havia chegado o momento do "vampirismo" — termo usado para se referir à crença em vampiros — povoar o imaginário popular mais amplo, acrescenta Bohn.

O espírito iluminista daquela época não aceitava nada que não pudesse ser explicado racionalmente.

•        Vampiro ou bode expiatório?

Sete anos depois, em janeiro de 1732, o medo tomou conta do vilarejo de Medveda.

Em três meses, 17 pessoas, algumas delas jovens e saudáveis, morreram sem motivo aparente.

Assim como nos incidentes de Kisiljevo, algumas das vítimas se queixaram de uma forte sensação de asfixia e dor no peito antes de morrer.

Após cumprir a ordem de exumar os túmulos, o médico Johannes Fluckinger escreveu um relatório em que citava um mercenário como principal responsável pelos casos de "vampirismo".

Seu corpo ainda não estava em decomposição, e havia sangue fresco escorrendo de seus olhos, nariz, boca e ouvidos.

A população de Medveda entendeu isso como uma prova de que ele era, na verdade, um vampiro — e foi por isso que cravaram uma estaca em seu coração e depois também queimaram seu corpo.

"Pouco se sabe sobre a vida e o destino deste homem, que morreu após uma queda e foi transformado em bode expiatório pelos moradores", escreve Thomas Bohn em seu livro.

Ele acredita que se tratava de Arnaut Pavle, um albanês que chegou de Kosovo.

"Petar Blagojevic, em Kisiljevo, e Arnaut Pavle, em Medveda, foram os primeiros representantes conhecidos da espécie vampírica", diz ele.

•        Explicação científica

Embora os moradores locais tivessem medo de corpos que não se decompõem, os patologistas contemporâneos afirmam que o estado em que os cadáveres foram encontrados não é incomum.

"Christian Reiter, um renomado patologista vienense, acredita que por trás de todos estes casos estava a epidemia de antraz, algo comum durante e depois das guerras no passado", explica Ruthner.

O antraz é uma doença bacteriana transmitida de animais infectados para pessoas, muitas vezes resultando em morte.

Ruthner também acredita que os relatos de asfixia antes da morte podem estar relacionados à pneumonia.

"Se você ler os relatórios com atenção, vai observar que ninguém viu os vampiros com seus próprios olhos. A ideia de que sugavam sangue foi a interpretação dos médicos austríacos", afirma.

Thomas Bohn também acha que a sucção de sangue foi um mito criado pelo público ocidental.

A crença e o medo dos vampiros ainda persistem na psique humana, de acordo com o historiador local de Medveda, Ivan Nesic.

Mesmo muito tempo depois das mortes de Petar Blagojevic e Arnaut Pavle, diz ele, os moradores tentaram proteger suas casas dos vampiros.

"Acredita-se que o vampiro sérvio se pareça com uma bolha de pele inflada e cheia de sangue", afirma.

"E que esvaziaria como um balão se fosse perfurado. É por isso que as pessoas costumavam colocar espinhos nos portões, nas janelas ou nas portas para se proteger."

•        Alternativa à 'ameaça turca'

Tanto Kisiljevo quanto Medveda estavam localizadas em áreas de fronteira que ficaram sob a autoridade da Monarquia dos Habsburgos no século 18, após séculos de domínio otomano.

Ruthner acredita que o suposto aparecimento de vampiros chamou a atenção porque esses incidentes foram registrados nesses territórios conflituosos.

"O grande conflito entre o Império Otomano e o Ocidente é um pano de fundo importante para estes acontecimentos", diz.

Bohn também observa que após o segundo cerco otomano fracassado a Viena em 1683, os vampiros representaram uma alternativa à "ameaça turca" ao cristianismo.

Em meados do século 18, houve uma nova onda de avistamentos de "vampiros" na Monarquia dos Habsburgos, mas proibiu-se lutar contra as criaturas imaginárias, na tentativa de conter as crenças supersticiosas.

Mas os vampiros logo ressuscitaram de uma forma diferente.

"Os vampiros do período romântico eram aristocratas bonitos e de pele clara, e não aldeões sérvios inchados e com rosto vermelho", diz Ruthner.

O vampiro carismático e sofisticado da ficção moderna nasceu em 1819 com a publicação do conto O Vampiro, do escritor inglês John Polidori.

O romance Drácula, de autoria de Bram Stoker, de 1897, é celebrado como o romance de vampiros por excelência — e serve como base até hoje da lenda moderna.

•        Vampirismo: a doença fatal que matou centenas de pessoas

O que é vampirismo? Pela definição do dicionário, é "a conduta de alguém que age como um vampiro".

No imaginário popular, pode significar ressuscitar dos mortos para vagar à noite com uma capa preta, usando os caninos longos e afiados para morder o pescoço de vítimas e sugar seu sangue.

Atualmente, os vampiros são encontrados apenas em livros, filmes e séries de televisão.

Mas, quando o termo apareceu pela primeira vez, o cenário era bem diferente.

•        A origem do termo

Os vampiros sugiram no início do século 18 na fronteira da Áustria com a Hungria.

Embora desde os tempos mais remotos, divindades, bruxas, fantasmas e outras variedades de demônios que sugavam o sangue humano tenham feito parte do imaginário de quase todas as culturas, várias fontes afirmam que a palavra "vampiro" foi escrita pela primeira vez em 1725, no relatório de um médico do exército do Sacro Império Romano-Germânico.

Após a vitória contra o Império Otomano em Petrovaradin (1716) e o Cerco de Belgrado (1717), que levaram à assinatura do Tratado de Passarowitz, a Áustria anexou grandes extensões da Sérvia ao seu território.

E, ao chegar às terras dos povos eslavos, os austríacos se depararam com relatos sobre essas estranhas criaturas, das quais nunca tinham ouvido falar antes.

•        O relatório

Em um período de oito dias, nove pessoas morreram subitamente na cidade de Kisilova, após terem recebido supostamente a visita noturna de um homem chamado Petar Blagojević, que teria mordido as vítimas e chupado seu sangue.

O problema é que Blagojević estava morto e havia sido enterrado 10 semanas antes.

Os moradores pediram permissão então para exumar seu corpo e, no papel de nova autoridade local, o superintendente austríaco Frombold acompanhou o procedimento.

No relatório que enviou para Viena – o mesmo em que escreveu a palavra "vampiro" –, ele descreveu o que viu:

"O rosto, as mãos e os pés, e todo o corpo estavam tão bem constituídos, que não poderiam ter estado mais completos em sua vida. Com espanto, vi um pouco de sangue fresco em sua boca, que – de acordo com os relatos – havia sido sugado das pessoas mortas por ele... assim, ao ser perfurado, um monte de sangue, completamente fresco, também jorrou de seus ouvidos e boca, e aconteceram outras manifestações que não descrevo por respeito."

Como era costume na região, eles cravaram uma estaca no coração do cadáver e cremaram o corpo.

•        Uma 'epidemia'

Um jornal em Viena publicou a notícia, e o fenômeno se espalhou pela região.

Em poucos anos, o vampirismo parecia ter se tornado uma epidemia na Europa Oriental.

O imperador enviou equipes de cirurgiões militares para realizar autópsias e investigar o que estava acontecendo. Esses especialistas constataram, por sua vez, que os casos eram notavelmente consistentes.

Pesquisadores da área médica publicaram dezenas de artigos e livros sobre o assunto.

O vampirismo se tornou então uma condição reconhecida, testemunhada por um grande número de pessoas, que apresentava sinais e sintomas característicos, como cadáveres com sangue fresco correndo em suas veias e vísceras; sangue ao redor da boca, "por ter se alimentado"; pele rosada; corpos volumosos, etc.

•        Tema quente

Ironicamente, o vampiro ocidental surgiu em plena Era da Razão.

O século 18, conhecido como "Século das Luzes", foi palco do Iluminismo, movimento que pregava o uso da luz da razão contra as trevas da ignorância.

Neste contexto, os vampiros eram um tema que despertava calorosos debates na Europa.

Teólogos argumentavam que os vampiros eram seres físicos que demonstravam a existência de uma vida após a morte.

Filósofos, por outro lado, se preocupavam com o fato de que as evidências disseminadas sustentando a existência de vampiros lançassem dúvidas sobre o valor do testemunho e de testemunhas oculares.

Até mesmo o filósofo francês Voltaire se manifestou sobre o assunto, quando em 1764, questionou:

"O quê?! Em pleno século 18 existem vampiros?

"São cadáveres que deixam seus túmulos à noite para chupar o sangue dos vivos, seja em suas gargantas ou seus estômagos, e depois retornam aos seus cemitérios."

"Enquanto as vítimas empalidecem e são consumidas, os cadáveres que sugam o sangue ganham peso, ficam rosados e desfrutam de um excelente apetite."

"É na Polônia, na Hungria, na Silésia, na Morávia, na Áustria e na Lorena que os mortos se divertem tanto."

"Nunca ouvimos uma palavra sobre vampiros em Londres, nem sequer em Paris."

"Admito que nas duas cidades há corretores da bolsa e homens de negócios que sugam o sangue das pessoas em plena luz do dia; mas, embora corrompidas, não estão mortas. Esses verdadeiros vampiros não vivem em cemitérios, mas em palácios."

•        O que estava acontecendo?

Mas como explicar a epidemia de uma doença mortal que não existe?

Alguns pesquisadores atribuem o fenômeno a grandes traumas e decepções, outros à alimentação, ao uso acidental de drogas que causam alucinações e a doenças altamente contagiosas.

Outras teorias fazem referência à presença de substâncias químicas incomuns na terra que afetavam a decomposição dos corpos.

De fato, a origem de algumas características descritas pelos médicos legistas da época poderia ser precisamente a decomposição.

de muitos "vampiros" surpreendia a quem os desenterrava.

Em alguns cadáveres, o sangue coagula, mas se liquefaz novamente. Os gases no abdômen aumentam a pressão à medida que o estado de putrefação avança, forçando os pulmões para cima e, algumas vezes, expulsando o tecido em decomposição da boca e das narinas.

O inchaço provocado pelos gases bacterianos após a morte explica por que os corpos parecem roliços e saudáveis, e também os "gemidos sonoros" que alguns mortos soltavam quando as estacas eram encravadas em seu coração ou estômago.

•        O vampiro aristocrata

Um século depois, um médico inglês chamado John Polidori escreveu o primeiro romance sobre vampiros em inglês. Ele transformou o vampiro em um aristocrata, abrindo caminho para o clássico de Bram Stoker, Drácula, publicado 78 anos depois.

A imagem da criatura elegante que povoa hoje em dia o imaginário popular se deve a Polidori, Stoker e a dezenas de contos sobre vampiros vitorianos.

Mas vale lembrar que o tema foi analisado pela primeira vez por médicos, políticos e filósofos.

 

Fonte: BBC Sérvia

 

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