Como a indústria de inteligência artificial
lucra criando uma nova classe trabalhadora sem direitos no Brasil
A BAIANA LÍLIAN LARGOU
UM EMPREGO CLT no ano passado. Por causa da filha pequena, trabalhar fora
de casa era um pesadelo. Foi em um vídeo no TikTok que ficou sabendo da
possibilidade de trabalhar online treinando inteligência artificial.
Depois de um mês
tentando, conseguiu ser aprovada nos testes para atuar em projetos na Appen,
plataforma que subcontrata trabalhadores para executar a crescente demanda das
big tech por produção, classificação e análise de dados.
Hoje, trabalha em
horários flexíveis, seis dias por semana, para “melhorar a inteligência
artificial com dados”, como propagandeia a Appen. No fim do mês, se tudo der
certo, tira R$ 1.400, sem nenhum outro benefício.
Lílian faz parte de
uma classe de trabalhadores muitas vezes definidos como fantasmas, escondidos
ou microtrabalhadores. Por meio de plataformas multinacionais como Tellus,
OneForma e a própria Appen, grandes empresas de tecnologia contratam mão de
obra barata, em larga escala e em diversos países, para executar pequenas
tarefas.
Na outra ponta da
cadeia, gigantes como Meta, Google e TikTok lucram com a facilidade de comprar
bases de dados já preparadas por trabalhadores que custam infinitamente menos
do que os profissionais do mercado de tecnologia.
As big tech também se
beneficiam de uma cadeia que opera à margem da lei, opaca e blindada por
contratos de confidencialidade, em que as pessoas sequer sabem para quem ou
para quê estão trabalhando.
Além dos salários
baixos, esses trabalhadores terceirizados não recebem treinamento e trabalham
com prazos apertados. Há inúmeros relatos de calotes, contratos rompidos
unilateralmente sem explicação e desassistência das plataformas.
Para Rafael Grohmann,
professor da Universidade de Toronto e pesquisador da rede Fairwork, que
defende princípios de trabalho decente nas plataformas, esse modelo remete às
discussões sobre capitalismo industrial do século 19. “A gente tá bem vintage,
tendo que recuperar teorias que achávamos que estavam ultrapassadas”, diz.
A terceirização é uma
estratégia para não conectar os trabalhadores ao cliente final, diz Milagros
Miceli, socióloga, cientista da computação e fundadora de um grupo de
pesquisa sobre algoritmos e ética do Weizenbaum-Institut de
Berlim, um instituto de pesquisa sobre digitalização ligado ao governo alemão.
“É importante que os
próprios trabalhadores percebam que estão contribuindo para uma indústria
multibilionária”, ela comenta. “Se você percebe que está trabalhando para a
Microsoft ou para o Google, você vai pedir mais dinheiro. Eu acho que todos os
trabalhadores deveriam saber para quem estão trabalhando, e também o lucro
gerado pelo seu trabalho”.
O Brasil já é um dos
maiores mercados onde big techs recrutam mão de obra barata para esse tipo de
trabalho. Pesquisadores apontam que a pandemia intensificou esse processo no
país, nos últimos anos: devido à crise econômica e a necessidade de ficar em casa,
somadas ao grande consumo de mídias sociais e internet.
Hoje, os brasileiros
estão em quarto lugar no número de visitas na Appen, e em quinto na Oneforma,
atrás de EUA, Reino Unido, Índia e Filipinas, segundo dados do
SimilarWeb.
Por aqui, essas
plataformas operam em um limbo político e jurídico. Não há dados confiáveis
sobre quantos brasileiros trabalham para essas empresas para se pensar em
regulação trabalhista ou políticas de proteção.
Essas empresas sequer
têm representação jurídica no Brasil, o que inviabiliza qualquer tipo de
reivindicação formal ou ações judiciais. Enquanto isso, as iniciativas de
regulação de IA no país ignoram o tema – não há menção sobre os trabalhadores
de dados na proposta discutida no Senado, o PL 2338/2023.
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Controle e segredos
Os sistemas de
aprendizado de máquina são um tipo de inteligência artificial, um conjunto de
algoritmos que, a partir de determinado input – dados ou
informações disponíveis – gera um output, ou seja, o resultado
desejado. Isso pode ser feito com uma árvore de decisão, por exemplo. Mas,
no caso da IA generativa, o próprio sistema aprende a decidir sozinho, no
chamado ‘deep learning’, ou aprendizado profundo. O programador não cria a regra
– só mostra o resultado desejado.
Os dados produzidos
por essa legião de trabalhadores são a matéria prima e o refinamento dessa
automatização. É a partir deles que os sistemas de computação ditos
inteligentes aprendem os padrões que vão imitar depois.
Sem uma montanha de
conteúdo produzido por veículos de comunicação e pessoas reais, o ChatGPT seria
incapaz de oferecer respostas qualificadas. Sem pessoas reais interpretando
erros de digitação em resultados de busca, o Google não adivinharia o que você
realmente quis dizer com aquela palavra que escreveu errado. Sem trabalhadores
interpretando fotos para treinar algoritmos de visão computacional, câmeras
inteligentes não conseguiriam identificar objetos em uma imagem.
Para executar o enorme
número de tarefas humanas necessárias para o desenvolvimento de sistemas de IA,
é preciso contratar também milhões de trabalhadores. O jeito mais barato que a
indústria encontrou para fazer isso foi por meio de multinacionais intermediárias.
Assim, trabalhadores
de todo o mundo são pagos para tirar fotos, transcrever áudios, opinar sobre
anúncios, moderar conteúdo, checar fake news,
identificar imagens, fazer compras. Há todo tipo de tarefa disponível,
inclusive gravar vídeos de si mesmo dançando ou de crianças. Sim, crianças. A
Appen paga US$ 20 (cerca de R$ 108) por 10 desses vídeos. Não há informações,
na tarefa, sobre o que será feito deste conteúdo.
As empresas
intermediárias vendem esse tipo de trabalho como uma oferta de liberdade, já
que não há horário fixo e os ganhos por tarefa dependem do desempenho
individual. No entanto, dezenas de documentos internos obtidos
pelo Intercept Brasil mostram um nível de controle intenso das
empresas sobre os trabalhadores.
Todos têm que assinar,
por exemplo, termos de confidencialidade rígidos, que os proíbe de trocar
informações com outros “contratados independentes” – como a empresa chama quem
trabalha para ela –, e de se organizar coletivamente.
Os trabalhadores não
trabalham para os clientes finais, mas para projetos organizados em codinomes.
Em alguns casos, são proibidos até mesmo de mencioná-los publicamente.
“Não participe de
grupos ou chats fora dos métodos de comunicação fornecidos pela Appen para
discutir informações confidenciais do projeto”, diz um dos termos de uso da
empresa, que tem como clientes Amazon, Microsoft, Nvidia e Meta.
A empresa, por
exemplo, exige que o trabalho seja feito em um dispositivo ligado a uma rede
criptografada. É proibido compartilhar informações de clientes ou qualquer
informação sobre o projeto – incluindo suas diretrizes e mesmo seu nome – em
qualquer espaço fora do ambiente interno da empresa, ou com pessoas que não
assinaram os termos de confidencialidade.
“Violar qualquer uma
dessas obrigações legais pode resultar na remoção permanente de projetos da
Appen, ações por violação do contrato ou outras medidas legais contra você”,
diz um dos termos.
A Appen também orienta
que os trabalhos remotos sejam feitos só em casa e não em espaços públicos. Os
trabalhadores são impedidos de fornecerem instruções e são orientados a usar
fones e protetores de tela para impedir que outras pessoas vejam o que está
sendo feito.
A OneForma, plataforma
utilizada para preparação de dados pelo Google, também proíbe qualquer menção
pública aos projetos. Os trabalhadores assinam um termo que também isenta a
empresa de responsabilidades sobre eventuais vazamentos – ou seja, se alguma
informação de cliente vier a público, o único a ser responsabilizado é o
trabalhador.
A OneForma também
obriga que o trabalhador renuncie a qualquer ação judicial coletiva. “Se, por
qualquer motivo, uma reclamação prosseguir em tribunal e não em arbitragem,
cada uma das partes renuncia a qualquer direito a um julgamento com júri”,
dizem os termos de uso da OneForma.
Procuradas, as
plataformas não responderam os questionamentos enviados pelo Intercept.
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Grupos são saída para a alienação
Gabriela, dona de casa
de 36 anos, trabalhou por um ano e meio na Appen e Lionbrige. Quando aceitou o
trabalho, havia acabado de reformar a casa e precisava de dinheiro, mas não
queria deixar os filhos pequenos sozinhos. “Foi uma salvação. Me ajudou muito”,
ela contou ao Intercept.
Sua primeira
tarefa foi tirar selfies. Enviava vídeos dançando, fazendo exercícios,
conversando ou movimentando as mãos. O material precisava seguir requisitos
específicos para ser aceito, como enquadramento e iluminação. Depois, Gabriela
ainda trabalhou classificando anúncios e comprando produtos. Nos melhores
meses, tirava R$ 800.
Assim como a maior
parte dos trabalhadores, ela contrariou as regras e entrou nos grupos
clandestinos. “Ajuda demais, você não se sente sozinho, o pessoal se apoia”,
ela diz.
Para Milagros Miceli,
que defende que os trabalhadores devem ter poder de decisão sobre as
plataformas, a arquitetura desse mercado prejudica inclusive a qualidade dos
dados que vão alimentar os sistemas de IA.
Em primeiro lugar, por
causa do senso de propósito. Sem saber exatamente para quê estão
trabalhando, as pessoas performam pior. Depois, pelo isolamento imposto aos
trabalhadores. “Há muitos estudos que mostram que, se você colaborar, tem
resultados melhores”, diz Miceli.
Com as tarefas
fragmentadas, os trabalhadores são alijados do propósito do trabalho. Podem
estar contribuindo para viciar adolescentes em vídeos repetitivos, treinar
sistemas de vigilância e de predição de crimes da polícia sem sequer saberem o
que estão fazendo.
“As plataformas não
são obrigadas a falar aos trabalhadores sobre os projetos em que eles estão
trabalhando”, disse o pesquisador Phil
Jones, autor de Work
Without the Worker: Labor in the Age of Platform Capitalism (Trabalhe
sem o trabalhador: trabalho na era do capitalismo de plataforma, em tradução
livre, sem edição brasileira).
“A noção de alienação
é essa, de estranhamento. Em uma fábrica em que você fazia só a roda do carro,
claro, você sabia que estava numa montadora. É como se você intensificasse esse
estranhamento a ponto de já não saber para onde vai a roda ou parafuso”, compara
Rafael Grohmann.
Grohmann e Miceli têm
trabalhos que mostram o quanto os grupos de trabalhadores, ainda que
clandestinos, são fundamentais. “Não apenas para a sobrevivência dos
trabalhadores em meio a condições terríveis, mas também para performar melhor”,
diz Miceli. “Os trabalhadores precisam coletivizar e se organizar e
sindicalizar se for possível. É um processo coletivo que deve vir dos
trabalhadores”.
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Calote e ansiedade à espera de uma nova
tarefa
No final de dezembro
de 2023, Marcia recebeu uma confirmação esperada: depois de um mês tentando,
ela finalmente havia passado no teste para um trabalho remoto, o projeto Uolo. Sua
função era avaliar anúncios nas redes da Meta.
Para isso, ela se
cadastrou na terceirizada Appen com a promessa de receber US$ 3,50 por hora
trabalhada – ou R$ 15, quase o dobro da hora do salário mínimo brasileiro, em
uma conta simples.
Marcia se dedicou. Ela
deveria avaliar pelo menos 40 anúncios em uma hora, classificando se eram ou
não impróprios. Em um dia, diz que cumpriu três horas de trabalho, mas só
conseguiu receber por pouco mais de uma hora.
No final do primeiro
mês, outra frustração: seu computador deu problema e ela não conseguiu mais
trabalhar. Pediu dicas para comprar um outro notebook em um grupo de WhatsApp.
“Só tenho R$ 500”, avisou. “Vai ser difícil”, respondeu um colega.
Pouco tempo
depois, vários trabalhadores receberam um e-mail afirmando que o projeto
estava suspenso temporariamente. O acesso às tarefas foi cortado. “Gente, vamos
ficar sem trabalhar o resto da semana?”, questionou uma trabalhadora no grupo
de mensagens.
Na descrição da vaga,
a empresa prometia seis horas de trabalho diárias ou 20 horas semanais,
totalizando 700 dólares (R$ 3.780) por mês, valor sedutor para um trabalhador
brasileiro. Ninguém chegou lá. No grupo clandestino, os brasileiros
aguardavam ansiosos a empresa desbloquear novas tarefas. “Preciso ainda
conseguir mais 260 dólares esse mês”, disse Lílian. “Alegria de pobre dura
pouco”.
Quando finalmente
puderam voltar a trabalhar, eles descobriram que haviam sido mal avaliados. Uma
nota baixa é motivo de preocupação, porque três avaliações ruins geram
suspensão.
A nota de Lílian ficou
em 60%, quando costumava tirar 100%. Tentou reclamar com a plataforma, mas
ninguém respondeu, até que ela não conseguiu mais logar na plataforma. Ainda
tinha 138 dólares (R$ 745) para receber da Appen. “Tô sem trabalhar há três dias.
Meu Deus, alguém me ajuda”, ela pediu no grupo dos trabalhadores.
Pouco depois, seguindo
instruções dos colegas, reinstalou a VPN necessária para o serviço e conseguiu
retomar. “A Appen está me deixando desanimada. Fiz duas horas na terça e conta
que trabalhei seis minutos”, ela reclamou.
Preocupada, começou a
tentar entrar em outros projetos. Foi reprovada nos testes. Tinha medo do
projeto sumir sem explicação. “Hoje não recebi nenhum e-mail da Appen, tô
ficando preocupada”, escreveu.
Uma pesquisa feita em
2020 no Brasil mostrou que bugs na plataforma são problemas comuns enfrentados
pelos trabalhadores. É justamente nos grupos que eles conseguem ajuda para
resolver os problemas.
“A comunicação entre
trabalhadores auxilia nos processos de recebimento do pagamento, a fim de
evitar perdas financeiras”, explicam os pesquisadores Grohmann e Willian
Fernandes Araújo no artigo “O chão de fábrica (brasileiro) da
inteligência artificial: a produção de dados e o papel da comunicação
entre trabalhadores de Appen e Lionbridge”, que inspirou o título deste
projeto.
Dois dias depois, a
Appen liberou duas horas extras para os trabalhadores. Alívio geral – seguido
por outra decepção. Em fevereiro, a fatura veio com quase 30 dólares faltando
para Lílian. Mesmo assim, ela segue na plataforma, ansiando por novas tarefas.
Se um trabalhador é
suspenso, há uma fila para substituí-lo. “O constante excesso de oferta de
trabalho erode qualquer poder de negociação por melhores pagamentos, porque
para cada tarefa há uma longa fila de trabalhadores dispostos a fazê-la por
menos dinheiro”, escreveu o pesquisador Florian A. Schmidt, professor de design
e teoria das mídias na University of Applied Sciences HTW Dresden, em um artigo
publicado em 2022.
Segundo Schmidt, que
estudou esse mercado na Venezuela, esse excesso de demanda gera uma constante
ansiedade nos trabalhadores, que ficam atualizando as páginas incessantemente
para conseguir novas tarefas.
“Como no resto da gig
economy, há pouca flexibilidade e autonomia restante se você tem que entrar em
qualquer oportunidade para fazer uma tarefa antes de outras pessoas. E essa
competição é muito mais extrema se o trabalho não é baseado por localidade”, explicou.
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Propostas de regulação ignoram os
trabalhadores de dados
Para Renan Kalil,
procurador do Ministério Público do Trabalho, o MPT, que pesquisou em seu
doutorado a Amazon Mechanical Turk, plataforma de trabalho da Amazon, elementos
de controle e direção do trabalhador oferecem evidência robusta para
caracterizar a existência de uma relação de emprego e justificar a aplicação
dos direitos trabalhistas.
O problema, ele
explica, é aplicar esses direitos. O próprio MPT já esbarrou em dificuldades na
hora de contatar empresas que não tinham representação no Brasil. “Não é
incomum o trabalhador estar executando atividade em um país, a plataforma estar
sediada em um segundo país e do tomador de serviço, num terceiro país”.
“A empresa ou o
tomador vai ser citado como?”, ele questiona. “Essa é uma das oportunidades que
a gente está perdendo na hora de debater regulação do trabalho”.
Em abril de 2024, a
União Europeia aprovou uma diretiva para regulamentar o trabalho por
plataformas. Ela prevê, por exemplo, a presunção de vínculo se há mecanismos de
controle do trabalhador. E também proíbe demissões com base em decisões tomadas
por um algoritmo.
O governo Lula, que
assumiu em 2023 com a proposta de regular o tema, simplesmente ignorou os
trabalhadores de dados. O grupo de trabalho criado para plataformas digitais,
formado por vários ministérios e entidades trabalhistas, não discutiu o tema em
nenhuma das 12 reuniões.
O foco foi em
aplicativos de entrega – o que deu origem ao PL do iFood – e de transporte de
passageiros. Quem trabalha com o “digital” ficou de fora.
O Brasil também
discute a regulação de inteligência artificial, com o PL 2338, de 2023, de
autoria do senador Rodrigo Pacheco, do PSD. Mas a proposta também não traz
nenhuma linha sobre a maneira como os bancos de dados, fontes primárias desses
sistemas, são criados, aperfeiçoados ou tratados.
“O problema é um passo
atrás. As pessoas não estão conectando os pontos, vendo que temos um problema
de mão de obra. Só vêem um problema com os dados e com o sistema”, diz Milagros
Miceli.
Para a pesquisadora,
que participou de um grupo que levou trabalhadores de dados para o Parlamento
Europeu durante a discussão da regulamentação por lá, a hierarquia das
plataformas é pensada para os trabalhadores obedecerem. Quando o processo dos
trabalhadores de dados é obscurecido – ou seja, quando não se sabe em que
condições aqueles dados foram coletados, os conjuntos de dados “viram uma caixa
preta”.
Ela defende uma
mudança nessa lógica, com mais espaços para que os trabalhadores sejam ouvidos
e tenham voz no processo.
O tema também já
entrou no radar da Organização Internacional do Trabalho, a OIT. Ainda não há
regulamentação sobre o tema, mas a 113ª Conferência Internacional do Trabalho,
que acontecerá em 2025, terá uma sessão para definir normas internacionais
sobre o trabalho decente em plataformas.
Fonte: Por Tatiana
Dias e Sofia Schurig, em The Intercept
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