Como atua a bolha incel e neonazista que
coordena ataques e ameaças a perfis de esquerda
Nos últimos anos temos
acompanhado o crescimento de células neonazistas na internet que funcionam de
forma diferente dos tradicionais grupos defensores de semelhantes ideias. São
verdadeiras redes de ódio que contam com perfis de alto alcance nas redes
sociais, fóruns de discussão abertos e fechados, além de uma miríade de perfis
médios e pequenos que protagonizam os ataques, ameaças e apologias logo que os
grandes soltam os chamados “apitos de cachorro”.
Ao contrário da antiga
intelectualidade integralista ou dos bombadões tatuados oriundos de gangues,
esses novos neonazistas são aparentemente mais frágeis. É comum que muitos
desses perfis se identifiquem como jovens e adolescentes autointitulados “incels”,
ou “celibatários involuntários” – o que demonstra suas dificuldades em relação
ao sexo oposto que se transformam em misoginia.
Uma dessas redes de
incels neonazistas tem coordenado ataques nas últimas semanas a uma série de
perfis e influenciadores de esquerda no X, antigo Twitter. A Fórum entrevistou
os responsáveis por dois desses perfis atacados, que detalharam os ataques e deram
pistas de como funciona a dinâmica do grupo – ambos identificaram as mesmas
práticas e procedimentos.
“Essa bolha de incels
nazistas atua contra comunicadores de esquerda de uma forma geral e mudam de
alvo conforme as coisas vão acontecendo nas redes. Ou seja, se uma pessoa faz
algo que os incomode, passam a atacar. Já fui atacado, o Thiago Reis e o Lázaro
Rosa também, e dezenas de outros comunicadores. Os ataques são coordenados,
eles escolhem o alvo e então vem uma enxurrada de mensagens como forma de
intimidar”, conta Vinícios Betiol, dono de um perfil pessoal no X, com seu nome
verdadeiro, e mais de 150 mil seguidores.
Betiol diz que é
comum, como no seu caso, a prática de ‘doxxing’. Em outras palavras, pesquisam
dados pessoais do alvo, como endereços, vazam esses dados e passam a fazer
ameaças de morte, estupro e violência de modo geral.
“Depois de vazar os
dados eles fazem questão de mandar mensagens no WhatsApp mostrando que têm os
dados, ameaçando ir na sua casa, mostrando o seu endereço e falando que vai te
matar, te estuprar. Também falam que vão matar seu cachorro, pois têm um ódio
muito grande de animais. Ainda têm um ‘negócio’ muito grande com estupro e,
especificamente, estupro de cadáveres. Fazem isso sempre achando que não vai
dar em nada. Dizem que utilizam VPN (para esconder a conexão), que se protegem
e que a polícia nunca vai conseguir chegar até eles. Quando uma ação deles
ganha notoriedade nas redes e é compartilhada por políticos, por exemplo, se
vangloriam”, relatou.
Por fim, Betiol relata
que também utilizam fotos dos alvos para criar vídeos com técnicas de deep fake
em que apareçam adornados com símbolos nazistas e proferindo discursos
supremacistas. O interlocutor compartilhou alguns desses vídeos com a
reportagem, e chama a atenção para uma peça em que manipulam a imagem de
Marielle Franco deixando-a branca, loira, repleta de simbologias neonazistas e
fazendo um discurso dessa natureza.
“A raça ariana está
sendo ameaça pelos muçulmanos, negros, pajiés, judeus e brasileiros. Temos que
matar todos eles. Vote Paneirelle Franco para vereadora. Prometo que farei um
mandato sem furos (SIC)”, diz a montagem. O conteúdo da frase só foi exposto para
que o leitor tenha a dimensão do nível dos ataques.
• Glossário do ódio
Antes de abordar os
“procedimentos” para os ataques, é importante pontuar que o grupo utiliza uma
espécie de código para evitar bloqueios nas plataformas e até mesmo eventuais
processos judiciais. Tocando em miúdos, substituem os verbos problemáticos. “Matar”
ou “executar”, nesse contexto, torna-se “resenhar”; já o verbo “estuprar” é
trocado por “estudar”.
O caso da influencer
Marina Mamede, que morreu aos 34 anos em Ouro Preto (MG) no início do mês, é
emblemático para ilustrar esse glossário do ódio. Marina era identificada com a
esquerda e foi perseguida por grupos como esse antes da sua passagem. O falecimento
foi não apenas comemorado, mas usado como combustível para barbaridades.
“Que ninfeta, o IML e
os coveiro vão estudar [estuprar] um corpinho branco lindíssimo”, diz um
comentário da conta @meccputo, que demonstra o real significado nesse
ecossistema do verbo “estudar”.
O uso do termo pode
ser verificado em outras postagens, junto da expressão “festa no IML”, que
denota o fetiche dos incels neonazistas em torno do crime de vilipêndio de
cadáver.
• Como funcionam os ataques
Betiol conta à
reportagem que os ataques sempre começam quando um dos perfis grandes do grupo
dispara uma mensagem tida como apito de cachorro, dando o sinal aos demais
membros do ecossistema digital sobre quem é o alvo da vez.
O influenciador
comentava questões que estão no debate público, como a investida do mercado
financeiro sobre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, relacionando-o à
taxação da população, quando chamou a atenção da bolha nazi-incel. Num dos
comentários ameaçadores, um usuário diz que irá “estuprar” Betiol no endereço
onde o alvo supostamente mora.
O nome do perfil,
“estudei a maconhilda” – ou “estuprei a maconhilda” – faz referência a outro
alvo, a página @maconhilda, também de esquerda e tocada por uma jovem
estudante. Ela também foi entrevistada pela reportagem.
“As ameaças foram
feitas por diversos perfis de pessoas no Twitter que a princípio não se
identificam, e conforme o tempo foi passando, consegui perceber que tinham
interligação fortíssima com o neonazismo/fascismo. Além disso, também deu pra
notar que quase todos tinham ligação com perfis maiores, eram seguidos ou
seguiam alguns perfis em específico”, contou a influenciadora.
Ela diz que passou a
ser atacada gratuitamente por ser mulher, jovem, de esquerda, por falar sobre
maconha e por não ser considerada uma ‘mulher branca’.
“Eles não me veem como
uma pessoa branca, o que motiva ainda mais o ódio pra cima de mim. Eles usaram
várias ofensas de cunho racista, como ‘macaca’, ‘cabelo duro’, ‘aspecto de
suja’, ‘pretinha carente’, ‘imunda’… mas isso é só uma parte, porque eles flertam
abertamente com o neonazismo, então não existe limites pra eles. Nenhum mesmo.
De cunho misógino, falam que vão me estuprar pra baixo. Eles usam palavras
diferentes entre si, igual essa ‘dogpill’, que é querendo insinuar que uma
mulher é tão sexual, que transa até com cachorro. Na cabeça machista deles faz
sentido. Daí falaram que estuprei minha falecida cachorra, por exemplo”,
relata.
A estudante relata que
chegou a fazer um boletim de ocorrência contra essa rede em 2022, mas acabou
desencorajada na delegacia paulista a prosseguir com a denúncia. “A pessoa que
me atendeu alegava que era muito fácil pra esses caras dizerem que foram ‘hackeados’
e coisa do tipo. E foi bem grossa comigo”, afirmou
Ela teve o endereços
dos pais vazado pelo grupo. “Fiquei com muito medo. É uma invasão de
privacidade tremendo, a gente não sabe o que eles podem fazer com essa
informação, são pessoas sem limites, que às vezes não parecem pensar nas
consequências de seus atos”, concluiu. Também disse que só está com a saúde
mental em dia graças à rede de apoio que conseguiu formar em torno de si.
• Possível líder
A jovem responsável
pelo perfil @maconhilda gravou um ‘spaces’ [espaço de chat por áudio na
plataforma X] com a presença de diversos perfis dessa bolha e o compartilhou
com a reportagem. Nele, um perfil identificado como “Felipe” (@Leme12) se
mostra como uma espécie de liderança e aponta a existência de um grupo seleto e
fechado por onde as atividades dessa rede de ódio seriam orquestradas.
“Já falamos umas
coisas lá (no WhatsApp), que se esses caras não denunciaram eles também são
criminosos”, diz um outro usuário. Felipe responde: “Lá no grupo, a resenha do
fake do Brune Perozi nunca iria pra frente se tivessem infiltrados lá. E outra,
vou falar. Eu que adiciono os caras lá (no grupo). Nunca adicionei um cara que
me pede pra entrar. Eu que vou atrás e pergunto se o cara quer entrar, daí eu
boto no grupo”. O outro participante confirma a narrativa em seguida.
Esse perfil é o mesmo
que soltou um dos apitos de cachorro contra Betiol. Fazendo uma devassa nas
suas postagens, é possível concluir que o operador do perfil se chame Felipe
Leme. A identidade ainda não foi confirmada, mas encontramos algumas pistas.
A primeira delas são
alguns artigos publicados pelo jornal A Razão, de Tijucas, Santa Catarina. É o
mesmo veículo que em dezembro passado recebeu R$ 5 mil da deputada Júlia
Zanatta (PL-SC) para publicar matérias elogiosas à parlamentar. O artigo fazia
a ‘denúncia’ de que Leonel Radde (PT-RS) estaria “perseguindo cristãos” após os
ditos “cristãos” atacarem a Arquidiocese de Porto Alegre por ter organizado um
ato ecumênico e inter-religioso à época. Assinado por “Felipe Leme”, o artigo
foi compartilhado nas redes tanto pelo jornal como pelo perfil @Leme12.
• Outro lado
Nazismo é crime, assim
como as demais práticas pelas quais os perfis analisados fazem apologia. Nesse
caso, as referências dos manuais de bom jornalismo se invertem, e o espaço para
que os membros da rede de ódio manifestem sua opinião ou versão dos fatos não
está aberto.
• Nova vítima da bolha incel:
"Objetivo deles é que o alvo suma da internet ou tire a própria vida"
Na quinta-feira (25) a
Revista Fórum revelou o modus operandi da chamada “resenha”, uma bolha incel e
neonazista que coordena ataques a perfis de esquerda e faz apologia ao nazismo
no X, antigo Twitter. A reportagem ouviu múltiplas vítimas, mas escolheu os
relatos de duas delas que considerou pertinentes para explicar a pauta. Agora,
publicamos o relato de Teresa (nome fictício), 26 anos, uma nova vítima. A
jovem foi perseguida até mesmo fisicamente, em seu local de trabalho, após
atrair a atenção do grupo.
Alerta: a reportagem a
seguir contém relatos de violência e pode impactar algumas pessoas. A Fórum
reproduz por se tratar de interesse jornalístico.Se o leitor tem pensamentos
suicidas ou conhece alguém que os tenha, recomendamos procurar o Centro de Valorização
da Vida (CVV) através do número 188 (ligação gratuita); CAPS e Unidades Básicas
de Saúde (Saúde da Família, Postos e Centros de Saúde); UPA 24H, SAMU 192;
Pronto Socorro; Hospitais.
Ela conta que tinha
cerca de 7 mil seguidores e revela como começaram os ataques. “Ao contrário da
maioria dos alvos que eu vi na reportagem, eu nunca fui comunicadora de
esquerda, influenciadora, nem nada do tipo. Sou de esquerda e tal, já falei
muito sobre o assunto, mas nunca fui voltada para política. Eu sempre fui de
postar bobeira, assim, coisa do meu dia a dia, só. Até o dia que eu fui
reclamar lá que o meu porteiro estava me assediando”, contou.
Teresa explicou a
história. Disse que o porteiro era novo no prédio e não a conhecia, nem o seu
trabalho. Um dia, de madrugada, ela retornou de uma festa, com o visual
produzido que as baladas exigem. O porteiro então teria pedido o seu telefone,
o que ela negou. O homem então acessou o caderno do condomínio e anotou o
número de Teresa. “Quanto é a hora?”, perguntou numa mensagem. Revoltada com o
assédio, ela desabafou nas redes sociais, e foi assim que uma pessoa anônima se
tornou alvo dos ataques de ódio.
“Não expus o porteiro
de forma alguma, nenhum dado dele. Só falei que o meu porteiro estava me
assediando porque ele pegou meu número no livro do condomínio, meu número
pessoal, que eu não divulgo em lugar nenhum e ficou me mandando mensagem. E a
partir do momento que eu fiz isso, começaram a falar que eu que eu estava
discriminando o porteiro, que eu estava fazendo o cara perder o emprego.
Começou assim. Até o momento que começaram a colocar foto minha em sites de
prostituição e associar tudo com prostituição. Começaram a invadir as minhas
redes sociais. Me fizeram perder o trabalho, me fizeram perder muita coisa.
Eles começaram a ligar e aparecer no meu trabalho, então me dispensaram. Eles
apareciam fisicamente no teu trabalho”, relata Teresa.
Teresa trabalha com
atendimentos em saúde e bem-estar [mantemos o ofício oculto para preservá-la],
e explica que quem atua nessa área tem sites para divulgar o trabalho. Algum
tempo atrás ela divulgou seu expediente num site. Só que outros sites pegaram suas
informações para para incluir em seus próprios cadastros profissional. Então
foi relativamente fácil para que a “bolha da resenha” obtivesse seus dados·
“Começaram a me mandar
mensagem, perguntando se para a porteiro era mais barato. Começou assim, com
brincadeirinha. Depois começou ameaça de estupro, ameaça de morte. Eles
mostravam que sabiam onde eu morava, faziam doxxing etc. Era a mesma galera da
reportagem. O Felipe Leme, inclusive, ia na minha DM do Instagram. Eu fui falar
com ele no Instagram para que parasse com os ataques. Tinha desativado o
Twitter porque fiquei apavorada com os ataques. Eram ele e uma tal de Débora
que estavam pela frente dos ataques. E aí o Felipe Leme ia na minha DM e
falava: ‘Só quero saber se você está bem’, mas eu sentia a ironia, sabe? Então
conversei com ele e pedi para ele apagar as publicações. Ele não só não apagou,
como foi lá no Twitter para falar que era para as pessoas maneirarem nos
ataques porque a gente estava se envolvendo, que a gente estava se conhecendo.
Botou no Twitter um print de uma passagem para a minha cidade. Ele não apagou
os ataques e ainda deu a entender que a gente estava se envolvendo. Se fazem isso
no Twitter, que é aberto, imagine o que não acontece nos servidores privados”,
conta a vítima.
Teresa conta que para
sair dessa situação aterrorizante, precisou primeiro dar-se conta da gravidade
do caso. E mesmo depois disso, quando tentou ir a polícia e procurar advogados,
terminou desencorajada por todos os lados.
“Quando eles começaram
a ir pessoalmente no meu emprego, tive que parar de trabalhar. E não conseguia
retomar mesmo que fosse autônoma. Foi quando agendaram comigo um atendimento.
Eu estava lá no meu local esperando e quando a pessoa chegou, ela falou: ‘olha,
na verdade eu não quero massagem nenhuma. Eu sou advogado e quero te mostrar o
que estão fazendo com você’. E esse advogado, que inclusive é um super mau
caráter, estava em site procurando foto íntima minha para ver. Ele mesmo falou
que estava procurando foto minha para ver, mas então percebeu que a coisa era
muito mais grave e resolveu me alertar”, conta.
E agrega em seguida:
“Ele me mostrou todo o doxxing que estavam fazendo comigo, todas as informações
que eles tinham e disse que eu deveria ficar preocupada. Fui na delegacia,
inclusive ele foi comigo fazer B.O., mas os policiais o tempo todo me desencorajavam
a prosseguir. Falavam que não daria em nada. Mas eu fiz o B.O. e citei o nome
do Felipe Leme. Só que não fui mais na delegacia porque eles falavam que não ia
dar em nada. Depois procurei um advogado, que me indicaram para processar o
Felipe, e o advogado falou assim: ‘eu conheço o Felipe, a índole dele não é
essa de fazer essas coisas’. Me cobrou caríssimo, já me desencorajando de
processar, sabe?”.
Teresa conta que só
queria se esquecer de tudo e viver em paz. Passou a ignorar a situação. Uma vez
fora das redes, e bloqueando chamadas indesejadas, foi saindo do alvo aos
poucos.
“Acho que o melhor é
me dar um nome fictício, porque qualquer coisa relacionada a eles, lembrando da
minha existência, me apavora. Passei muita dificuldade financeira até me sentir
segura de novo para trabalhar e andar na rua. Eu cheguei no ponto de arrumar
minha mala para me internar. Quero que ele seja punido de alguma forma pelo que
ele fez, mas só de imaginar eles lembrando que eu existo me dá um calafrio. Foi
horrível. É um inferno mesmo na vida da pessoa. E ainda mais que para mim a
internet não é fonte de renda, eu não sou nada pública. O que eles querem é que
a pessoa suma da internet, ou tire a própria vida. Essa é a vitória para eles”,
concluiu.
Fonte: Fórum
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