Carlos Castilho: Adeus ‘bom cidadão’,
bem-vindo ‘cidadão comunicador’
Você provavelmente
ainda não se deu conta, mas as coisas estão começando a mudar intensa e
rapidamente quando lidamos com a informação. Uma das novidades é a que muda a
função das pessoas comuns no chamado espaço público da comunicação. Até agora,
para alguém ser considerado um ‘bom cidadão’, comprometido com a democracia,
era indispensável ser um indivíduo bem-informado. A informação era o principal
referencial da atividade social, econômica e política.
Mas desde a chegada da
internet e das redes sociais as coisas começaram a mudar lenta e
irreversivelmente. Não basta mais ter informação. O mais importante passou a
ser a disseminação de dados, fatos, eventos e ideias capazes de ampliar o
conhecimento das pessoas. A vida democrática passou a ser influenciada por um
novo tipo de cidadão, o comunicador.
A mudança já pode ser
vista no comportamento dos usuários de redes sociais, um universo que hoje
reúne quase quatro bilhões de seres humanos em todo o planeta. Três bilhões só
na rede Facebook. É neste ambiente digital que diariamente são publicados 2,5 quintilhões
de dados formatados em bytes,
distribuídos em 41,6 milhões de postagens por minuto no WhatsApp; 306,4 bilhões
de mensagens diárias de e-mail; o equivalente a 300 horas de vídeo são
publicados por minutos no YouTube; e dois milhões de notícias diárias só nos
maiores jornais do mundo.
Esta avassaladora
quantidade de informação disponível na internet superou a capacidade dos
jornalistas e da imprensa de contextualizar e conferir significado a toda esta
massa de dados. Só nos Estados Unidos, o país com a imprensa mais avançada do
mundo, 26% dos jornalistas perderam seus empregos entre 2008 e 2020. Aqui no
Brasil, segundo a Federação Nacional de Jornalistas, quase 13 mil jornalistas
com carteira assinada foram demitidos (21,3% do total). No mundo, acredita-se
que cerca de 1/3 dos jornais e revistas impressos tenham deixado de circular
desde o início do século. Segundo o pesquisador norte-americano Erik Peterson,
é possível que entre 300 e 500 questões políticas deixaram de ser investigadas
jornalisticamente devido ao desemprego de profissionais e ao fechamento de
jornais e revistas.
<><> A
agonia do ‘bom cidadão’
Isto mostra como a
indústria da imprensa tem cada vez mais dificuldades para abastecer a cidadania
com a quantidade adequada de notícias e informações necessárias para a
sobrevivência do ‘bom cidadão” convencional. Por outro lado, o público foi
empoderado pela digitalização e pelas redes sociais na internet, tornando-se um
protagonista cada vez mais proativo no conjunto da sociedade. A conclusão
inevitável é que há necessidade de uma nova relação entre jornalismo e o
público, uma possibilidade que, segundo pesquisadores como a também
norte-americana Nikki Usher, acabará se materializando através do ‘cidadão
comunicador’.
A nova relação entre
jornalismo e o público reduz a participação de repórteres e editores na coleta
e processamento de notícias de atualidade porque as pessoas comuns, donos de
empresas, governantes e políticos usam cada vez mais as redes sociais e aplicativos
para divulgar o que está acontecendo ou anunciar decisões que afetam a
sociedade. Mas, em compensação, aumenta extraordinariamente a importância e a
responsabilidade dos profissionais do jornalismo na investigação de questões
complexas e no patrulhamento de governos, empresas e entidades públicas,
missões que tradicionalmente foram afetadas por interesses comerciais de donos
de empresas jornalísticas.
<><> Para
que serve o jornalismo hoje?
A ascensão do ‘cidadão
comunicador’ não reduz a importância do jornalismo no âmbito da informação
pública. Apenas torna necessária uma adequação das funções de repórteres (em
texto, áudio e imagens), editores, comentaristas, ilustradores e programadores à
nova lógica social, política e econômica da era digital. Funções novas como
curadoria de notícias, para reduzir a desorientação informativa, e tutoria
sobre uso da informação para combater fake news, a desinformação e o mau uso da
inteligência artificial na internet.
Tudo isto está
acontecendo também por conta de alterações ainda pouco perceptíveis para o
grande público na dinâmica da democracia. Se antes a informação era fundamental
na incorporação dos cidadãos ao sistema democrático, agora a peça-chave passa a
ser a comunicação. Na época da escassez e lentidão no suprimento de notícias,
quem tinha informação tinha poder, o que reduzia drasticamente o número
daqueles que podiam interferir em decisões cruciais para a sociedade.
Hoje, na era da
avalanche noticiosa, da informação em tempo real (ao vivo) e do processamento
de volumes imensos de dados através da inteligência artificial, disseminar
conhecimentos, experiências e realidades se tornou muito mais importante do que
guardar informações. Esta é a principal razão pela qual os chamados
influenciadores digitais ganharam tanta importância nas redes sociais.
• A nova função do jornalismo na era das
“várias verdades”. Por Carlos Castilho
Até a chegada da
internet, o grande paradigma do jornalismo era a preocupação com a verdade, mas
a partir do momento em que passamos a ter que conviver com “várias verdades” na
era digital, surgiram inevitáveis questionamentos ao discurso e à estrutura da
profissão. A nova realidade da comunicação e informação está nos forçando a ser
mais conselheiros do que vendedores de notícias, uma mudança que implicará o
desenvolvimento de novas rotinas, regras e valores.
A busca da verdade
como atividade profissional estava ligada ao objetivo de colaborar no
surgimento de “bons cidadãos”, categoria social indispensável ao funcionamento
de sistemas políticos baseados no liberalismo econômico e na democracia
política. Mas quando as novas tecnologias digitais de comunicação e informação
criaram uma avalanche noticiosa na internet, surgiram o que se convencionou
chamar de “várias verdades’’, ou seja várias percepções e opiniões sobre um
mesmo dado, fato ou evento.
Com isto, os
jornalistas são jogados num novo ambiente informativo onde deixam de ser os
porta-vozes do que é certo ou errado em matéria de informação publicada, para
funcionar como curador de notícias. Curador
é aquele profissional que ajuda as pessoas a identificarem qual das
“várias verdades” é a que melhor atende as necessidades individuais ou
coletivas. Foi o próprio público que passou a exigir este tipo de
aconselhamento, como mostra a multiplicação de influenciadores na internet.
A superoferta de
notícias na internet disponibiliza em média dois milhões de artigos inormativos
online produzidos por grandes empresas jornalísticas e de marketing, segundo
dados da empresa Userarch. Fica evidente a enorme sobrecarga de trabalho e a
responsabilidade de fazer escolhas envolvendo temas cada vez mais complexos e
diversos. Este novo contexto profissional é complicado ainda mais por fenômenos
novos como as fake news e a desinformação gera inevitáveis conflitos com as
rotinas, regras e valores ainda vigentes na maioria das redações.
Segundo a pesquisadora
norte-americana Nikki Usher, estamos começando a viver uma “democracia
pós-imprensa”, um regime onde os jornais continuarão a existir e ser
importantes, mas com uma função social diferente da atual. Menos um negócio
lucrativo e mais um equipamento comunitário, similar a uma assessoria jurídica
ou curadoria de consumo.
Do cidadão
bem-informado ao cidadão comunicador
Mas, seja qual for a
nova função da imprensa na era digital ela terá que achar soluções para a crise
no modelo de negócios responsável pelo fechamento de jornais, revistas e
emissoras de rádio. Aqui no Brasil, 17 publicações fecharam as portas entre
2018 e 2021 por conta de dificuldades financeiras. Só em 2021, foram 12 os
jornais, revistas e emissoras de rádio que saíram do mercado, quase um por mês.
Nos Estados Unidos, 2.500 jornais deixaram de circular desde 2005, um fenômeno
cuja intensidade é maior entre publicações locais que, em 2023, desapareceram
ao ritmo de 2,5 jornais por semana. Os dados levantados por pesquisadores da
Faculdade Medill de Jornalismo, da Universidade Northwestern , em Illinois,
Estados Unidos indicam também que cerca de 1/3 dos 24 mil jornais locais
norte-americanos também desaparecerão até o final deste ano.
A sobrecarga de
trabalho dos profissionais que ainda estão empregados e o contínuo fechamento
de jornais mostram que a imprensa convencional encontra cada vez mais
dificuldades para atender seu objetivo de formar cidadãos bem-informados. As
consequências destas dificuldades podem ser medidas na queda da credibilidade
na imprensa no mundo e o aumento do chamado negacionismo informativo, pessoas
que não se interessam mais por notícias.
Como os sistemas de
disseminação de notícias já começaram a mudar em consequência de inovações
tecnológicas, esta transformação incide diretamente sobre o modelo de
participação dos cidadãos e a função exercida pelos jornalistas. O “bom
cidadão” num regime democrático está deixando de ser avaliado pelo grau de
consumo de informações e notícias e sim pela intensidade com que promove a
circulação destas informações e notícias no ambiente social onde está inserido.
O cidadão bem-informado está deixando de ser o paradigma da sociedade para ser
substituído pelo cidadão comunicador, aquele que promove o bem-estar geral por
meio da circulação de informações.
Já o jornalista, está
deixando de ser uma espécie de empacotador de dados, fatos e eventos para
transformá-los em notícia capaz de atrair a atenção do público e, portanto,
vendável a anunciantes. Sua função como participante insubstituível na
qualificação dos fluxos de informações torna-se ainda mais relevante na era
digital, pois cabe aos profissionais papel chave na checagem da veracidade,
relevância e pertinência das ‘várias verdades’ a que uma comunidade está
sujeita no caos informativo das redes sociais na internet.
• Balão de ensaio e plantação: os
interesses no jornalismo político. Por Rodrigo Daniel Silva
Há duas expressões que
são recorrentemente usadas por jornalistas e agentes políticos: “balão de
ensaio” e “plantação”. A primeira podemos definir como aquela informação
estrategicamente vazada com a finalidade de avaliar antecipadamente os
possíveis efeitos de uma determinada medida. Isso acontece, por exemplo, quando
uma fonte do governo diz, na maioria das vezes sob sigilo, que haverá uma alta
de impostos para verificar qual a reação do mercado.
Dito de outra forma, o
“balão de ensaio” é uma “plantação” de uma informação cujo objetivo da fonte é
ter conhecimento antecipado do que irá “colher”. Entretanto, nem toda
“plantação” é um “balão de ensaio”, isto porque nem sempre ao “plantar” uma
informação a intenção da fonte é conferir de antemão os possíveis efeitos.
Um ator político que
repassa a um repórter uma denúncia (verdadeira ou não) contra seu adversário
tem como finalidade apenas prejudicar seu oponente. Dessa forma, podemos dizer
que a “plantação”, diferentemente do “balão de ensaio”, tem finalidades diversas.
A plantação, inclusive, pode ser em benefício do próprio “agricultor”, ou seja,
do autor da informação. Já anotou o escritor francês Honoré de Balzac, em Os
Jornalistas, que, diante da concorrência por um cargo desejado, “pode impedir a
nomeação de seu rival fazendo badalar a sua com elogios por todos os jornais”.
A prática de
“plantação”, caracterizada pela disseminação de informações com um propósito
específico, possui pelo menos três objetivos distintos: 1) avaliar a reação a
uma medida específica; 2) causar prejuízo a algo ou alguém; e 3) favorecer a si
mesmo ou a terceiros.
Encontrar uma fonte
verdadeiramente altruísta é possível. Porém, no âmbito da política, onde a luta
pelo poder é intensa, isso se torna mais desafiador. Como bem observou a
jornalista Cristina Serra, durante participação no podcast Repórteres do Poder,
a maior dificuldade para quem cobre política é desvendar o interesse de cada
ator político. “O jornalista está no cruzamento de todo tipo de interesse que
atravessa a política institucional brasileira. Quando falo que está no meio
deste cruzamento de interesses, é porque a gente sabe que os lobbies do poder
econômico atuam fortemente fazendo seu lobby, pressão para legislações que
atendam seus interesses. Ou contra legislações que contrariam seus interesses.
Então, quando se está em Brasília cobrindo o Congresso, tem que entender,
dentro dos 513 deputados e 81 senadores, quem representa o quê, representa que
força política e quais os interesses econômicos que as forças políticas
representam e defendem”, afirmou ela.
É preciso salientar
que o fato de a divulgação de uma informação interessar à fonte ou a um grupo
específico não a torna impublicável ou, em outras palavras, sem interesse
público. Por outro lado, a maneira correta de agir jornalisticamente seria
fornecer uma explicação clara ao leitor sobre quem se beneficia com tal
notícia.
Agora, é necessário
distinguir uma interpretação equivocada do repórter de uma “plantação”.
Imaginemos que uma determinada fonte informou ao jornalista que o prefeito de
uma cidade tem se queixado do secretário da Casa Civil. E, na avaliação dessa
fonte, o prefeito acabará exonerando o auxiliar. Se a reportagem é construída
da seguinte forma – “Prefeito avalia exonerar secretário da Casa Civil” -, há
um erro. Por quê?
Em momento algum, a
fonte informou que o prefeito avalia exonerar, mas sim que ela – a fonte – tem
a impressão de que, diante das insatisfações, o secretário acabará exonerado. O
certo, portanto, seria: “Aliados acreditam que prefeito está insatisfeito e irá
exonerar secretário”.
No exemplo mencionado,
é importante frisar que, se a fonte informou ao repórter sobre a suposta
insatisfação com o secretário e a iminente exoneração dele, mas não há queixas
nem o prefeito cogitou tal exoneração, então trata-se de uma informação incorreta,
conhecida no jargão jornalístico como “barrigada”. Neste caso, há apenas um
interesse da fonte em prejudicar o secretário.
Antes de concluir, é
necessário destacar mais um ponto. A não concretização de uma “plantação” não
significa, por si só, que houve uma “barrigada”. Por exemplo, quando três nomes
são considerados como possíveis candidatos a governador e uma reportagem destaca
qual deles parece estar à frente como favorito, mas essa informação não se
confirma, não necessariamente indica um erro na apuração. Pode ser simplesmente
que houve uma mudança de planos entre os responsáveis pela definição do
candidato. Afinal, já dizia o ex-governador mineiro Magalhães Pinto que
política é como nuvem: você olha, está de um jeito; e olha de novo, já mudou.
No entanto, é essencial que o jornalista seja capaz de explicar por que o nome
que parecia ser o favorito não foi escolhido.
Decerto, desvendar e
dar transparência aos interesses por trás das ações dos agentes políticos é o
maior desafio do jornalista que cobre o campo político. Muitas decisões ocorrem
nos bastidores de forma oculta e um repórter político tem que ter a habilidade
de investigar e compreender o contexto político em que está inserido. Não se
pode apenas relatar discursos e promessas.
Também deve expor os reais motivos das ações dos atores políticos.
Fonte: Observatório da
Imprensa
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