Brasil pode ter milhares de superdotados
que não sabem de seu alto QI
Em uma manhã de sábado
nublada, no fim de junho, o universitário Rafael Rocha foi até o Parque
Tecnológico São José dos Campos, no interior de São Paulo, por conta de uma
antiga desconfiança sua: a de que é superdotado.
Ele diz que se
alfabetizou bem mais cedo do que o esperado e que sempre teve muita facilidade
na escola.
“Sempre soube fazer [a
forma dos] os números, e eles [na escola] fazem você repetir várias vezes. Nem
me lembro quando comecei a aprender a escrever, porque já sabia com 5 anos”,
conta Rafael, que tem 21 anos e estuda Ciência de Dados.
Ele foi uma das três
pessoas que foram naquele sábado fazer um teste de QI com duração de apenas
seis minutos, aplicado pela organização Mensa Brasil, cujo formato é mantido em
segredo.
A Mensa Brasil é o
braço local da Mensa Internacional, uma organização fundada em 1946 no Reino
Unido para reunir superdotados.
Para ser aprovado e se
associar à Mensa, é preciso fazer mais de 130 pontos no teste de QI — a média
no Brasil é de pouco mais de 83 pontos, segundo os cientistas Richard Lynn e
David Becker, no livro The Intelligence of Nations (A Inteligência das Nações,
em tradução livre), de 2019.
Outro candidato,
Rafael Moreira, de 35 anos, foi parar naquela prova um pouco por acaso. O
profissional de tecnologia está investigando se tem transtorno do déficit de
atenção com hiperatividade (TDAH) e, durante uma avaliação neuropsicológica, um
dos testes constatou que ele tinha alto QI.
Assim, surgiu a
possibilidade de que sua falta de concentração em diversas atividades seja
consequência não do TDAH, mas de uma superdotação.
"A avaliação
neuropsicológica nem era sobre QI. O objetivo era para tratamento psicológico.
Aí saiu [o resultado]. Achei estranho, vi o valor e achei alto", diz
Moreira, que resolveu fazer mais um teste, dessa vez aplicado pela Mensa.
Os resultados dos
testes realizados naquele sábado seriam comunicados aos candidatos dentro de
duas semanas.
Não existe uma
definição consolidada para o que são pessoas superdotadas, mas esse termo se
popularizou para identificar quem tem uma inteligência muito acima da média.
Alguns especialistas
argumentam que o raciocínio lógico, que é medido pelos testes de QI, não deve
ser a única e pode não ser a melhor medida para identificar pessoas muito
inteligentes.
Por isso, alguns optam
pelo termo “altas habilidades”, usado para apontar quem é fora da curva em mais
áreas, como artes, comunicação e esportes.
As estimativas de
quantas pessoas são superdotadas também variam bastante.
A Mensa trabalha com a
estimativa de que 2% da população mundial tem alto QI (com resultado igual ou
maior que 130 pontos no teste).
Com este percentual,
considerando que o Brasil tem 203 milhões de pessoas, segundo o último Censo
Demográfico, haveria cerca de 4 milhões de brasileiros “superinteligentes” —
termo que a Mensa prefere usar.
Mas até agora, a
organização identificou apenas 2,6 mil deles e, por isso, diz que o Brasil é
uma “potência intelectual adormecida”.
Enquanto isso, o Censo
Escolar do ano passado apontou que há 26.815 alunos identificados com altas
habilidades ou superdotação nas escolas do país — o equivalente a 0,5% de todos
os estudantes da educação básica.
Mesmo esse número
parece ser subestimado se comparado às estimativas de outros países reunidas
pela Organização para Comércio e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Na China, calcula-se
que 1 a 3% dos estudantes são superdotados. Nos Estados Unidos, entre 1% e 11%
dos alunos recebem algum tipo de assistência por superdotação, a depender do
Estado. Já o México informa que 3% dos menores de idade têm QI alto.
Levando em conta estes
percentuais, haveria entre 470 mil e 4,7 milhões de estudantes superdotados no
Brasil — e isso apenas nas escolas, sem contar quem não está nelas.
É frequente na
imprensa, em publicações governamentais e até em artigos científicos a menção
ao que seria uma estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que cerca
de 5% da população de todo o mundo teria superdotação.
Mas a OMS disse à BBC
News Brasil que não reconhece esse dado e que não tem estimativas sobre o
percentual de superdotados.
A OCDE alerta que
varia bastante, de país para país, os percentuais, os métodos de cálculo e a
definição do que é a superdotação.
Diferente da Mensa, a
Associação Paulista para Altas Habilidades/Superdotação (Apahsd) vai além do
teste de QI e recorre também a avaliações com especialistas que analisam se uma
pessoa tem alta habilidade em suas áreas — como Biologia, Matemática, Artes
Plásticas, entre outras.
“O teste de QI não
mede a área cultural, artística, musical, interpessoal... Ele avalia a área
cognitiva. É mais um instrumento. Não é o único nem o definitivo”, diz a
pedagoga Ada Cristina Toscanini, presidente da Apahsd e pós-graduada em
administração escolar, educação especial e arte terapia.
Em uma matéria de 2009
da revista New Scientist, o pesquisador David Perkins, da Escola de Educação da
Universidade de Harvard, argumentou que “um alto QI é como a altura para um
jogador de basquete”.
“Há muito mais
[necessário] para ser um bom jogador de basquete do que ser alto, e há muito
mais para ser um bom pensador do que ter um alto QI.”
A psicóloga Regina
Helena Campos, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
mestre e doutora em Educação, está entre os que dizem que o QI não é uma medida
absoluta da inteligência.
“O que ele [o teste]
faz é apenas avaliar uma determinada característica em relação ao grupo. É uma
medida em relação ao grupo, não é uma medida absoluta. A gente não tem uma
medida absoluta do que é ser inteligente”, aponta Campos, presidente do Centro de
Documentação e Pesquisa Helena Antipoff.
Ela reconhece que os
estudos da inteligência na Psicologia são um campo antigo, fértil e consolidado
de pesquisa, mas diz que há aspectos da inteligência difíceis de serem
quantificados.
“Existe uma
inteligência que é de grupo: quando você participa de uma atividade coletiva,
de uma instituição de pesquisa, por exemplo, você troca informação e isso
alimenta o outro”, diz a psicóloga.
Carlos Eduardo
Fonseca, vice-presidente da Mensa Brasil, defende que os testes de QI são um
critério objetivo para selecionar associados, são adotados em diversos países
que têm boas práticas de educação e são referendados cientificamente pelo
Conselho Federal de Psicologia (CFP) no Brasil.
Fonseca afirma que os
testes de QI não exigem formação avançada, por exemplo em Cálculo ou
Estatística. Pelo contrário: muitas vezes eles usam apenas imagens, não
demandando nem a alfabetização, em alguns casos.
A superdotação não é
uma condição médica e nem um transtorno de neurodesenvolvimento e, sim, uma
característica individual.
A pedagoga Ada
Cristina Toscanini, da Apahsd, explica que os cientistas ainda estudam a origem
da superdotação, mas acredita-se que ela pode ser explicada em parte por
fatores genéticos e em parte por fatores ambientais, como hábitos, criação e
cultura.
“Em escolas públicas,
já ouvi professoras perguntando: você acha que vai achar superdotados aqui? E
encontramos. A alta habilidade não escolhe raça, não escolhe família abastada,
não escolhe nada.”
No ano passado, a BBC
News Brasil mostrou as histórias de duas crianças que foram identificadas como
superdotadas.
Theo e Nicolle
chamaram a atenção em suas escolas, e seus pais receberam da equipe pedagógica
a orientação para fazer consulta com neuropsicólogos. A alta habilidade foi
confirmada nos dois casos.
Fonseca, da Mensa
Brasil, diz que, quanto mais cedo a superdotação for detectada, melhor, porque
estas pessoas podem ser logo acompanhadas de forma apropriada.
Em caso de
desconfiança de que uma criança ou adulto tenha superdotação, ele indica
procurar psicólogos especializados ou neuropsicólogos, ou ainda a rede
municipal de educação — segundo ele, a principal porta de entrada para a
educação especial.
Mas há pais que
preferem esperar o momento mais oportuno para verificar se seu filho é
superdotado, como a família da menina Alice, que ficou famosa na internet por
falar palavras difíceis com 2 anos de idade.
No início de julho,
ela, agora com 4 anos, tornou-se apresentadora do quadro “Pequenos Gênios”, do
programa Domingão com Huck, na TV Globo.
No quadro, crianças
com altas habilidades, distribuídas em oito equipes, competem em desafios de
Matemática, memória e raciocínio. A equipe vencedora ganhará um prêmio em
dinheiro que pode chegar a R$ 50 mil.
“Entendemos que o
diagnóstico de altas habilidades pode ser benéfico em muitos casos, mas até
este momento não sentimos que seja necessário para o caso da Alice”, diz a mãe
de Alice, Morgana Secco, à BBC News Brasil.
"Ter uma possível
confirmação de altas habilidades não mudaria a nossa condução na educação dela
e acarretaria um rótulo que pode ser pesado de carregar. Talvez quando ela
entrar na escola e se sentirmos necessidade, procuraremos especialistas, mas por
enquanto seguiremos assim."
• 'Cuidado com a pressão'
Toscanini avalia que,
no Brasil, a busca por superdotados está chegando “muito tarde” e, muitas
vezes, a superdotação é confundida com hiperatividade, déficit de atenção,
distúrbio desafiador opositor e autismo
Por outro lado, a
psicóloga Regina Helena Campos avalia que a falta de identificação se deve em
parte a problemas mais urgentes da educação no Brasil.
"O problema, para
a gente, é incluir todo mundo [primeiro]", diz.
Os profissionais
formados em psicologia são os únicos autorizados a fazer testes de inteligência
no país.
Tanto a Mensa quanto a
Aspadh cobram pelos testes para detectar altas habilidades e por atividades de
acompanhamento posteriores, após a detecção — por exemplo, encontros para
estimular tais habilidades ou orientações sobre como lidar com a escola e os colegas.
A inscrição no teste
da Mensa custa R$ 98, e os membros pagam R$ 133 de anuidade. A Apahsd não
divulgou os valores cobrados e diz que oferece isenções para crianças de baixa
renda.
Os testes da Mensa são
apenas para maiores de 17 anos. Para crianças e adolescentes mais novos, a
família deve realizar à parte testes com um psicológo e depois apresentar os
resultados à organização.
Fonseca afirma que o
acompanhamento e os encontros organizados pela Mensa buscam acolher
apropriadamente pessoas identificadas com alto QI e alerta que é preciso
cuidado, no caso das crianças, com a pressão.
“Pessoas com alto QI
têm normalmente uma pressão grande por resultados, os pais enchem de
expectativas”, alerta Fonseca, que foi identificado com um alto QI aos 35 anos.
“Muita família que
chega nesse universo da superdotação e do alto QI fica um pouco deslumbrada. A
gente tem que ter cuidado com esse perfil. Vá ensinar o seu filho, dê muito
conteúdo para ele, para estimular o potencial dele, mas fique atento às
questões da criança, aos limites [da sobrecarga].”
A Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) inclui alunos com “altas habilidades ou
superdotação” — sem definir ou diferenciar os dois termos — no grupo daqueles
que têm direito à educação especial, assim como alunos com deficiência e
transtornos globais do desenvolvimento.
Nas escolas públicas e
privadas, não é preciso fazer um teste de QI ou ser avaliado por especialistas
para confirmar a superdotação e receber assistência especial — como a
complementação de atividades e a aceleração no progresso das séries.
A equipe pedagógica
pode apontar as altas habilidades por conta própria, explica a psicóloga
Cristina Delou, presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD),
uma organização nacional sem fins lucrativos dedicada à defesa dos direitos dos
superdotados.
“Quando a escola tem
consciência que o aluno tem competências acima da classe onde está e que ele
está sofrendo, porque não tem desafio ali, a escola faz o movimento da
aceleração de estudos. Mas não é toda escola que faz isso”, diz Delou.
Uma alteração na LDB
de 2015 previu a criação de um “cadastro nacional de alunos com altas
habilidades ou superdotação matriculados na educação básica e na educação
superior”. Até hoje, o cadastro não saiu do papel.
A BBC News Brasil
procurou o Ministério da Educação para saber se há planos e prazos para
implementar o cadastro nacional, mas a pasta não respondeu essa questão.
O órgão afirmou apenas
que, “no tocante às pessoas com altas habilidades/superdotação, esse Ministério
torna público o seu compromisso em romper com a invisibilidade histórica, desse
público, nas políticas de educação.”
Carlos Eduardo
Fonseca, da Mensa Brasil, diz que as políticas públicas para identificar
superdotados estão defasadas.
“Onde está o erro? Na
minha opinião, começa na identificação. Não tem investigação, não tem estímulo
a um pai, uma mãe, uma escola entender qual o volume da população de
superdotados ali dentro de um município, dentro do Estado e do país",
afirma Fonseca.
Ele diz que outro
exemplo disso é que faltam nas universidades programas para indivíduos com QI
alto.
“A gente não tem nada
otimizado para eles. Nunca ouvi falar de ninguém que acelerou os estudos numa
universidade. A educação brasileira não está preocupada em identificar as
pessoas com alto QI.”
Rafael Rocha diz que
sofreu muito bullying na escola por ter uma inteligência acima da média.
Isso é bastante comum,
explicam especialistas, com pessoas que são superdotadas mas não foram
identificadas como tais, porque há um desencaixe em relação à turma que pode
gerar conflitos e estranhamento.
“No começo, eu era
rejeitado pelas outras crianças. Depois, eu me enturmei, e depois fui rejeitado
de novo. Minha inteligência ficou travada por muitos anos por conta de bullying
na infância”, diz Rocha.
Das três pessoas que
fizeram o teste de QI da Mensa, ele foi o único aprovado.
Rocha diz que espera
que, como membro da Mensa, algumas portas se abram, por exemplo, bolsas de
estudos no exterior — onde ele diz que sempre quis morar, principalmente nos
Estados Unidos ou na Europa: "É o meu sonho."
Já Rafael Moreira não
passou no teste e diz que ainda está pensando se vai tentar de novo.
"Não fiquei
chateado, levei de boa", diz Moreira. "As métricas sobre inteligência
são um assunto novo para mim, mas eu acredito que é um indicativo de
predisposição e não um fator qualitativo para comparar as pessoas.”
Fonte: BBC News Brasil
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