Aporofobia dos migrantes, uma estratégia
política dos novos autoritarismos
Um dos desafios mais
graves que enfrentamos nesta primeira metade do século XXI diz respeito ao
crescimento social dos populismos autoritários e filofascistas que cresceram em
quase todos os países com diferentes maquiagens. A ascensão e o apoio social aos
grupos políticos autoritários cria perplexidade em quase todas as latitudes do
mundo. Europa aparece assombrada pela inédita popularidade de líderes e
políticos populistas da extrema direita, com grupos políticos de ampla
aceitação em quase todos os países, como o confirma o caso mais recente das
últimas eleições na França. Assim como a Itália, Hungria já são governadas por
líderes de populismo filo fascista, etc. Países como a Índia e Israel elegeram
governos claramente racistas e xenófobos, com políticas de perseguição violenta
dos não nacionais. Situação semelhante se apresenta nos Estados Unidos com a
ampla popularidade e conseguinte ameaça muito plausível do retorno de Donald
Trump à presidência da República. No contexto Latino Americano vivemos também
as turbulências dessa onda populista do autoritarismo filofascista, com a
experiência do governo Bolsonaro no Brasil, o atual governo de Javier Milei na
Argentina, entre outros exemplos.
Não deixa de ser
ilustrativo que um século depois da ascensão dos fascismos no mundo e das
terríveis consequências que eles trouxeram para toda a humanidade, estejamos
repetindo uma boa parte do roteiro político que esses movimentos autoritários
traçaram para se impor nas democracias no início do século XX. Uma das
estratégias mais incisiva utilizada pelos fascismos e replicada pelos atuais
movimentos autoritários é a fabricação de um inimigo como justificativa para
legitimar socialmente seu modelo político autoritário. Nesta estratégia, os
fascismos e os atuais movimentos autoritários seguem as teses da filosofia
política de Carl Schmitt, destacado filósofo do direito do regime nazista. Para
Schmitt a política é uma guerra contra o inimigo. E o inimigo é inerente à
politica.
A fabricação do
inimigo é um pressuposto essencial para a legitimação social dos movimentos
autoritários e também para conseguir ampla adesão social a suas consignas. Ao
fabricar o inimigo, os movimentos autoritários pretendem, num primeiro
movimento, inocular o medo na população em relação a essa suposta ameaça da
ordem social que se identifica com o inimigo fabricado. O medo é uma arma
politica muito poderosa. Hobbes, na sua obra o Leviatã, ponderou que o soberano
deverá saber utilizar politicamente o medo como instinto básico da
sobrevivência humana que torna dóceis aos súditos e submissas as vontades
amedrontadas. Uma população amedrontada pela suposta ameaça de algum inimigo,
real ou fabricado, se torna facilmente manipulável, pois o sentimento de vulnerabilidade
que o medo inocula gera a produção de vontades submissas a soberanos e
caudilhos salvadores de seus medos.
• A inoculação do medo e a produção do
ódio
A estratégia dos
fascismos e dos novos movimentos autoritários promove que uma vez fabricado o
inimigo, se projetem sobre ele a causa de todos os problemas sociais possíveis
ou imagináveis. Desse modo, o inimigo se torna a causa principal dos problemas
sociais vivenciados pela população. Os medos socialmente produzidos são
politicamente projetados contra a figura de esse inimigo fabricado contra o
qual a política deverá agir para salvar a população dos medos e dos perigos que
esses medos inocularam neles. A projeção estratégica do medo contra o inimigo
tem por objetivo produzir o ódio contra ele. O ódio é o subproduto político da
estratégia da fabricação social do inimigo. O ódio contra o inimigo é o
desdobramento perseguido na inoculação do medo. Quando o medo se transforma em
ódio é possível domesticar facilmente as populações para transformar esse ódio
em um seguimento político. A inoculação do medo ao inimigo tem por objetivo
construir uma cultura do ódio que propiciará a consolidação social do autoritarismo
como alternativa política.
Num terceiro
movimento, os movimentos autoritários propõem a estratégia biopolítica e
tanatopolítica de eliminar o mal social do mesmo modo como se extirpa um tumor
em um corpo biológico, ou seja, eliminando literalmente o inimigo de diferentes
maneiras. É nesta estratégia de eliminação do inimigo que os movimentos
autoritários procuram legitimar as diferentes medidas de força e violência como
a arma política necessária, eficiente e correta para eliminar a raiz dos
problemas sociais. Através da violência política, promovida de muitos modos, os
movimentos autoritários oferecem a solução e a salvação dos medos inoculados na
população e projetados contra o inimigo fabricado.
Num quarto e último
passo, os movimentos autoritários propõem um líder (führer) como a figura que
representa o verdadeiro poder soberano capaz de salvar a pátria e solucionar os
problemas sociais, eliminando de raiz o inimigo. Esse líder é apresentado como
um caudilho ou salvador de pátrias, capaz de solucionar os problemas sociais
com atos de força e se necessário de violência contra os inimigos da pátria. O
líder autoritário oferece soluções simplistas para problemas complexos através
de consignas elementares que canalizam os sentimentos primários da população.
Sendo que os sentimentos já foram modelados pelo medo do inimigo. Esses
sentimentos primários, explorados pelos líderes autoritários, costumam
utilizar-se de símbolos identitários de todo tipo para fabricar as identidades
fechadas: o nós contra eles. A identidade do nós é fabricada em geral por um
sentimento nacionalista artificial e fictício que envolve a captura e
manipulação alienante de símbolos nacionais; também é fabricada através de um
patriotismo simplista e vazio que explora sentimentos religiosos e culturais
como se fossem senhas de identidade contra os diferentes; e também o nós contra
eles é fabricado através de um forte componente racista no qual a raça
(pre)dominante se mostra como superior a raças ou etnias que eles chamam de
inferiores.
A história já nos
mostrou como os fascismos de início do século XX fabricaram seus inimigos
sinalizando a raça judia, os ciganos, os negros, etc., como culpados de todos
os males sociais. Também estigmatizaram como inimigos a todos os pensadores
críticos, a todos os opositores como sendo militantes marxistas, comunistas,
socialistas, anarquistas e até democrata cristãos e liberais, estes seriam os
inimigos da pátria que haveria que exterminar para salvar a pátria.
• O inimigo de hoje: os migrantes de
sobrevivência
E hoje, como se
fabrica o inimigo? Quais são os inimigos fabricados pelos novos autoritarismos?
Em cada país há uma certa singularidade na fabricação do inimigo ou no tipo de
inimigo que se fabrica para legitimar a aceitação social dos neoautoritarismos.
Contudo, numa escala mais global, se destaca a estigmatização da figura do
emigrante, como sendo a ameaça social mais grave que muitas sociedades
enfrentam. Como consequência, se projeta nos migrantes todos os estigmas da
figura de um inimigo que irá destruir a ordem social dos países nos quais eles
estão migrando. Na perspectiva do inimigo, o migrante foi projetado como uma
ameaça para a sobrevivência da ordem social e como consequência se tornou a
causa principal dos maiores problemas sociais como desemprego, inflação,
superávit público, gastos sociais, etc. Uma grande parte dos novos movimentos
autoritários se consolidaram fabricando a xenobofia como uma arma política e o
migrante como o principal inimigo da ordem social e da pátria. Em muitos casos
se fabrica o migrante como um inimigo da identidade nacional, que com seus
costumes diferentes vai modificar a essência nacional da pátria e, por tanto,
vai desintegrar os valores nacionais substituindo-os pelos valores diferentes.
Desse modo, a
xenofobia se tornou a estratégia através da qual os novos movimentos
autoritários inoculam o medo em grandes parcelas da população, projetando na
figura do migrante a causa principal dos problemas sociais. Como consequência a
xenofobia se tornou um dos principais desafios éticos e políticos que
enfrentamos no século XXI. O termo grego xenos (estrangeiro) e seu sufixo fobia
(medo, rejeição, ódio) refletem em parte o fenômeno político contemporâneo do
crescimento e amplo apoio social aos movimentos autoritários, dado que a
utilizam como arma para produzir o medo e o ódio contra o diferente. Contudo,
talvez seja conveniente aprofundar um pouco mais no tipo de xenofobia
fabricada, para melhor compreendermos a complexidade desse fenômeno e a raiz política
que o está impulsionando.
Um primeiro
pressuposto importante para uma leitura crítica da xenofobia fabricada é
reconhecer que uma grande parte de migração que se movimenta em grande escala
por todo nosso planeta é imposta pela necessidade de sobreviver às condições de
pobreza, às guerras ou às mudanças climáticas do planeta. São os migrantes de
sobrevivência. Estes migrantes de sobrevivência são obrigados a sair de sua
terra, não por uma escolha livre, mas pela simples necessidade de sobreviver. É
o impulso humano e vital mais primário de sobreviver que está provocando uma
grande parte do fenômeno migratório em escala global.
Concomitantemente aos
migrantes de sobrevivência, identifica-se um outro tipo de migração importante
que não está motivada diretamente pela sobrevivência, mas como consequência
natural da alta mobilidade humana que nossos tempos propiciam em virtude das possibilidades
tecnológicas, econômicas e culturais que facilitam o deslocamento em grande
escala. Muitos milhões de pessoas decidem migrar para outros lugares por
diferentes motivos que os estritamente de sobrevivência, por negócios ou
turismo, por exemplo. A título de exemplo podemos mencionar amplos
deslocamentos migratórios propiciados pelo fenômeno contemporâneo do turismo,
que é talvez o maior fenômeno de mobilização de populações em escala planetária
em toda a história da humanidade. Com tudo, o turismo e o turista nunca são
percebidos como ameaça social ou como inimigos da pátria. Muito pelo contrário,
eles são bem recebidos e se promovem políticas públicas para atraí-los.
Acontece que em muitas regiões do mundo, amplas populações de turistas temporários
decidiram se assentam como moradores
fixos, porque se sentiram atraídos pelas condições de vida, clima, custo de
vida, etc. Isso ocorre, por exemplo na Espanha que nas ilhas Baleares ou nas
Ilhas Canarias, assim como no sul da Espanha estão assentados amplos
contingentes populacionais de países nórdicos ou até grandes bairros
colonizados por xeques árabes, que inicialmente vieram como turistas e com o
tempo decidiram transladar seu domicilio habitual para estes novos lugares.
• Aporofobia dos migrantes
Em geral, estas amplas
migrações turísticas não são percebidas como um perigo social, pelo contrário
são muito bem acolhidas porque movimentam a economia com dinheiro gasto. Também
não se considera que rompem a identidade nacional com seus costumes diferentes,
com sua língua diferente, etc., mesmo que na prática já estejam modificando
substancialmente os modos de vida dos lugares onde se assentam. As populações
de migrantes com dinheiro são sempre bem vindas. Ou seja, o problema da
xenofobia aos migrantes que se alastra pelo mundo como um estigma ético não
corresponde com uma rejeição, desprezo ou ódio a todos ao migrantes, senão aos
migrantes de sobrevivência. Isso significa que a xenofobia fabricada pelos
novos movimentos autoritários tem por objetivo projetar o medo e o ódio contra
os migrantes pobres. Estes sim são projetados com uma ameaça à segurança
nacional sob todos os aspectos. Analisado de modo crítico, o medo e ódio
fabricado pelos novos movimentos autoritários não é uma mera xenofobia, mas uma
aporofobia. Ou seja, se fabrica o pobre, o migrante pobre, como o novo inimigo
social da pátria e dos valores nacionais. A xenofobia que se esconde e disfarça
por trás dos novos racismos e ultranacionalismos nada mais é que uma
aporofobia, um desprezo aos pobres, um ódio contra os pobres, que neste caso
são os migrantes.
A utilização política
da aporofobia não é algo inédito dos novos movimentos autoritários. O desprezo
aos migrantes pobres foi amplamente difundido na segunda metade do século XX,
quando teve lugar uma ampla migração do campo para as cidades, das regiões pobres
para as regiões ricas de cada país. No Brasil, por exemplo, a migração massiva
dos nordestinos para o Sul, o dos camponeses para os bairros urbanos, chegou a
ser um paradigma da favelização e medo desses pobres que se converteram no
perfil dos ignorantes e até dos marginais perigosos. O mundo inteiro viveu
movimentos migratórios semelhantes, com um amplo sentimento de aporofobia,
desprezo e rejeição desses migrantes rurais pobres.
Embora o Brasil seja
um país ainda de migrantes e não vivamos agora a experiência de uma migração
intensa de estrangeiros, em escala global o movimento dos migrantes de
sobrevivência se intensificou nas últimas décadas e a perspectiva é que dada a
desigualdade estrutural da riqueza no mundo, nas próximas décadas a migração
continue e a ser uma forma de sobrevivência para milhões de pessoas. Nesse
contexto, nos diferentes países em que os novos movimentos autoritários se
consolidaram, o fizeram explorando o sentimento de aporofobia contra os
migrantes. O paradoxal é que uma grande parte da população que adere a esta
aporofobia são filhos e netos de migrantes rurais que em décadas passadas
tiveram que suportar esta mesma realidade.
Agora a primeira e segunda geração daqueles migrantes rurais vêm chegar
a outros migrantes pobres e estrangeiros em situações muito semelhantes às que
viveram seus pais e avós quando migraram do campo para as cidades. Estes novos
migrantes são estigmatizados com a marca da xenofobia, como se fosse um mero
ódio aos estrangeiros, ou um ódio porque são estrangeiros, quando na verdade é
uma aporofobia, um desprezo aos pobres e
a sua condição de pobreza. Se esses mesmos migrantes de sobrevivência viessem
com dinheiro para se instalarem num país, não experimentariam nenhuma
xenofobia. O desprezo e o ódio é por serem pobres, por serem migrantes de
sobrevivência.
A xenofobia propalada
pelos novos movimentos autoritários é uma aporofobia que se estende como uma
sombra de ódio contra os migrantes por uma grande parte do planeta. A
aporofobia se camufla sob as bandeiras do patriotismo, dos ultranacionalismos e
das identidades fechadas. Por trás destes patriotismos e ultranacionalismos
aporofóbicos está produção da cultura do ódio ao inimigo, neste caso ao
migrante de sobrevivência. A construção do ódio aporofóbico contra os migrantes
de sobrevivência tende a se constituir um sentimento irracional, visceral, que
desemboca no fanatismo político. Este fanatismo político é um produto histórico
resultado de um processo de inoculação do medo ao inimigo e da fabricação da
cultura do ódio, neste caso aos migrantes.
• Dilema ético da violência aporofóbica
A aporofobia é muito
mais que xenofobia. Não se despreza e odeia a todos os estrangeiros, mas aos
estrangeiros pobres. Assim como o antissemitismo foi um sentimento fabricado
pelo nazismo e fascismos que produziu um sentimento irracional de medo e ódio a
pessoas de outra étnica, a xenofobia aporofóbica é produzida como um sentimento
de medo e ódio aos migrantes pobres cuja presença é considerada por estes
movimentos autoritários um perigo para as vidas das pessoas e para a segurança
nacional. A aporofobia se converteu no combustível político dos novos
movimentos autoritários filofascistas que assolam o planeta. O discurso
patriótico e ultranacionalista esconde a estratégia aporofóbica de desprezo aos
estrangeiros que são pobres, aos migrantes de sobrevivência, e não aos
migrantes que se instalam em mansões ou
ocupam bairros e até cidades turísticas colonizando-as com culturas diferentes.
Não se tem medo do
diferente, do estrangeiro, quando este é rico. Semeia se o medo dos migrantes
pobres. Eis o dilema ético que deve desmascarar e desconstruir a estratégia
aporofóbica dos novos movimentos autoritários. Talvez um dos referentes éticos
mais potentes de nossa cultura para confrontar a estratégia aporofóbica dos
novos autoritarismos seja a parábola do Samaritano. Nela, Jesus retrata com
plasticidade ética os diferentes personagens de nosso tempo. Perante um
estrangeiro mal ferido, todos passam olhando para outro lado, desprezando-o por
ser estrangeiro, indiferentes a seu sofrimento por ser desconhecido. Até que
outro estrangeiro, um samaritano, enxerga nele um ser humano necessitado de
compaixão e solidariedade. A compaixão e a solidariedade que enxerga no outro
um semelhante e não um estrangeiro é que salva a vida. Enquanto a estratégia
política de fabricar o inimigo insiste em ver nos migrantes pobres um inimigo,
a parábola do samaritano provoca a interpelação ética de modificar o olhar para
enxergar no diferente um semelhante, no estrangeiro um próximo. Afinal, de
alguma forma todos somos migrantes e estrangeiros sobre este mundo.
Fonte: Por Castor M.M.
Bartolomé Ruiz, para IHU
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