A trilha sonora transfeminista que está
agitando as ruas da América Latina
Centenas de milhares
de mulheres lotam as ruas da capital Argentina todos os anos em manifestações
feministas, antifascistas, pela legalização do aborto, pela memória dos
torturados e desaparecidos da ditadura, contra o feminicídio, contra a
homofobia, a transfobia, contra a atual política econômica e a ascensão de
ideologias neonazista. Em diversos países, nas avenidas fechadas da América
Latina, ressoam, durante os protestos, palavras de ordem musicadas por mulheres
e ritmadas a muitas mãos. Artistas como Sara Hebe, Krudas Cubensi, Ana Tijoux e
Fémina, viram na última década suas músicas ativistas ganharem novas
intérpretes e seu som feminista aquecer as ruas. Suas letras lambem as calçadas
feito labaredas atiçadas e a cena musical urbana se modifica, no mesmo ritmo
acelerado em que mudam também as cidades.
Aos mais atentos, nos
toca perceber que assim como é possível organizar as emoções e as angústias
humanas em torno de um beat, é necessário traçar a luta política a partir do
movimento frenético dos corpos que experienciam as vicissitudes, as mazelas e as
delícias de uma metrópole dos nossos dias. É imperativo compreender o que
mobiliza estes corpos e neste quesito, a rapper argentina Sara Hebe tem muito a
nos ensinar e inspirar.
Suas canções,
retumbantes nas efervescentes encruzilhadas de Buenos Aires, ultrapassaram os
limites das casas de shows e das plataformas digitais, tomaram as ruas durante
as mobilizações feministas da última década na Argentina, no Chile, na Colômbia
e romperam fronteiras até mesmo entre os gêneros musicais, o que por vezes
parece desagradar a indústria e colocar a artista em posição de representar com
cada vez maior propriedade a luta por liberdade e justiça social na criação de
algo novo.
Nascida em 1983, em
Trelew, na Patagônia argentina, territorialidade também marcada em sua
construção histórica pelos horrores da ditadura militar. Ao mudar-se para
Buenos Aires, lá nos idos 2007, foi que iniciou oficialmente sua carreira
musical entre o Rap, o Hip-hop e o Dance hall, emprestando a eles uma atitude
punk e desbravando novas possibilidades estéticas para a música latina. Lançou
seu primeiro álbum em 2009, La Hija del Loco, um tremendo sucesso, provando já
a partir dali sua particular habilidade de traduzir a pungência da vida urbana
na riqueza do encontro entre a consciência social e a expressão artística
singular, independente, múltipla, contagiante e autêntica. Seja na batida do
hardcore punk, do rock, do reggaeton, na cumbia antifascista, na música
eletrônica, na levada do trap, do hip-hop, do funk ou na viagem estética pelo
hyperpop, a expressão musical de Sara Hebe atravessa e movimenta muitos corpos,
inclusive corpos políticos. Sua música traz a sensualidade e o frisson das
ruas, é contemporânea e atemporal, arrojada e livre. Seu som convida o corpo à
catarse ao mesmo tempo em que convida o ouvinte a questionar sua própria
maneira de existir no mundo.
Almacén de datos;
Puras Wachas; Jove; Histórika; Hulk; Movimiento Social el Deseo; Teta; FCK the
PWR; Un cambio e La Bronca são só algumas das músicas que você precisa ouvir
para entender a potência e a complexidade da poesia urbana de Sara Hebe.
Tendo 5 discos de
sucesso, com músicas altamente políticas e vibrantes, sendo uma enorme
referência na atual cena musical urbana latino-americana, aos 40 anos recém
completados e em meio a mais uma turnê internacional, a artista vem ao Brasil
pela primeira vez a convite do bar latino-americano Sol y Sombra, para uma
apresentação icônica que vai acontecer no dia 19 de julho, no Bixiga, em São
Paulo e concede esta entrevista especial à revista Jacobina e ao Brasil de Fato
por ocasião e em virtude de sua presença tão aguardada no nosso pedaço de
América Latina.
LEIA A ENTREVISTA
• No último dia 9 foi seu aniversário.
Como você se sente nesse momento da sua vida? O que celebra do passado e que
desejos tem para o futuro?
SH - Me sinto bem. Não
tenho muitos problemas com a idade. Estou em um momento um pouco mais
tranquilo, sustentando este trabalho que é manter uma banda. Celebro do passado
tudo o que fui, tudo o que fiz e o que trabalhei, todos os cenários onde estive
e meus desejos para o futuro são de mais amor e paz para todo mundo, mais razão
para todo o mundo. Um milagre desejo… um milagre! Que mude os rumos de
intenções muito malignas que vejo que estão aflorando em toda América Latina.
Outro desejo é saúde, para todo o planeta, para todas as pessoas do planeta!
Claro, sobretudo para minha família, minha mãe, minhas irmãs e sobrinhos, para
os meus amigos, mas desejo saúde… amor e saúde mental para todo o planeta.
“Creio que o que fez
minha música irromper as ruas foi o fato de que havia uma combinação entre uma
mensagem explícita e panfletária no princípio.”
• Você é parte e referência da luta
transfeminista. Sempre fala de justiça social e de gênero, tanto nas tuas
letras, quanto em outras plataformas pelas quais você se expressa. É curioso, e
está genial, que a tua própria obra musical não imponha fronteira entre os
gêneros. Qual é o preço e quais são as implicações de ser uma artista que se
permite criar com esta (e por esta) liberdade?
SH - Muito bem, eu
gosto dessa pergunta sobre transfeminismo, e quando me perguntam eu sempre digo
que me considero transfeminista porque pra mim foi uma grande inspiração, uma
escola e um exemplo de luta o movimento das trabalhadoras sexuais, das travestis,
dos coletivos LGBTQI+, dos homens trans, das mulheres trans.
Para mim, temos que
falar e valorizar muito o transfeminismo, o trabalho e a luta de todas essas
pessoas que são as mais vulneráveis nas ruas. O preço e as implicações disto?
Não sei… talvez a indústria castigue um pouco, ou talvez te vire a cara. Talvez
não sejam os circuitos comerciais que se abram para você quando se é tão
explícita nestes temas. Mas não me importa. Isto é o que me comove e é sobre
isto que falo.
• Pela demanda de uma indústria musical,
especialmente em sua era digital, muitos artistas se despolitizam, se
plastificam, trabalham para os algoritmos… como você aponta em Almacén de
Datos, em Hulk e outras músicas mais. Você costuma falar, e demonstrar que é
possível “mudar a estética e manter a ética”. Qual é esta ética de que você
fala? E o que você acredita que te mantém tão comprometida com as causas
sociais e com a sua integridade artística?
SH - Sim, nestes temas
falo um pouco de toda essa cena puramente estética. Falo basicamente de uma
ética que significa sustentar acima da estética os valores, a sensibilidade, o
registro do humano, de como ele está, de como está sendo a distribuição de dinheiro
nas nossas pequenas empresas. Não sei se estou tão comprometida, mas estou
muito comovida e entristecida pelo presente, pela atualidade. E com o que sim,
me comprometo, é ir tocar, sempre que posso, em lugares onde isto faz falta.
Que não sejam somente
os cenários das capitais, ou das cidades onde o público pode vir me ver. É
claro, tento tocar o meu negócio que é o que sustenta a minha vida. Mas não sei
se isto se aplicou ao que te dizia… Falo da ética dos valores, da ética dos direitos
e falo da ética em si mesma. Do que é certo.
“Pego muitas coisas
que escuto por aí e depois a música volta às ruas e pode ser trilha sonora de
mobilizações.”
• Com as múltiplas linguagens musicais que
você explora, você acredita que atinge públicos diferentes? Quem são as pessoas
que assistem aos seus shows e que se identificam com a sua música?
SH - Sim, levo pessoas
diferentes, é muito diverso o público. Mas sim, a maioria que assiste meus
espetáculos é de mulheres, de maricas, de gente queer. Mas majoritariamente
mulheres. Gente que me escuta desde pequena, porque sua mãe já me escutava. As
mães vêm e as meninas, que já me escutavam aos 14 e agora já tem 24 anos às
vezes vem também. E sim, creio que tem razão, são muitas as linguagens musicais
que exploro e vou seguir explorando.
• Sua música está feita para mover o corpo
e suas letras, suas canções, são entoadas nas ruas para mobilizar lutas
sociais, ou seja, para mobilizar um corpo político. Você costuma dizer que
gosta de “escrever música e não panfleto”. Mas este é um fenômeno raro. O que
você acredita que fez a sua música irromper as ruas de forma tão orgânica?
SH - Creio que o que
fez minha música irromper as ruas foi o fato de que havia uma combinação entre
uma mensagem explícita e panfletária no princípio. Quando escrevia era mais
desse modo e logo tentei fazer poesia, que é uma poesia muito urbana, o que
acredito que ressoa com muita gente. Então essa música vem das ruas, está
escrita nas paredes. Pego muitas coisas que escuto por aí e depois a música
volta às ruas e pode ser trilha sonora de mobilizações.
“Creio que uma maneira
de ser antifascista é não se tornar polícia e tratar de fazer uma expansão do
coração, da forma de criação, que seja cem por cento amorosa.”
Acredito que há uma
ida e volta e que é isto o que acontece. Gosto da ideia da minha música
mobilizar um corpo político, mas também é para fazer dançar qualquer corpo. Não
quero fazer recortes. Quero fazer música para todo mundo. Fazer música só para
uma questão específica ou para um único setor tornaria um pouco “fascista” o
meu modo de fazer música e creio que uma maneira de ser antifascista é não se
tornar polícia e tratar de fazer uma expansão do coração, da forma de criação,
que seja cem por cento amorosa. Queria fazer música que chegasse a qualquer um
e não me importa quem a dance. Mas sim, é para um corpo político e minha música
sempre vai ter sua mensagem. Uma mensagem sensível e amorosa. Uma mensagem
direta contra os abusos do poder.
• A situação política e econômica da
Argentina foi de mal a pior. No Brasil, tampouco temos enfrentado ventos
favoráveis nestes quesitos. A extrema direita vem se fortalecendo em todo o
mundo. Qual você acredita ser o papel da música urbana em tempos tão obscuros?
SH - Veja, o papel da
música creio que está muito cooptado pelas indústrias monstruosas e admiro
muito os artistas da música urbana, mas não creio que seja uma obrigação, por
parte dos artistas, de opinar ou dar sua palavra acerca do tema. Muita gente não
tem uma opinião formada e não creio que isto seja algo ruim. Acho que existem
muitos artistas muito jovens na música urbana. Me parece lindo quando dizem
algo, quando podem se pronunciar a favor dos direitos humanos, das ações
democráticas, da liberdade de expressão, é muito lindo. Mas não julgo os que
não o fazem.
“Creio que seria
importante que aqueles que tem suas vozes amplificadas, porque estão na
indústria e no mainstream, se posicionassem e dissessem o que está acontecendo,
porque vivemos em países onde uma enorme parte das pessoas passa fome e frio.”
Por outro lado, me
encantaria que fossem mais responsáveis todos, que sentissem que as coisas
estão bastante tristes, porque a mensagem do governo é delirante e me parece a
mensagem de um extermínio, de uma homofobia, de uma xenofobia e de uma apatia
com o humano que são aterrorizantes. Então sim, creio que seria importante que
aqueles que tem suas vozes super amplificadas, porque estão na indústria e no
mainstream, se posicionassem, que dissessem o que está acontecendo, porque
vivemos em países onde uma enorme parte das pessoas passa fome e frio. Acho que
há muitos artistas e muitas mulheres artistas que tem essa consciência e talvez
não lhe seja fácil falar disto, mas espero que com o tempo possam se
pronunciar.
• Se você tivesse que eleger apenas uma
causa social, qual te pareceria mais ‘Urgente Hoy’?
SH - Não poderia
escolher uma única luta social. Há uma urgência de tudo porque o sistema é
extremo, a produção é extrema e, portanto, a miséria é extrema. Há cada vez
mais pobres. Cada vez mais crescem a Amazon, o Mercado Livre… não sei… creio
que urgente hoje seria deixar de consumir, o que, por sua vez, percebo
impossível, porque os monstros industriais seguem crescendo. Não sei. Defender
a liberdade de expressão e de manifestação nas ruas que se veem tão avassaladas
hoje em dia, sobretudo na Argentina. Me parece urgente acompanhar a luta de
anos das avós e mães de maio, como for possível. Isto é o que me parece
urgente.
• O que podemos esperar do show de 19 de
julho em São Paulo?
SH - O que podem
esperar do 19 de julho em que vamos estar no Sol Y Sombra é um show efusivo.
Vou com todas as ganas porque para mim é uma honra ir ao Brasil. Adoro a sua
cultura e adoro essa possibilidade que tenho com o pessoal do Sol Y Sombra que
é sempre um amor comigo e que fez muito para que a minha música estivesse
também tocando em São Paulo, em um lugar tão charmoso, em um ambiente que já
imagino maravilhoso de imigrantes latino-americanos no Brasil. Vou com todas as
ganas! Vou tocar músicas antigas, do início da minha carreira e alguns temas
novos. Vamos dançar e explodir em uma noite brilhante!
Aqui tem uma playlist
para que você se contagie pela poesia urbana politicamente engajada, que fala
de amor e de luta, e para que conheça a potente face transfeminista da música
latino-americana que emana das ruas.
Fica também o convite
para que você venha bailar este corpo latino e tomar uns tragos de felicidade e
rebeldia ao som de Sara Hebe no Sol Y Sombra, onde o movimento revolucionário
dos quadris é sempre garantido. O show é na próxima sexta-feira e nós te esperamos
por lá.
Fonte: Entrevista com
Sara Hebe, para Jessica Vianna, no Jacobin Brasil
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