terça-feira, 23 de julho de 2024

A radicalidade da vida estética

Em O sentido da vida, Contardo Calligaris, psicanalista cuja contribuição teórica é amplamente reconhecida, nos agracia com muitas provocações: desde o seu incômodo com a pergunta clássica no cumprimento brasileiro, “tudo bem?”, indo até os versos de Francesco Petrarca, “um bel morir tutta la vita honora”. Mas, se coloco estes dois exemplos é apenas para mostrar a variedade de assuntos por ele abordados, e não para supor uma hierarquia que separa as duas frases em extremos opostos.

Isso porque, ao falar do sentido da vida, Contardo Calligaris não aponta para uma noção extraordinária, mas se interessa pela vida cotidiana e suas tramas comuns, as chances que temos de alargar nossas percepções e enriquecer nossas experiências através da cultura, sim, mas em suma, a vida que ocorre sem o brilho imaginário de nossos ideais – narcísicos, políticos, etc.

Essa postura, de Hegel a Lukács, aparece sob o véu da arte romântica: traço da modernidade que tem por modus operandi tomar os objetos em sua acidentalidade, não expressando mais a harmonia entre forma e conteúdo. Mas, não seguirei com os autores na exploração do tema, especialmente não decretarei com Hegel o fim da arte por isso mesmo. Voltemo-nos a dois aspectos centrais no livro de Contardo Calligaris.

O primeiro refere-se à qualidade das experiências: assim como a vida não pode ser medida por uma finalidade, um telos que orientaria toda ação, a experimentação não deve estar sob a égide de um valor transcendente ou uma obrigação de felicidade. As experiências são consideradas melhores na medida em que propiciam uma vida interessante ao sujeito, mesmo que impliquem em descontentamento e/ou dor. Nas resenhas disponíveis na internet sobre o livro, este aspecto é amplamente abordado.

Vale, contudo, enfatizar uma frase-fórmula muito sagaz que Contardo ouviu de seu pai quando ainda era menino: “há livros que são escritos para tapar os buracos da estante, e há livros que são escritos para preservar os buracos na estante” (CALLIGARIS, 2023, p. 82). Em outras palavras: há livros feitos para aplanar o vazio que nos é constituinte e há outros, mais interessantes, que são feitos para que o vazio seja mantido. Fórmula charmosa, à la enigma da esfinge, e também convidativa: o que seria um livro que está na estante, objetivamente preenche um espaço dela, mas mantém o vazio nela?

Com esse elogio à complexidade aprendido pelo tão jovem Contardo, vamos esmiuçar com mais detalhes o segundo aspecto intrigante de seu livro: a radicalidade da vida estética. Em um esforço por reencontrar a história de sua família através de fotografias, especialmente sobre a trajetória de seu pai, o psicanalista descobriu que ele havia sido um militante antifascista desde setembro de 1943, foi prefeito em Mesero, em 1945, e era um partigiano (sem filiação partidária). Mas, os detalhes dessa vida tão intensa ele não sabia, já que seu pai não era um homem que dialogava tanto.

Aquelas fotografias, a Breda 37 cheia de munições com a qual se deparou na infância e, ainda assim, a ausência de um lado político expresso claramente por parte de seu pai, tudo isso intrigava muito Contardo Calligaris.

Reproduzo a seguir trechos do diálogo: “Eu sabia que meu pai tinha sido antifascista, mas não sabia até que ponto. Decidi interpelá-lo, ou melhor, provocá-lo: “Tudo bem, eu sei que você foi antifascista, mas por quê? Você não é comunista, sequer socialista, você é liberal (isso, na época, para mim, era quase uma injúria). Por que, então, você teria sido antifascista? Em nome de quê? (…) Ele levou bastante a sério a minha pergunta, silencioso por um bom momento. E finalmente me deu uma resposta que na hora me indignou (…). Ele respondeu assim: “É porque os fascistas eram muito vulgares”. Eu fiquei petrificado, pasmo diante da ideia de que ele pudesse ter tomado posição por uma razão que afinal de contas se resumia a um juízo estético – nada a ver com a luta de classe, nada a ver com o que eu reconheceria como valores ideais, nada a ver com interesses econômicos. Só um juízo estético”. (CALLIGARIS, 2023, p. 100-102).

Só um juízo estético… Só a busca por fundar uma conduta moral baseada num juízo estético. Chegar a arriscar a própria vida por um juízo estético e, com isso, dignificar a vida terrestre. Sem buscar um princípio suprassensível ou programa político que orientasse a ação, ele parte de sua liberdade em sentir um desgosto profundo pela forma baixa de pensar expressa no fascismo, pelo repúdio que causa ver um fascista.

 O comportamento do pai de Contardo Calligaris parece educar tal qual os romances de formação (bildungsroman) e, por isso, é capaz de atravessar o tempo e se comunicar conosco. As páginas seguintes do livro são dedicadas às hipóteses do filho sobre o que seria essa vulgaridade a que se referiu o pai, e das quais não nos deteremos.

Se a radicalidade da vida estética tomou a mente de Contardo Calligaris – e, confesso, também me tomou – é porque trata-se, sobretudo, de negar todas as respostas mais óbvias para se engajar numa luta armada e, neste momento, comprometer-se a lutar para que a vida não seja sufocada por visões de mundo extremistas. O direito à vida na sua radicalidade: o direito das pessoas de viverem em seus cotidianos, traçarem as linhas do seu destino, afirmar a vida enquanto algo que se desenrola em nós e através de nós.

É certo que essa compreensão exige uma sensibilidade e uma leveza ímpares para notarmos que a ela nada falta. Mas, confiante de que o filme mais recente de Wim Wenders (Perfect Days) fortaleceu esse tipo de sensibilidade, a beleza ordinária contida na prosa da vida, podemos nos deter com mais afinco no tema.

Ao deslocar a questão para o campo estético não se espera, contudo, desprezar o complexo campo político em questão. A este respeito, cada um/a de nós pode imaginar o que faria se o seu país fosse acometido pelo fascismo (no Brasil, dado o último governo, isso é razoavelmente fácil de imaginar). Não se trata de dizer que programas políticos são irrelevantes, que é preciso ser apartidário, nada disso. Trata-se do espanto em constatar que mesmo alheio a tudo isso alguém pôde tomar uma séria decisão estética-ética na vida – e o inverso seria verdadeiro, ou seja, alguém que só é tomado por imperativos da agenda política capaz de um refinamento estético dessa sutileza? Eis a questão.

Se insisto que a essa postura nada falta é porque não é preciso lamentar-se pelo fato dele não ter sido um comunista num tempo como aquele. Fundar um juízo estético como justificativa é esculpir um motivo singular para estar à altura de combater as forças reativas do fascismo, longe do risco de repetir qualquer slogan, longe de ser um sujeito assimilável num símbolo. Postura um tanto impopular e, por isso mesmo, interessante.

Infelizmente, sustentar essa posição singular quando falamos em grupos é difícil. Examinar cautelosamente os motivos para fazer o que se faz e convocar que cada um faça isso consigo próprio, abrindo espaço para a divergência, costuma ser assunto de filósofos/as e psicoterapeutas. Na política, no mais das vezes, opera-se através da lógica da Psicologia das massas – importantíssima contribuição de Freud para o assunto.

Então, a luta contra a vulgaridade passa a ser uma luta travada pela vida imanente (em contraposição à vida transcendente) e contra a boçalidade. Contardo diz que boçal é aquele que quer que o outro goze do jeito que ele pensa que é certo. No caso da Itália, através da figura de Mussolini, a boçalidade tomou forma através da crença absoluta numa “raça” e “nação”.

Diante disso, ficam os convites que as duas gerações de Calligaris nos deixaram: habitar o estilo como processo de individuação da vida, não opor estética a ética como se se tratasse de áreas inconciliáveis (e nem pressupor hierarquia em ambas), e ter coragem de não se afogar em ideais dominantes para constituir em si um corpo capaz de enriquecer a experiência vital – no aqui e no agora, consigo mesmo e com os outros.

 

Fonte: Por Amanda de Almeida Romão em A Terra é Redonda

 

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