quinta-feira, 11 de julho de 2024

A luta contra o tempo para evitar uma tragédia no Pantanal

Uma vez mais a cena se repete: Zilda de Souza passou dias observando a outra margem do Rio Paraguai, torcendo para que as chamas que consumiam a fazenda do outro lado não chegassem à comunidade ribeirinha onde vive no Pantanal sul-mato-grossense.

"Esse ano já queimou mais do que nos outros, estava pegando dentro da água, uma tristeza. Há muitos anos, o finado meu avô falou pra mim: ‘minha filha, eu não vou ver, mas você vai viver e verá, o mundo vai acabar com fogo'. É o que eu, com 54 anos, estou vendo hoje", comenta.

Como boa parte dos seus vizinhos, Souza vive da pesca hoje comprometida pelos incêndios que já bateram recorde neste ano. Até o início de julho, 700.725 hectares haviam sido destruídos pelo fogo, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ). Isso representa 19,29% do total queimado em 2020, ano da maior tragédia ambiental já vivida no Pantanal, quando o bioma perdeu um terço da sua vegetação.

"Olha, o que enfrentamos aqui foi assustador, porque a todo momento ficávamos no desespero do fogo vir para o nosso lado e atingir a nossa área. Qualquer faísca, qualquer fagulha que viesse para cá seria uma devastação total", comenta Virginia Paz, vizinha pescadora e responsável pela brigada de incêndio da APA Baía Negra. Uma mobilização criada após 2020, quando o fogo consumiu boa parte da área de preservação.

"Apesar de termos a nossa brigada preparada, passamos um momento de terror, pois talvez não conseguíssemos conter o incêndio. Então, dia e noite olhávamos o fogo só pedindo a Deus para proteger a nossa comunidade", relata Paz.

Apesar dos focos espalhados por todo o Mato Grosso do Sul, os incêndios se concentraram na margem esquerda do Rio Paraguai, entre a fronteira com a Bolívia e a BR-262, que liga Campo Grande a Corumbá. O munícipio abriga a força-tarefa de órgãos estaduais e federais que tentam conter as chamas antes do período mais crítico chegar. A cidade concentra quase 70% das queimadas.

·        Estiagem surpresa

Desde a última semana de junho o 3º Grupamento de Bombeiros de Corumbá recebeu o reforço de membros da Força Nacional de Segurança e de corporações de outros estados, além de aviões lançadores de água e o cargueiro KC-390 Millennium, da Força Aérea Brasileira (FAB). Com capacidade de 12 mil litros de água a cada sobrevoo, a aeronave já lançou 200 mil litros sobre os incêndios de Corumbá, segundo o governo.

A estes grupos se somam os brigadistas do PrevFogo, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, cuja equipe passou dos usuais 30 integrantes para mais de 200. Na última quarta-feira, um contingente de 30 brigadistas chegava de Rondônia após

Para auxiliar este batalhão de combatentes contra os incêndios, dois helicópteros do Ibama passam o dia levando e trazendo brigadistas e provisões para áreas de difícil acesso. Para o coordenador da operação, Charles Pereira, trata-se de um esforço inédito.

"Ter uma operação desse nível logo começando em junho é novidade para todos. Todo mundo foi pego de surpresa", avalia Pereira, que trabalha há 14 anos no órgão que promove prevenção e combate a incêndios florestais em todo país. "Nós esperávamos isso no período crítico, que é agosto, setembro, outubro. Ninguém esperava ver o Pantanal queimando desde o início de dezembro, janeiro, algo que as mudanças climáticas vêm promovendo."

Considerados apenas os seis primeiros meses do ano, 2024 registra as piores queimadas já vistas no Pantanal desde o início série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 1998. Foram 3.538 focos – 39% a mais que no mesmo período de 2020. O fogo já devastou 5% do bioma somente no primeiro semestre deste ano. A região atingida é seis vezes maior do que a área da cidade do Rio de Janeiro.

·        Novas terras secas

O Paraguai, principal rio do Pantanal, que normalmente sobe de janeiro a junho, atingindo em média 4 metros de altura, não sobe desde o começo de maio e hoje está mais de 3 metros abaixo da média histórica, segundo dados da Marinha. Com o fim da estiagem prevista apenas para outubro ou novembro, a tendência é que a situação se agrave.

"Os rios já estão no estágio de não drenar mais água de superfície, estão drenando água do subsolo, que está mantendo os rios para eles não secarem. Uma boa parte dos cursos d'água dentro do Pantanal, que normalmente nessa época estão com água, por causa da chuva e tudo mais, estão completamente secos", observa o pesquisador da Embrapa Pantanal Carlos Padovani.

O MapBiomas já havia apontado que o Pantanal perdeu mais de 61% da massa de água desde 1985 em relação à média histórica. Com isso, muitas áreas que permaneceram décadas submersas e abandonadas hoje estão sendo ocupadas para a pecuária.

A atividade é predominante há quase 300 anos no Pantanal e, com métodos tradicionais, convive bem com a manutenção do bioma. A vegetação campestre alagada durante parte do ano – o que impede a grande monocultura mecanizada – somada à pecuária adaptada a essa realidade fez com que o Pantanal, mesmo após dois séculos de ocupação humana, seja o bioma mais preservado do país, com 84% do território nativo.

O uso do fogo para a limpeza de áreas rurais é regulado pelo Código Florestal e exige a licença dos órgãos ambientais estaduais. Desde 11 de junho, o Instituto de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul) suspendeu estas licenças, até mesmo as em vigor, por tempo indeterminado. Segundo o governo estadual, foram lavrados 21 autos de infração e aplicados mais de R$ 10 milhões em multas de janeiro a meados de junho a proprietários que fizeram a queima no bioma sem licença.

"Essas regiões que estão queimando mais e queimaram em 2020 são propriedades rurais, com registro no CAR, mas que na prática estavam abandonadas por terem ficado submersas durante décadas. Esses últimos cinco anos mais secos as deixaram expostas, o que possibilitou a ocupação dessas áreas e o uso do fogo para permitir que cresça uma vegetação mais palatável para o gado", explica Padovani.

São justamente nos territórios com ocupação mais recente, próximos aos rios, riachos e corixos, com vegetação abundante e seca para queimar, onde estão os maiores focos de incêndio.

·        Todos a postos

Mangueira em punho e chapéu de boiadeiro, Divino Bispo Santiago, mais conhecido como Careca, enfrentava junto de bombeiros e membros da Força Nacional de Segurança o fogo que consumia a Fazenda São Bento, na qual trabalha como capataz desde que foi arrendada, há seis meses. O cenário corresponde com precisão ao descrito pelo pesquisador: em uma área extensa, a cerca de 6 quilômetros do rio Paraguai, se estende campos de um arbusto fibroso que queima, assim como o solo de turfa rico em matéria orgânica e onde o caminhar se torna mais difícil.

"O Pantanal já acabou.  Vai ser uma crise muito grande com essa falta de peixes, do turismo de pesca, que é a base da região. Vai ter muita gente desempregada", afirma Santiago. "Para quem, como eu, que nasceu e cresceu aqui, o Pantanal faz parte da gente, mas com essa destruição toda, nossos filhos e nossos netos nunca vão chegar a ver o Pantanal que nós vimos."

O trator vem e volta da sede da fazenda, com um caminhão pipa a reboque, trazendo 2 mil litros de água que resfria um pouco as chamas e permite que os profissionais entrem com borrifadores e sopradores – estes sim, limpando o terreno e impedindo que o fogo avance. "Em chamas muito altas, ele chega com a mangueira, joga, diminui a intensidade da chama e, assim, a equipe que está em solo combate esse incêndio. Agora a estratégia é empurrar esse fogo em direção ao rio Paraguai, que é o melhor modo de extingui-lo", explica o sargento Igor Vinicius Santos, que veio de Brasília para atuar em Corumbá.

A 180 quilômetros dali, na região do Nabileque, o fogo ameaça os trilhos da Linha Tronco da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que liga Bauru a Corumbá, é observado de perto pelo fazendeiro Carlos Davalo. Montado em um quadriciclo e com um pano amarrado no rosto para evitar a fumaça, ele vai orientando seus funcionários na tentativa de impedir que as chamas que destroem um palmeiral cheguem à sua propriedade.

"O Pantanal não é fácil, não. Tudo é muito: muito inseto, muita terra, muita água, muito fogo, mas é ajeitado e vamos trabalhando ele", comenta pouco antes de correr para outro ponto. Após 12 horas de enfrentamento, Davolo, bombeiros, Força Nacional e trabalhadores das fazendas conseguiram conter o foco. "Mas de manhã já surgiu um novo mais abaixo", lamenta.

E assim caminha em 2024 o Pantanal. Entre batalhas inglórias e reduções de danos, profissionais e pantaneiros tentam impedir um triste recorde que supere o registrado em 2020 e mostre que a terra das águas a cada dia que passa se torna a terra do fogo.

¨      Pantanal pode viver pior temporada de fogo em 2024

Pantanal pode estar diante da temporada mais destruidora de fogo. O fogo chegou mais cedo em 2024 e pegou algumas equipes de combate em fase de contratação de pessoal. No calendário oficial, as brigadas temporárias contratadas pelo Ministério de Meio Ambiente começam a sair em campo em junho e enfrentam, de agosto a outubro, a fase mais crítica.

"A temporada seca está só começando e já vemos o número de focos estourar. A tendência é piorar daqui para frente. É bem preocupante o cenário no momento e pode ser pior do que 2020", afirma à DW Gustavo Figueroa, diretor da SOS Pantanal, organização da sociedade civil que atua na conservação do bioma.

Uma portaria publicada no fim de abril pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) autorizou o centro especializado Prevfogo a contratar brigadas federais para a prevenção e combate aos incêndios florestais.

Questionado pela DW, o órgão informou por meio de nota que há equipes atuando no Pantanal, mas não revelou o número exato de profissionais. Segundo o órgão, quase 100  brigadistas foram contratados até o momento para combater os incêndios no bioma, e mais equipes estão previstas neste ano.

·        Na proteção de um corredor

Figueroa acaba de retornar de dias de combate às chamas. Ele acompanhou os seis integrantes da brigada permanente criada pelo Instituto Homem Pantaneiro (IHP). Neste momento, o grupo atua num corredor de biodiversidade estratégico para o futuro do bioma. Do tamanho de 300 mil campos de futebol, esse corredor fica numa área que abrange a divisa entre Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e a fronteira com a Bolívia, próxima à Serra do Amolar.

O fogo já chegou nas bordas deste lugar, que é considerado um refúgio para a vida silvestre. Ali vivem mais de uma centena de espécies de animais – jacaré, onça pintada, jaguatirica, anta, cotia e tatu-canastra são alguns deles. Pelo caminho, Figueroa fotografou alguns bichos carbonizados.

"A rotina do combate é complicada. Saímos de madrugada, um trator desloca os equipamentos até a linha do fogo, são duas horas de percurso. É muito desgastante", relata Figueroa, especialista em manejo e conservação da SOS Pantanal.

De Corumbá, Mato Grosso do Sul, onde o IHP está baseado, são seis horas de barco pelo rio Paraguai até a região. O município concentrou o maior número de focos de incêndio do país nas primeiras duas semanas de junho, com 32% do total.

Depois do cenário catastrófico de 2020, o IHP criou a brigada permanente. Naquele ano, os incêndios consumiram 30% da porção brasileira do Pantanal e ficou claro para os integrantes da entidade que saber combater o fogo não era o suficiente – era preciso entender melhor o território, conhecer onde buscar água entre as chamas e quais caminhos podem ser usados pelos animais nas rotas de fuga.

"A brigada atua junto às comunidades para dar apoio, ajuda na manutenção perto de escolas rurais para manter a área segura, promove ações ambientais, educativas. Mas neste momento está tudo paralisado, o foco é combater o fogo", explica Rodolfo César de Sousa, que atua na comunicação do IHP.

·        Pantanal enfraquecido

A temporada precoce de incêndios em 2024 encontra um Pantanal ainda em recuperação. Em 2020, os grandes incêndios no bioma em território nacional consumiram 43% de locais nunca antes queimados e provocaram a mortalidade em massa da vida selvagem. Foram 39 mil quilômetros quadrados atingidos pelas chamas. Um estudo publicado na Scientific Reports, do grupo Nature, estimou a morte de 17 mil animais vertebrados em decorrência da catástrofe.

Além disso, o último período chuvoso terminou com pouca água nos rios da região. O monitoramento feito pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB) aponta que, de todo o volume de chuva esperado, 60% se confirmaram. O mapa que mostra as regiões sob seca produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA) alerta para zonas críticas sobre o Pantanal.

"Neste ano, o rio Paraguai não extravasou. Ou seja, ele não inundou os campos alagáveis que normalmente ficam cobertos de água no Pantanal. Então toda esta vegetação vai secando e muita biomassa fica disponível para o fogo", afirma Danilo Bandini, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Mais seco, qualquer faísca pode iniciar um grande incêndio. No Pantanal, 95% deles são provocados pelo homem, de forma acidental ou intencionalmente. E um estudo publicado recentemente na revista científica Global Change Biology mostrou que a vida pode ter sérias dificuldades para voltar ao local devastado. Das oito espécies de mamíferos pesquisadas na Serra do Amolar, seis apresentaram mudanças no uso ou ocupação do habitat.

"Jaguatiricas, catetos, tatus-canastra, cutia, veado mateiro e antas tiveram ocupação decrescente após incêndios. O uso de habitat manteve-se estável apenas para a onça-parda. O tatu-canastra, espécie rara e ameaçada no Brasil, experimentou o declínio mais acentuado na ocupação", comenta Grasiela Porfírio, coordenadora técnica científica de projetos do Instituto Homem Pantaneiro e uma das autoras do artigo.

O bioma ameaçado tem uma particularidade: mais de 90% dele estão dentro de propriedades particulares. Uma pequena fatia do Pantanal, 4,68%, está protegida dentro de unidades de conservação. É por isso que a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), aquelas criadas voluntariamente por proprietários rurais, é importante.

·        Vigilância permanente

Para Gustavo Figueroa, da SOS Pantanal, o apoio aéreo é importante para transportar brigadistas nas áreas mais remotas é fundamental. "Facilitaria o combate e economizaria tempo e energia dos brigadistas. Se o combate não começa rápido, é quase impossível controlar depois que o fogo atinge grandes proporções", comenta.

Uma das recomendações dadas num artigo publicado por Danilo Bandini após a experiência traumática de 2020 incluía a formação de mais brigadas com atuação ao longo de todo ano, e não só no período seco.

"Desta forma, elas poderiam fazer um trabalho de prevenção melhor para diminuir esses grandes incêndios. O manejo integrado do fogo, incluindo a queima prescrita, é uma das ferramentas de prevenção mais importantes, mas existem outras, como a educação ambiental", afirma o pesquisador da UFMS.

Segundo Bandini, a série histórica de dados coletados no Pantanal é limitada, o que dificulta a análise sobre a influência das mudanças climáticas no bioma. Por outro lado, os pesquisadores observam que mesmo os fenômenos que têm um ciclo natural, como a seca, estão mais intensos e com estiagem mais prolongada.

Paralelamente, mais 30 organizações da sociedade civil propuseram aos governos federal e estaduais que busquem auxílio fora do país. A alternativa sugerida numa carta entregue às autoridades sugere o Centro de Coordenação de Resposta de Emergência da União Europeia como eventual parceiro.

"A comunidade internacional acompanhou o que aconteceu com o Pantanal em 2020. Enquanto ainda se recupera da devastação daquele ano, mais uma vez estamos vendo números alarmantes de incêndios ainda no início da estação seca, o que é extremamente preocupante. Estamos dispostos a colaborar com as organizações brasileiras em seu pedido à União Europeia para evitar que uma tragédia maior ocorra", diz Steve Trent, presidente e fundador da Environmental Justice Foundation (EJF).

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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