A luta contra o tempo para evitar uma
tragédia no Pantanal
Uma vez mais a cena se
repete: Zilda de Souza passou dias observando a outra margem do Rio Paraguai,
torcendo para que as chamas que consumiam a fazenda do outro lado não chegassem
à comunidade ribeirinha onde vive no Pantanal sul-mato-grossense.
"Esse ano já
queimou mais do que nos outros, estava pegando dentro da água, uma tristeza. Há
muitos anos, o finado meu avô falou pra mim: ‘minha filha, eu não vou ver,
mas você vai viver e verá, o mundo vai acabar com fogo'. É o que eu, com 54
anos, estou vendo hoje", comenta.
Como boa parte dos
seus vizinhos, Souza vive da pesca hoje comprometida pelos incêndios que já
bateram recorde neste ano. Até o início de julho, 700.725 hectares haviam sido
destruídos pelo fogo, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites
Ambientais do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (Lasa/UFRJ). Isso representa 19,29% do total queimado em 2020, ano da
maior tragédia ambiental já vivida no Pantanal, quando o bioma perdeu um terço
da sua vegetação.
"Olha, o que
enfrentamos aqui foi assustador, porque a todo momento ficávamos no desespero
do fogo vir para o nosso lado e atingir a nossa área. Qualquer faísca, qualquer
fagulha que viesse para cá seria uma devastação total", comenta Virginia
Paz, vizinha pescadora e responsável pela brigada de incêndio da APA Baía
Negra. Uma mobilização criada após 2020, quando o fogo consumiu boa parte da
área de preservação.
"Apesar de termos
a nossa brigada preparada, passamos um momento de terror, pois talvez não
conseguíssemos conter o incêndio. Então, dia e noite olhávamos o fogo só
pedindo a Deus para proteger a nossa comunidade", relata Paz.
Apesar dos focos
espalhados por todo o Mato Grosso do Sul, os incêndios se concentraram na
margem esquerda do Rio Paraguai, entre a fronteira com a Bolívia e a BR-262,
que liga Campo Grande a Corumbá. O munícipio abriga a força-tarefa de órgãos
estaduais e federais que tentam conter as chamas antes do período mais crítico
chegar. A cidade concentra quase 70% das queimadas.
·
Estiagem surpresa
Desde a última semana
de junho o 3º Grupamento de Bombeiros de Corumbá recebeu o reforço de membros
da Força Nacional de Segurança e de corporações de outros estados, além de
aviões lançadores de água e o cargueiro KC-390 Millennium, da Força Aérea Brasileira
(FAB). Com capacidade de 12 mil litros de água a cada sobrevoo, a aeronave já
lançou 200 mil litros sobre os incêndios de Corumbá, segundo o governo.
A estes grupos se
somam os brigadistas do PrevFogo, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, cuja
equipe passou dos usuais 30 integrantes para mais de 200. Na última
quarta-feira, um contingente de 30 brigadistas chegava de Rondônia após
Para auxiliar este
batalhão de combatentes contra os incêndios, dois helicópteros do Ibama passam
o dia levando e trazendo brigadistas e provisões para áreas de difícil acesso.
Para o coordenador da operação, Charles Pereira, trata-se de um esforço inédito.
"Ter uma operação
desse nível logo começando em junho é novidade para todos. Todo mundo foi pego
de surpresa", avalia Pereira, que trabalha há 14 anos no órgão que promove
prevenção e combate a incêndios florestais em todo país. "Nós esperávamos
isso no período crítico, que é agosto, setembro, outubro. Ninguém esperava ver
o Pantanal queimando desde o início de dezembro, janeiro, algo que as mudanças climáticas vêm
promovendo."
Considerados apenas os
seis primeiros meses do ano, 2024 registra as piores queimadas já vistas no
Pantanal desde o início série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), em 1998. Foram 3.538 focos – 39% a mais que no mesmo período
de 2020. O fogo já devastou 5% do bioma somente no primeiro semestre deste ano.
A região atingida é seis vezes maior do que a área da cidade do Rio de Janeiro.
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Novas terras secas
O Paraguai, principal
rio do Pantanal, que normalmente sobe de janeiro a junho, atingindo em média 4
metros de altura, não sobe desde o começo de maio e hoje está mais de 3 metros
abaixo da média histórica, segundo dados da Marinha. Com o fim da estiagem
prevista apenas para outubro ou novembro, a tendência é que a situação se agrave.
"Os rios já
estão no estágio de não drenar mais água de superfície, estão drenando água do
subsolo, que está mantendo os rios para eles não secarem. Uma boa parte dos
cursos d'água dentro do Pantanal, que normalmente nessa época estão com água,
por causa da chuva e tudo mais, estão completamente secos", observa o
pesquisador da Embrapa Pantanal Carlos Padovani.
O MapBiomas já havia
apontado que o Pantanal perdeu mais de 61% da massa de água desde 1985 em relação à média histórica. Com isso, muitas
áreas que permaneceram décadas submersas e abandonadas hoje estão sendo
ocupadas para a pecuária.
A atividade é
predominante há quase 300 anos no Pantanal e, com métodos tradicionais, convive
bem com a manutenção do bioma. A vegetação campestre alagada durante parte do
ano – o que impede a grande monocultura mecanizada – somada à pecuária adaptada
a essa realidade fez com que o Pantanal, mesmo após dois séculos de ocupação
humana, seja o bioma mais preservado do país, com 84% do território nativo.
O uso do fogo para a
limpeza de áreas rurais é regulado pelo Código Florestal e exige a licença dos
órgãos ambientais estaduais. Desde 11 de junho, o Instituto de Meio Ambiente do
Mato Grosso do Sul (Imasul) suspendeu estas licenças, até mesmo as em vigor,
por tempo indeterminado. Segundo o governo estadual, foram lavrados 21 autos de
infração e aplicados mais de R$ 10 milhões em multas de janeiro a meados de
junho a proprietários que fizeram a queima no bioma sem licença.
"Essas regiões
que estão queimando mais e queimaram em 2020 são propriedades rurais, com
registro no CAR, mas que na prática estavam abandonadas por terem ficado
submersas durante décadas. Esses últimos cinco anos mais secos as deixaram
expostas, o que possibilitou a ocupação dessas áreas e o uso do fogo para
permitir que cresça uma vegetação mais palatável para o gado", explica
Padovani.
São justamente nos
territórios com ocupação mais recente, próximos aos rios, riachos e corixos,
com vegetação abundante e seca para queimar, onde estão os maiores focos de
incêndio.
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Todos a postos
Mangueira em punho e
chapéu de boiadeiro, Divino Bispo Santiago, mais conhecido como Careca,
enfrentava junto de bombeiros e membros da Força Nacional de Segurança o fogo
que consumia a Fazenda São Bento, na qual trabalha como capataz desde que foi
arrendada, há seis meses. O cenário corresponde com precisão ao descrito pelo
pesquisador: em uma área extensa, a cerca de 6 quilômetros do rio Paraguai, se
estende campos de um arbusto fibroso que queima, assim como o solo de turfa
rico em matéria orgânica e onde o caminhar se torna mais difícil.
"O Pantanal já
acabou. Vai ser uma crise muito grande com essa falta de peixes, do
turismo de pesca, que é a base da região. Vai ter muita gente
desempregada", afirma Santiago. "Para quem, como eu, que nasceu e
cresceu aqui, o Pantanal faz parte da gente, mas com essa destruição toda,
nossos filhos e nossos netos nunca vão chegar a ver o Pantanal que nós
vimos."
O trator vem e volta
da sede da fazenda, com um caminhão pipa a reboque, trazendo 2 mil litros de
água que resfria um pouco as chamas e permite que os profissionais entrem com
borrifadores e sopradores – estes sim, limpando o terreno e impedindo que o fogo
avance. "Em chamas muito altas, ele chega com a mangueira, joga, diminui a
intensidade da chama e, assim, a equipe que está em solo combate esse
incêndio. Agora a estratégia é empurrar esse fogo em direção ao rio Paraguai,
que é o melhor modo de extingui-lo", explica o sargento Igor Vinicius
Santos, que veio de Brasília para atuar em Corumbá.
A 180 quilômetros
dali, na região do Nabileque, o fogo ameaça os trilhos da Linha Tronco da
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que liga Bauru a Corumbá, é observado de
perto pelo fazendeiro Carlos Davalo. Montado em um quadriciclo e com um pano
amarrado no rosto para evitar a fumaça, ele vai orientando seus funcionários na
tentativa de impedir que as chamas que destroem um palmeiral cheguem à sua
propriedade.
"O Pantanal não é
fácil, não. Tudo é muito: muito inseto, muita terra, muita água, muito fogo,
mas é ajeitado e vamos trabalhando ele", comenta pouco antes de correr
para outro ponto. Após 12 horas de enfrentamento, Davolo, bombeiros, Força Nacional
e trabalhadores das fazendas conseguiram conter o foco. "Mas de manhã já
surgiu um novo mais abaixo", lamenta.
E assim caminha em
2024 o Pantanal. Entre batalhas inglórias e reduções de danos, profissionais e
pantaneiros tentam impedir um triste recorde que supere o registrado em 2020 e
mostre que a terra das águas a cada dia que passa se torna a terra do fogo.
¨ Pantanal pode viver pior temporada de fogo em 2024
O Pantanal pode estar diante da temporada mais destruidora de fogo. O
fogo chegou mais cedo em 2024 e pegou algumas equipes de combate em fase de
contratação de pessoal. No calendário oficial, as brigadas temporárias
contratadas pelo Ministério de Meio Ambiente começam a sair em campo em junho e
enfrentam, de agosto a outubro, a fase mais crítica.
"A temporada seca
está só começando e já vemos o número de focos estourar. A tendência é piorar
daqui para frente. É bem preocupante o cenário no momento e pode ser pior do
que 2020", afirma à DW Gustavo Figueroa, diretor da SOS Pantanal, organização
da sociedade civil que atua na conservação do bioma.
Uma portaria publicada
no fim de abril pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama) autorizou o centro especializado Prevfogo a
contratar brigadas federais para a prevenção e combate aos incêndios
florestais.
Questionado pela DW, o
órgão informou por meio de nota que há equipes atuando no Pantanal, mas
não revelou o número exato de profissionais. Segundo o órgão, quase 100
brigadistas foram contratados até o momento para combater os incêndios no bioma,
e mais equipes estão previstas neste ano.
·
Na proteção de um corredor
Figueroa acaba de
retornar de dias de combate às chamas. Ele acompanhou os seis integrantes da
brigada permanente criada pelo Instituto Homem Pantaneiro (IHP). Neste momento,
o grupo atua num corredor de biodiversidade estratégico para o futuro do bioma.
Do tamanho de 300 mil campos de futebol, esse corredor fica numa área que
abrange a divisa entre Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e a fronteira com a
Bolívia, próxima à Serra do Amolar.
O fogo já chegou nas
bordas deste lugar, que é considerado um refúgio para a vida silvestre. Ali
vivem mais de uma centena de espécies de animais – jacaré, onça pintada,
jaguatirica, anta, cotia e tatu-canastra são alguns deles. Pelo caminho,
Figueroa fotografou alguns bichos carbonizados.
"A rotina do
combate é complicada. Saímos de madrugada, um trator desloca os equipamentos
até a linha do fogo, são duas horas de percurso. É muito desgastante",
relata Figueroa, especialista em manejo e conservação da SOS Pantanal.
De Corumbá, Mato
Grosso do Sul, onde o IHP está baseado, são seis horas de barco pelo rio
Paraguai até a região. O município concentrou o maior número de focos de
incêndio do país nas primeiras duas semanas de junho, com 32% do total.
Depois do cenário
catastrófico de 2020, o IHP criou a brigada permanente. Naquele ano, os
incêndios consumiram 30% da porção brasileira do Pantanal e ficou claro para os
integrantes da entidade que saber combater o fogo não era o suficiente – era
preciso entender melhor o território, conhecer onde buscar água entre as chamas
e quais caminhos podem ser usados pelos animais nas rotas de fuga.
"A brigada atua
junto às comunidades para dar apoio, ajuda na manutenção perto de escolas
rurais para manter a área segura, promove ações ambientais, educativas. Mas
neste momento está tudo paralisado, o foco é combater o fogo", explica
Rodolfo César de Sousa, que atua na comunicação do IHP.
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Pantanal enfraquecido
A temporada precoce de
incêndios em 2024 encontra um Pantanal ainda em recuperação. Em 2020, os
grandes incêndios no bioma em território nacional consumiram 43% de locais
nunca antes queimados e provocaram a mortalidade em massa da vida selvagem.
Foram 39 mil quilômetros quadrados atingidos pelas chamas. Um estudo publicado
na Scientific Reports, do grupo Nature, estimou a morte de 17 mil
animais vertebrados em decorrência da catástrofe.
Além disso, o último
período chuvoso terminou com pouca água nos rios da região. O monitoramento
feito pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB) aponta que, de todo o volume de
chuva esperado, 60% se confirmaram. O mapa que mostra as regiões sob seca
produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA) alerta para zonas críticas sobre
o Pantanal.
"Neste ano, o rio
Paraguai não extravasou. Ou seja, ele não inundou os campos alagáveis que
normalmente ficam cobertos de água no Pantanal. Então toda esta vegetação vai
secando e muita biomassa fica disponível para o fogo", afirma Danilo Bandini,
pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Mais seco, qualquer
faísca pode iniciar um grande incêndio. No Pantanal, 95% deles são provocados
pelo homem, de forma acidental ou intencionalmente. E um estudo publicado
recentemente na revista científica Global Change Biology mostrou
que a vida pode ter sérias dificuldades para voltar ao local devastado. Das
oito espécies de mamíferos pesquisadas na Serra do Amolar, seis apresentaram
mudanças no uso ou ocupação do habitat.
"Jaguatiricas,
catetos, tatus-canastra, cutia, veado mateiro e antas tiveram ocupação
decrescente após incêndios. O uso de habitat manteve-se estável apenas para a
onça-parda. O tatu-canastra, espécie rara e ameaçada no Brasil, experimentou o
declínio mais acentuado na ocupação", comenta Grasiela Porfírio,
coordenadora técnica científica de projetos do Instituto Homem Pantaneiro e uma
das autoras do artigo.
O bioma ameaçado tem
uma particularidade: mais de 90% dele estão dentro de propriedades
particulares. Uma pequena fatia do Pantanal, 4,68%, está protegida dentro de
unidades de conservação. É por isso que a criação de Reservas Particulares do
Patrimônio Natural (RPPNs), aquelas criadas voluntariamente por proprietários
rurais, é importante.
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Vigilância permanente
Para Gustavo Figueroa,
da SOS Pantanal, o apoio aéreo é importante para transportar brigadistas nas
áreas mais remotas é fundamental. "Facilitaria o combate e economizaria
tempo e energia dos brigadistas. Se o combate não começa rápido, é quase impossível
controlar depois que o fogo atinge grandes proporções", comenta.
Uma das recomendações
dadas num artigo publicado por Danilo Bandini após a experiência traumática de
2020 incluía a formação de mais brigadas com atuação ao longo de todo ano, e
não só no período seco.
"Desta forma,
elas poderiam fazer um trabalho de prevenção melhor para diminuir esses grandes
incêndios. O manejo integrado do fogo, incluindo a queima prescrita, é uma das
ferramentas de prevenção mais importantes, mas existem outras, como a educação
ambiental", afirma o pesquisador da UFMS.
Segundo Bandini, a
série histórica de dados coletados no Pantanal é limitada, o que dificulta a
análise sobre a influência das mudanças climáticas no bioma. Por outro lado, os
pesquisadores observam que mesmo os fenômenos que têm um ciclo natural, como a
seca, estão mais intensos e com estiagem mais prolongada.
Paralelamente, mais 30
organizações da sociedade civil propuseram aos governos federal e estaduais que
busquem auxílio fora do país. A alternativa sugerida numa carta entregue às
autoridades sugere o Centro de Coordenação de Resposta de Emergência da União
Europeia como eventual parceiro.
"A comunidade
internacional acompanhou o que aconteceu com o Pantanal em 2020. Enquanto ainda
se recupera da devastação daquele ano, mais uma vez estamos vendo números
alarmantes de incêndios ainda no início da estação seca, o que é extremamente
preocupante. Estamos dispostos a colaborar com as organizações brasileiras em
seu pedido à União Europeia para evitar que uma tragédia maior ocorra",
diz Steve Trent, presidente e fundador da Environmental Justice Foundation
(EJF).
Fonte: Deutsche Welle
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