segunda-feira, 8 de julho de 2024

5 doutoras que vêm inspirando a nova geração de pessoas trans

Entre tantas lutas ao longo da vida por direitos e políticas públicas em prol da comunidade, combatendo sem descanso o preconceito arraigado na sociedade contra a população LGBTQIAPN+, elas investiram nos estudos acadêmicos.

O apreço pelos estudos - e pelo título de doutoras - desafia o olhar machista e transfóbico que ainda as enxerga em cenários marginalizados e prova que lugar de travesti é, sim, na universidade. Keila, Luma, Juh, Lua e Dodi transformaram suas jornadas em ativismo e legado para a nova geração de pessoas trans. Conheça suas histórias:

<><> Dodi Leal

Graduada em Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Dodi Leal voltou à universidade em 2023, dez anos depois de se formar, para atuar como professora do Laboratório de Práticas Performativas, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) para ministrar a disciplina Fabulações Travestis sobre o Fim.

Além da licenciatura na ECA, Dodi é graduada em Ciências Contábeis na FEA-USP, onde desenvolveu seu mestrado em Controladoria e Contabilidade. Em 2018, obteve o título de doutora em Psicologia Social, no Instituto de Psicologia da mesma instituição.

Atualmente, Dodi é professora efetiva da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e docente colaboradora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

Paulistana, ela completa 40 anos neste mês e, além de pesquisadora, trabalha como performer, curadora, crítica e iluminadora teatral. Dodi tem livros e artigos publicados e já ministrou aulas e palestras em países como Estados Unidos, Áustria e México.

<><> Keila Simpson

Ativista do movimento LGBTQIA+ desde 1990, a maranhense Keila, 59 anos, é uma das lideranças trans mais importantes do Brasil. Ela fundou a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e, atualmente, é presidenta da organização.

Em abril deste ano, Keila tornou-se a primeira travesti brasileira a receber o título de doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Trata-se de um título atribuído a pessoas notáveis, nacionais ou estrangeiras, que se destacam por sua contribuição à cultura, à educação ou à humanidade. 

"Keila é mais que um repositório humano de conhecimentos. É a professora de uma centena de outras pessoas trans e cisgêneros que vieram depois desta ancestralidade. Reconhecer, em vida, tudo isso, é necessário e muito mais que simbólico, sobretudo nos dias de hoje”, comentou na ocasião Symmy Larrat, Secretária Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. 

Em 2023, Keila fez uma turnê ativista pela Europa. Ela participou da 51ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, na Suiça, e foi aplaudidíssima na França em seu discurso sobre a situação deplorável das pessoas trans no Brasil. Também no ano passado, passou a ocupar o Conselho Nacional LGBTQIA+ ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

<><> Luma Andrade

Em 2012, a professora universitária tornou-se a primeira travesti a concluir um curso de doutorado no país. De origem humilde, Luma nasceu no sertão do Ceará e sofreu preconceito da família, da igreja e da sociedade local. Hoje, atua como professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab).

Filha de agricultores, Luma Andrade começou sua vida acadêmica no curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Aos 35 anos, se tornou doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com uma tese sobre a realidade das travestis nas escolas, relatando casos de estudantes e sua própria história. É a primeira obra do Brasil que retrata travestis e pessoas trans no contexto escolar.

Em 2023, Luma recebeu, em Fortaleza, a Medalha Iracema, maior comenda do Poder Executivo Municipal, concedida a personalidades que contribuem em sua área de atuação profissional para o desenvolvimento da cidade.

<><> Juh Círico

A primeira travesti doutora em Contabilidade do país sonha em ser professora universitária. Juh Círico se formou na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e quer ser referência para outras pessoas trans e travestis. O título acadêmico foi obtido a partir da tese "Vozes da resistência: vivências de pessoas transgêneras e travestis na contabilidade brasileira".

Assim como as outras travestis deste artigo, Juh Círico espera que a conquista sirva de inspiração e abra portas para que mais pessoas trans e travestis ocupem as universidades.

Ela cultivava o sonho de atuar na área contábil desde a adolescência, quando trabalhava em um escritório, e enfrentou uma série de dificuldades - desde percorrer literalmente um longo caminho para chegar à faculdade até atitudes preconceituosas de colegas e professores - para conquistar seu objetivo.

Sem pensar em desistir, Juh persistiu e terminou o curso. Ela também é mestre em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação e, recentemente, foi aprovada no pós-doutorado em Contabilidade na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP).

<><> Lua Lamberti

Lua foi a primeira travesti a concluir um mestrado na Universidade Estadual de Maringá (UEM) em 2019 e, em março deste ano, conquistou o posto de primeira travesti doutora da história da instituição. Para a conclusão do doutorado em Educação, Lua defendeu a tese "Artes Transformistas: metodologias, linguagens e ficções grotescas em bases pedagógicas transepistemológicas", na qual discorre sobre o trabalho de três artistas transformistas - a drag queen Ginger Moon e os drag kings Don Valentim e Rubão.

Ela também é graduada em Artes Cênicas pela UEM e atua como professora do Departamento de Música e Artes Cênicas (DMC). "Minha meta é fazer a UEM transicionar, abrir vagas, cotas e políticas públicas, afirmativas e de permanência para pessoas trans", afirmou em entrevista ao site da universidade.

¨      Travesti brasileira celebra mestrado em Harvard e planeja futuro: "Quero chegar na ONU"

A advogada Victória Dandara Toth Rossi Amorim, de 25 anos, está prestes a fazer história. Ela será a primeira travesti brasileira declarada a fazer mestrado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. 

Filha mais velha de uma família de quatro irmãos, Dandara, como prefere ser chamada, nasceu e foi criada em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Sua mãe é sobrevivente de violência doméstica e, assim que pôde, optou pela maternidade solo.

Além do trauma que precisou administrar ao longo da sua infância, Dandara conta que algo ainda mais marcante em sua trajetória é um conselho que sempre ouvia de sua mãe: "a única possibilidade é estudar".

"Os primeiros anos da minha vida foram vendo meu pai agredindo minha mãe de várias formas. Quando ela se separou e voltou a ser professora para garantir o sustento, ela sempre incentivou o estudo. Ela dizia: 'Nós somos pobres, então a única possibilidade é estudar'. Isso sempre me marcou. Eu tinha que ser a melhor em todos os âmbitos e, quando me identifiquei como travesti, isso ficou ainda mais forte", lembra.

Harvard nunca pareceu uma possibilidade para aquela jovem de origem pobre. A universidade, uma das melhores de todo o mundo, só lhe era acessível nos filmes e pela televisão. Agora, que a formação na renomada instituição, é real, ela já se permite sonhar ainda mais. 

"São as travestis chegando em lugares que antes não eram imagináveis, ainda mais vindo da realidade em que eu nasci", celebra.

"Meu sonho profissional agora é estar num trabalho que eu sinta que esteja mudando a vida das pessoas. Posso dizer que quero chegar na ONU? Acredito que hoje eu possa, sim. Talvez ser presidenta da organização... Mas, além da cadeira, saber que estou dando lugares para meninas trans do amanhã", sonha Victória Dandara Amorim, primeira travesti brasileira a ir pra Harvard.

A ideia de estudar em Harvard veio quando conheceu as bolsas de estudos internacionais da Fundação Estudar. A instituição ajuda pessoas a estudarem para as provas e a lidar com as burocracias necessárias para adentrar nas universidades norte-americanas. Com esse suporte, ela conseguiu passar não apenas em Harvard, mas em uma lista de faculdades que inclui Berkeley, Northwestern, Georgetown, Nova York (NYU), Columbia, Los Angeles (UCLA) e American University.

·        Nem todo o caminho teve essa glória

Gostar do estudo era muito mais do que Dandara conseguia compreender. Hoje, ela considera um local de aconchego, mas reconhece que tinha um sentimento de responsabilidade. Como irmã mais velha, ela já havia presenciado o pior e queria proporcionar à mãe e aos irmãos o que há de melhor.

"Eu não tenho brinquedos da infância, todos foram comidos por ratos. Eu não acho isso bonito, eu vejo e acho cruel. Eu acho bonito a força que eu tive para sair dessa realidade. Também não acho que outras pessoas tenham que passar por isso pra chegar onde estou", admite.

Na adolescência, Dandara conseguiu uma bolsa para cursar o ensino médio em um colégio particular religioso. Sua transição de gênero, inclusive, ocorreu neste período. A instituição, ao saber o que acontecia, não retirou seu benefício, mas também não a acolheu. 

Segundo relata, ela era proibida de usar o banheiro da instituição, para evitar que os pais das alunas reclamassem. Dandara, então, tinha que atravessar a rua e utilizar o banheiro de shopping que ficava em frente à instituição onde estudava.

Seu nome social também não foi adotado oficialmente pela direção. Dandara teve de recorrer a cada professor, individualmente, e alguns até riram ao receber o pedido, conforme conta.

O desconforto dos colegas frente ao seu desempenho acadêmico também dificultou sua vida. A vontade de desistir foi grande, mas, ela lembra, sua mãe nunca permitiu.

"Foi um trabalho de resiliência meu e da minha mãe para me formar. Ela me obrigou. Eu quis desistir, mas ela não deixava. Tive colegas que olhavam torto e, quando eu transiciono, isso se torna mais brutal", conta ela, que passou na USP na primeira tentativa.

"Para muitos dos meus colegas, era inaceitável. E, assim, eu sempre falo: eu só consegui transicionar, manter minha cabeça nos estudos, não desistir de tudo e virar estatística, por causa da aceitação da minha mãe. Sou uma travesti indo para Harvard, mas sou uma travesti com privilégios. Esse apoio familiar, a maioria absoluta não tem", afirma Dandara.

·        Mais do que conquista, denúncia

Inicialmente aprovada para cursar Políticas Públicas, ela migrou para Direito e fez um intercâmbio na Rússia, onde encarou o medo de ser presa. No país, a homossexualidade e a transsexualidade são considerados crimes.

Ela se formou como a primeira travesti declarada do Largo São Francisco. Mais do que uma vitória, seu diploma simboliza uma denúncia.

"Até a minha turma foram 191 anos de instituição, então temos quase duzentos anos sem nenhuma pessoa trans entrando de forma assumida. Temos pessoas que entraram, formaram e se identificaram trans depois, mas não é a mesma situação. É diferente você sendo travesti prestar a prova e ocupar aquele espaço. O meu corpo gera estranhamento nos professores, nos alunos, mas se você sai dali, você vê esses corpos na rua, na prostituição… Ou seja, é comum ver corpos como o meu do portão pra fora, não ao contrário. Chega-se à conclusão que temos aí 191 anos de uma instituição que formou 14 presidentes brasileiros, mas não conseguiu formar uma travesti até então".

¨      Quebra de estigmas e resgate da autoestima são desafios de profissionais trans no mercado de trabalho

Especialistas refletem sobre os poucos avanços dos direitos das pessoas trans no mercado de trabalho brasileiro. De acordo com a co-fundadora da TransEmpregos e Consultora de D&I, Maitê Schneider, os principais desafios continuam sendo a quebra de estigmas e o resgate da autoestima. 

“O grande desafio continua o mesmo de tanto tempo. A quebra de estigmas, que ainda são muito grandes, e a gente ainda não conseguiu vencer os estigmas imputados, aqueles modelos, a padronagem de que trans vive na prostituição porque quer viver na prostituição, de que não tem qualificação, nem de soft skills nem de hard skills. (...). O próximo é, em termos de pessoas trans, resgatar a autoestima porque durante muito tempo, ainda fica sendo muito minado, a autoestima de profissionais trans”, disse em entrevista ao Terra Agora nesta quinta-feira, 27. 

Maitê comentou que, em seu projeto, se depara com frequência com pessoas qualificadas, com várias graduações e que, mesmo assim, ainda enfrentam dificuldades para acreditar no próprio potencial. Os motivos apontados para isso são: falta de respeito com o nome social, escolha dos banheiros e falta de benefícios. 

“Mesmo os benefícios oferecidos por mais de 97% das empresas não abraçam os profissionais trans. Planos de saúde, as pessoas trans não são contempladas, dentro da questão da licença-paternidade e da licença-maternidade, também não são levadas em consideração”, detalhou Maitê. 

·        Inclusão no mercado de trabalho

O projeto, que existe há 11 anos, é gratuito e atende profissionais trans que buscam oportunidades de trabalho e empresas que desejam anunciar vagas ou contratar profissionais. Além de um banco de vagas, Maitê explica que também oferecem consultoria de graça com mais de 50 especialistas para ajudar a montar e melhorar currículos, além de cursos e parcerias com certificação. 

“A gente ajuda essas empresas a ficarem melhores justamente nesses pontos que ainda são enviesados, nesses pontos que [muitas] ainda têm dificuldade. Temos cartilhas de esclarecimentos, a gente faz palestras gratuitas dentro dessas empresas para tirar esses medos, esses terrores e aproximar esses talentos”, explicou a especialista. 

Apesar dos pontos negativos, também há pontos a serem celebrados. A especialista explica que, nos primeiros anos da empresa, a aceitação ainda era muito “tímida”. “Foi um grande avanço que nós temos tido, não só de grandes empresas, a maioria das multinacionais são nossas parceiras, mas também tem um aumento muito grande de empresas de médio porte, também pequenas, empresas familiares”, explicou. 

“Víamos muita empresa dizendo que fazia e, na prática, pouco fazia ou nada fazia, que é essa 'Diversity Washing', essa 'lavagem da diversidade', e que usa em apenas alguns momentos específicos, mas não tinha uma constância. Temos visto um aumento desta constância. Ainda tem muita empresa usando, mas é muito menor o número”, disse Maitê.

 

Fonte: Redação Nós/Redação Terra

 

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