5 mitos sobre a Lei Maria da Penha, criada há 17 anos para combater a
violência doméstica
A Lei Maria da Penha entrou em vigor em 2006 como
uma forma de melhorar a prevenção e o combate à violência
doméstica.
Embora essa legislação tenha sido um instrumento
fundamental na proteção de mulheres contra violência de
gênero nos últimos 17 anos, ainda persistem mitos e compartilhamento de
informações falsas sobre essa legislação, segundo especialistas e centros de
pesquisa.
Até 2006, casos de violência doméstica eram
tratados na Justiça como casos de "menor potencial ofensivo", explica
a advogada e desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, fundadora do
Instituto Brasileiro de Direito de Família e autora do livro Lei Maria da Penha
na Justiça.
Na prática, isso significava que as penas para
agressores eram no máximo o pagamento de multa ou trabalhos comunitários.
"Na prática, a violência de gênero era
banalizada", diz Regina Célia, vice-presidente do Instituto Maria da
Penha.
"Para dar uma ideia do descaso, após fazer
denúncia contra o agressor, a vítima tinha que levar uma intimação para que ele
comparecesse à delegacia."
A Lei Maria da Penha fez com que a violência contra
a mulher passasse a ser tratada como um crime de grande potencial
ofensivo, ou seja, aumentou penas para esse tipo de violência.
Além disso, facilitou a criação das chamadas
medidas protetivas de urgência, que servem para proteger as vítimas de mais
agressões.
Após a Lei Maria da Penha, o número de pedidos de
medidas protetivas de urgência concedidas total ou parcialmente pela Justiça
subiu de 1, em 2006, para 428 mil em 2022, segundo dados do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a aplicação da lei.
Em 2023, foram concedidas 377 mil medidas de
proteção até 22 de outubro.
Mas essa legislação não se resume ao aspecto
punitivo, explica Regina Célia, mas estabelece uma série de medidas de
prevenção e combate que vão além dos casos de violência tratados na Justiça,
como a promoção de programas educacionais e o fortalecimento de redes de apoio às
mulheres.
Apesar de todos os avanços, narrativas enganosas e
informações falsas quanto à lei persistem - e aumentaram nos últimos anos,
segundo Regina Célia.
Veja os principais mitos e entenda mais sobre essa
legislação.
·
Medidas protetivas e condenação penal
Mito: a lei
facilitaria condenação de homens inocentes
Um dos principais mitos que persistem sobre a Lei
Maria da Penha é a ideia de que um homem pode ser condenado apenas com a
palavra da vítima, o que poderia levar à condenação de inocentes.
Isso não é verdade, explica Maria Berenice Dias, e
provavelmente vem de uma confusão entre a concessão de medidas protetivas e a
condenação penal.
As medidas protetivas que a lei facilitou são
decisões do juiz que servem para proteger mulheres vítimas de violência
doméstica, explica Dias.
Elas podem ser pedidas já no atendimento com a
polícia e a Justiça tem 48h para decidir sobre elas, devendo agir com urgência
em caso de risco de morte, segundo a legislação.
As medidas podem ser diversas: a proibição ou
restrição do uso de arma por parte do acusado de agressão, afastamento do lar,
a proibição de se aproximar da mulher agredida, a restrição ou suspensão de
visitas aos dependentes menores, a proibição de venda ou aluguel de imóvel da
família sem autorização judicial, entre outros.
A Lei Maria da Penha estabelece que medidas como
essas podem ser concedidas pelo juiz com base na palavra da vítima, sem
necessidade de manifestação do Ministério Público ou de ouvir o agressor para
que a mulher tenha garantia de proteção de forma rápida, explica a advogada
Paula Nunes Mamede Rosa, criminalista pela USP e professora da Universidade de
Northumbria, no Reino Unido.
A lei não modifica as exigências para uma
condenação penal, explica Mamede.
"Uma condenação e uma medida protetiva são
coisas completamente diferentes. A medida protetiva é uma medida temporária,
que busca proteger e prevenir novos casos de violência. A condenação penal é
uma resposta punitiva do Estado a um crime", diz a criminalista.
"Todas as garantias do processo penal às quais
o réu tem direito continuam valendo, como o direito de defesa - o réu tem o
direito de ter um advogado e ser ouvido - e a presunção de inocência",
afirma.
Ou seja, um processo aberto com base na Lei Maria
da Penha precisa passar por todas as etapas - incluindo um inquérito policial
normal, a denúncia pelo Ministério Público e o julgamento - para que haja
condenação. O que a lei facilita é a proteção da vítima através das medidas
protetivas para a mulher.
·
Prisão e Educação
Mito: A aplicação
da lei sempre resulta em prisão do agressor
Embora trate da questão punitiva na Justiça, a Lei
Maria da Penha visa o combate à violência doméstica de forma ampla, incluindo o
uso da educação e a reeducação de agressores.
"A Lei Maria da Penha é uma lei pedagógica,
que trabalha pelo fortalecimento dos Direitos Humanos das mulheres, e ela não
veio para desagregar família, mas para fortalecer", afirma Regina Célia,
citando também desinformações que dizem que a lei enfraqueceria a família ao
punir o agressor.
"O que enfraquece a família é a violência
doméstica", diz ela.
"A lei fala sobre a criação dos centros de
reeducação e reabilitação para autores de violência, fala sobre delegacias
especializadas, a questão dos centros de referência de atendimento à mulher,
fala sobre o fortalecimento de defensorias públicas", explica Célia.
Ou seja, uma grande parte da aplicação da lei
envolve medidas tomadas pelo Poder Executivo, como a formação permanente dos
agentes de Segurança Pública e a criação de uma matriz pedagógica para aplicar
nas escolas que trate do tema da violência de gênero (violência contra a
mulher).
"Na verdade, a Lei Maria da Penha é uma lei
que vem para criar um microssistema de combate à violência doméstica. Ela tem
mecanismos de diversas naturezas, como a busca de integração de serviços,
inclusive de saúde. A resposta penal é só um dos mecanismos para lidar com esse
problema complexo", diz Mamede Rosa.
Mas mesmo quando a lei é aplicada no âmbito do
Poder Judiciário, ou seja, quando são abertos processos na Justiça contra
agressores, nem sempre a aplicação da lei resulta em prisão. A maior parte dos
casos, segundo dados do CNJ, envolve a concessão de medidas protetivas.
E mesmo quando há condenação criminal do agressor,
a pena pode não ser de prisão.
"A maior parte dos crimes praticados em âmbito
doméstico possuem penas muito baixas. Como, por exemplo, ameaça, que começa com
a pena de um mês, ou lesão corporal, que começa em três meses. Nesses casos, a
pena não começa em regime fechado, ou seja, a ideia de que o agressor é sempre
preso não é verdade", afirma Mamede.
Na prática, explica, o agressor é "preso se
descumprir as medidas protetivas ou se cometer um crime muito grave, como
tentativa de homicídio".
Para proteger as mulheres nos casos em que não há
prisão, explica Berenice Dias, existem elementos na lei como as medidas
protetivas e a determinação de criação de uma rede de apoio, à criação dos
centros de reeducação dos agressores, entre outras.
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Mais agressões do que denúncias
Mito: A lei é
usada por mulheres como vingança
A ideia de que mulheres que não sofreram violência
denunciam falsas agressões é um mito, explicam as especialistas - inúmeros
dados mostram que, na realidade, o que acontece de forma generalizada é o
contrário: a maioria das mulheres vítimas de violência de um parceiro ou
ex-parceiro não denuncia o agressor à polícia por medo do agressor ou de ser
desacreditada.
A pesquisa Vitimização
das Mulheres no Brasil, de 2013, encomendada pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, indicou que 45% das mulheres que haviam sofrido agressão no
último ano ficaram caladas - 21,3% delas não acreditavam que a polícia iria
oferecer solução e 14% não acreditavam que tinham provas suficientes.
Os dados mostram que 33% das mulheres com mais de
16 anos no Brasil sofreram violência doméstica por parte do parceiro ou ex -
mais do que a média global de 27%, segundo a OMS (Organização Mundial de
Saúde).
Uma pesquisa da
Universidade Marquette, nos EUA, mostrou que a violência é tão
naturalizada entre jovens mulheres que elas muitas vezes nem conseguem
identificar que foram vítimas de um abuso.
Além disso, a Justiça tem mecanismos para garantir
que a lei não seja usada dessa forma. Um deles é o fato de que ela não modifica
as exigências para uma condenação penal, para a qual são necessárias provas.
O juiz tem a possibilidade de negar mesmo as
medidas protetivas se considerar que, no caso em questão, há uma denúncia
inverídica - o que seria uma rara exceção, explica Maria Berenice Dias.
"Isso não acontece (denúncias falsas por
vingança). Você não tem ideia do estado (de fragilidade) em que chegam às
mulheres, a violência é visível", diz ela.
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É possível voltar atrás?
Mito: A vítima
não pode retirar queixa uma vez registrada
Diversos motivos podem levar uma mulher que já
procurou a polícia a querer desistir de continuar o processo, explica Berenice
Dias. Entre eles, estão o medo do agravamento da violência, a dependência
financeira e o ciclo da violência - em que o agressor diz que se arrependeu,
pede perdão, a trata bem, antes de voltar a cometer as agressões.
A advogada explica que, nos casos em que o crime
cometido pelo agressor depende de representação da vítima — como difamação,
ameaça, estupro — para que a polícia continue o inquérito, a mulher pode
retirar a queixa.
No entanto, caso o agressor tenha cometido um crime
cujo processo não depende do desejo da vítima — a maioria, incluindo lesão
corporal, tentativa de homicídio etc — a polícia tem o dever de continuar a
investigação. “São as chamadas ações públicas incondicionadas”, diz Berenice
Dias. Nesse caso
O que a Lei Maria da Penha alterou foi o fato de
evitar que a violência doméstica seja considerada de “menor potencial
ofensivo”, diminuindo casos em que crimes eram negligenciados pela polícia e
pela Justiça pelo fato de acontecerem no ambiente doméstico ou no contexto de
um relacionamento, defende Regina Célia.
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Justiça para Maria da Penha
Mito: A história
do ex-marido de Maria da Penha Fernandes, que inspirou a lei, não foi ouvida
Resultado de crescentes demandas por uma forma mais
efetiva de combater a violência doméstica e de anos de preparação e estudo por
entidades de defesa das mulheres, a lei aprovada em 2006 foi batizada em
homenagem à brasileira Maria da Penha Fernandes.
A história de Maria da Penha, que ficou paraplégica
após duas tentativas de homicídio por parte do então marido, hoje é amplamente
conhecida.
No entanto, um vídeo publicado esse ano trazia o
ex-marido de farmacêutica contando uma versão dos fatos provada inverídica na
Justiça brasileira e na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH).
Ele alega que o tiro que deu nela foi uma reação a uma tentativa de assalto.
Após inúmeros episódios de violência doméstica, o
ex-marido deu um tiro na coluna que a deixou paraplégica. Meses depois, tentou
eletroculá-la durante o banho.
Os crimes aconteceram em 1983 e Maria da Penha
passou 19 anos apresentando inúmeras provas à Justiça brasileira que
comprovavam a tentativa de homicídio, mas a Justiça Brasileira só condenou sei
ex-marido em 2002, e ele cumpriu apenas 2 anos da pena de 6 anos de prisão.
O caso foi apresentado em 2001 à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que condenou o estado brasileiro por
negligência e fez uma série de recomendações de para evitar que outras
brasileiras sofram tragédias como a de Maria da Penha.
Para Regina Célia, do Instituto Maria da Penha, o
compartilhamento de notícias falsas sobre o caso de Maria da Penha Fernandas é
uma repetição da violência que a ativista sofreu. Ela diz que o instituto nem
responde a esse tipo de notícia falsa.
"Eles insistem em manter a cultura da
revitimização", diz ela. "A Maria da Penha passa por 19 anos e seis
meses de violência, em que seu caso foi negligenciado pelo Estado, em uma época
em que não havia redes sociais, e agora ela tem que repassar por tudo isso? O
relatório da CIDH tem todos os detalhes e condenou o Brasil por negligência, e
esses vídeos e mensagem de WhatsApp não incluem isso. Porque o objetivo não é
esclarecer, é desinformar."
Fonte: BBC News Brasil
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