Um puxadinho neoliberal na Saúde que precisa acabar
Pouco
notada, a Portaria 89 publicada
pelo ministério da Saúde em 3 de fevereiro reitera a dicotomia entre público e
privado na disputa pelo Estado brasileiro. A normativa “institui a Comissão de
Avaliação, Acompanhamento e Supervisão dos Atos de Gestão Administrativa e dos
Atos Finalísticos da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde
– Adaps”. Adaps é uma
agência criada no bojo do programa Médicos pelo Brasil, invenção de Bolsonaro
para expulsar os profissionais cubanos de saúde do país, mas que na prática mal
saiu do papel.
“Por
decreto se criou uma estrutura governamental semelhante às demais agências. E
já existe no Brasil uma experiência: toda vez que se pretende caminhar na
direção da economia do Estado mínimo, cria-se uma agência e retira-se a função
estatal do controle público e a possibilidade de que tal função seja
acompanhada, como orçamento, metas, desempenho, objetivos, uma coisa clássica
da economia neoliberal. A Adaps e suas regulamentações eram brechas para que a
oposição e o pessoal a favor do Estado mínimo pudessem penetrar no Estado”,
explicou Heleno Corrêa Filho, médico sanitarista e epidemiologista, ao Outra
Saúde.
O
ponto fundamental é a Adaps ser praticamente um concorrente não declarada do
ministério da Saúde na condução de políticas públicas do setor. Iniciativa de
uma bancada ultraconservadora que nunca teve interesse em fazer o SUS
funcionar, simbolizada pelo ex-ministro Ricardo Barros, a agência é uma manobra
para driblar as amarras fiscalistas de viés neoliberal. No entanto, em favor
apenas da iniciativa privada.
Para
escapar do sufocamento dos investimentos sociais emplacado pelo governo Temer,
através do chamado teto de gastos (EC-95), o financiamento deste tipo de ente
público seria registrado como “contrato de terceiros”. Os recursos são
direcionados a organizações privadas que gerenciam serviços do SUS (a exemplo
das Organizações Sociais de Saúde). Ou seja, se a despesa estatal em saúde se
desse em favor de grupos privados, as regras de “teto” não se aplicariam.
“De
um lado a cruz, do outro a caldeirinha. A cruz é a Lei de Responsabilidade
Fiscal, a caldeirinha é a EC-95. Enquanto isso vigorar, as soluções como a tal
da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária vão sempre pipocar em tudo
que é lugar. Porque é mais fácil fazer uma agência, fugir do orçamento e dizer
que o dinheiro gasto na agência não é despesa de Estado, é gasto contratado, e
assim contratar terceiros, contratar organizações não governamentais ou Oscips
e toda essa variedade de formas de jogar dinheiro no ralo e colocar o Estado a
serviço de terceiros”, explicou Heleno.
·
Mais Médicos em disputa
E,
como dito pelo entrevistado, não houve avanço concreto na atenção primária em
saúde neste período. Agora, com a retomada do Mais Médicos, a agência inclusive
tenta se associar aos resultados positivos do programa criado pelo governo
Dilma. A este respeito, Heleno Corrêa Filho aproveita para alertar sobre as
brechas que a nova versão do Mais Médicos precisaria tapar, uma vez que o
discurso reacionário e corporativista voltará a rugir.
“Os
buracos (do primeiro Mais Médicos) eram a ausência de vínculos empregatícios
com direitos previdenciários; a falta de compromisso com a revalidação imediata
do diploma obtido no estrangeiro com apoio administrativo; trâmites
burocráticos governamentais obrigatórios; oferta de cursos de eventual
capacitação para aprovação nos exames de revalidação; controle pelo SUS da
comissão do MEC que bloqueou o ‘Revalida’, controlada por uma máfia corporativa
contrária a exame de caráter geral em medicina que reprovava mais de 95% dos
médicos formados no estrangeiro, inclusive EUA e Europa; e falta de bônus para
promoções e incorporação ao SUS daqueles que desejassem ficar nos locais para
onde foram enviados”.
LEIA
A ENTREVISTA:
·
Como analisa a portaria que cria uma Comissão
Permanente de Avaliação de Documentos da Agência para o Desenvolvimento da
Atenção Primária em Saúde (Adaps), um programa criado em 2019?
Não
precisa sequer avaliar. A Adaps é um entulho autoritário, fruto do golpe de
2016, que precisa fechar. Mas tem uma complicação, que parece uma tecnicalidade
jurídica, pois a instituição da Adaps é fruto de uma lei ordinária do
congresso, votada com maioria do centrão. Na época do general Eduardo Pazuello
no ministério da Saúde, foi feito um decreto para regulamentá-la. Se foi criada
por decreto, que por decreto fosse destituída, logo em 1º de janeiro. Depois o
governo poderia negociar aspectos da lei. Há centenas de leis que nunca foram
regulamentadas e o governo não é obrigado a seguir.
Fato
é que por decreto se criou uma estrutura governamental semelhante às demais
agências. E já existe no Brasil uma experiência: toda vez que se pretende
caminhar na direção da economia do Estado mínimo, cria-se uma agência e
retira-se a função estatal do controle público e a possibilidade de que tal
função seja acompanhada, como orçamento, metas, desempenho, objetivos, uma
coisa clássica da economia neoliberal. Em associações que eu participo, como a
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde (Cebes), o Instituto Walter Leser, em todos os lugares onde
pisamos como sanitarista e especialista em saúde, rejeitamos tal metodologia.
Dessa
forma, ao se criar uma portaria e dizer que se estudará a situação parece que o
problema é falta de coragem para fechar a agência. Essa é a minha
interpretação. A maioria dos sanitaristas tem essa interpretação. Sanitarista a
favor da criação de agência não é a favor da saúde pública, é sanitarista
quinta coluna.
·
Numa entrevista de 2019, na introdução das MP-890, que
criava o Médicos pelo Brasil, você falava que a Adaps seria um cavalo de troia
e criaria a possibilidade de porta dupla no sistema de saúde, entre outras
brechas para o privatismo. Como foram esses quatro anos de Adaps na prática?
A
Adaps e suas regulamentações eram brechas para que a oposição e o pessoal a
favor do Estado mínimo pudessem penetrar no Estado. Era previsível que
organizações reacionárias como o Conselho Federal de Medicina – hoje uma das
organizações mais fascistas do Brasil, repetindo o que aconteceu na época de
Hitler quando os médicos foram uma das categorias que mais aderiu ao nazismo na
Alemanha – apoiassem.
No
Brasil era previsível que um movimento de extensão da atenção em saúde, não só
atenção médica, à população pobre e afastada recebesse rejeição das categorias
corporativas, notadamente a categoria médica, que entende como reserva de
mercado um povo pobre desassistido. Éramos favoráveis ao Mais Médicos, mas era
necessário tapar seus furos. Você não joga um navio no mar com escotilha
aberta. Vai vazar a água, vai entrar. E foi por aí que entrou. A reação da
corporação médica foi virulenta, a ponto de médicos que viraram destaque na
administração do general Pazuello irem gritar na orelha de médicos cubanos,
como naquela cena que se tornou clássica no aeroporto de Fortaleza. Essa médica
da foto célebre veio a se tornar expoente do ministério da Saúde de Bolsonaro.
Ainda
que o programa fosse necessário e possa ter uma série de disposições retomadas,
havia brechas para a oposição reacionária. Para o seu retorno, é necessário
tapar alguns buracos a fim de evitar a gritaria reacionária e corporativa.
·
Quais teriam sido esses buracos na concepção do
Programa Mais Médicos e como poderiam ser corrigidos pelo novo governo, que já
anunciou o retorno do programa?
Os
“buracos” eram a ausência de vínculos empregatícios com direitos
previdenciários; a falta de compromisso com a revalidação imediata do diploma
obtido no estrangeiro com apoio administrativo; trâmites burocráticos
governamentais obrigatórios; oferta de cursos de eventual capacitação para aprovação
nos exames de revalidação; controle pelo SUS da comissão do MEC que bloqueou o
“Revalida”, controlada por uma máfia corporativa contrária a exame de caráter
geral em medicina que reprovava mais de 95% dos médicos formados no
estrangeiro, inclusive EUA e Europa; e falta de bônus para promoções e
incorporação ao SUS daqueles que desejassem ficar nos locais para onde foram
enviados.
Com
esses “rombos” estruturais era previsível todo o discurso xenofóbico de médicos
incompetentes contra seus “concorrentes” estrangeiros, criando brechas para
ações judiciais e campanhas políticas de lobistas que de fato aconteceram como
uma profecia autocumprida.
Uma
outra coisa importante seria fechar acordos diplomáticos com os países de
origem dos médicos estrangeiros para receberem direitos previdenciários e
salariais quando eventualmente retornassem para países como Costa Rica,
Guatemala, Nicarágua, Cuba e até EUA, tal como existem acordos do INSS
brasileiro com Portugal e Itália, e muita gente desconhece.
Uma
coisa especial seria direito de aposentadoria no Brasil, caso ficassem, e
contagem de tempo para aposentadoria nos países de origem após o retorno. Com
esses direitos planejados ou pelo menos prometidos a fascista cearense não
teria como ficar xingando e gritando no ouvido dos médicos cubanos, nem os
ministros do STF acolheriam ações judiciais reclamando que médicos cubanos
“eram escravos” ou até senadores dizendo que eram “espiões”.
·
Na prática, a Adaps não acrescentou nada à promoção da
atenção primária?
Não.
E nem poderia ter sido criada. Se foi criada por lei, não poderia ser
regulamentada por decreto. Se foi regulamentada por decreto, não poderia
existir. Mas ela existe concretamente, tem um monte de gente trabalhando lá e
há uma percepção social de que quem foi trabalhar nessa agência o fez por
conveniência salarial, não por convicção, porque os salários das agências são
superiores aos do funcionalismo público regular, mesmo para fazer uma função
igual. Atrair pessoas por salário e não por qualificação técnica não é uma boa
coisa.
·
E quais os desafios centrais da Atenção Primária à
Saúde neste início de governo?
Antes
da Emenda Constitucional 95, que manteve saúde, educação e serviços sociais
garroteados e sem dinheiro até 2036, existia a Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF), que deveria ter sido revogada. Essa LRF (criada em 2000 no governo de
Fernando Henrique Cardoso) é produto da direita chamada moderada, que é a
direita banqueira; ela quer que o Estado conserve orçamento para poder manter
os bancos nutridos dos juros mais elevados do mundo.
Antes
disso, já tinha essa lei que impedia que prefeitos, governadores de estado e o
próprio governo federal investissem em saúde e educação porque eram
consideradas despesas extraordinárias. Quando veio a EC-95, em 2016, início do
governo Temer, veio o arrocho de um orçamento que já era contingenciado, já era
preso. As visões neoliberais de saída dessa lei não foram revogá-la para criar
uma Lei de Responsabilidade Social, que existe tramitando há quase 20 anos no
Congresso.
Ou
seja, não tem como desresponsabilizar agentes públicos de Estado que deixam as
pessoas morrerem de fome e sem assistência. Uma Lei de Responsabilidade Social
faria isso. Pelo contrário, o que temos é uma lei econômica a dizer: “não pode
gastar dinheiro com pobre”. E nesse sentido, o apelo feito pelo Lula ao Banco
Central é esse: incluir uma meta social. Mas ele só consegue isso se sairmos do
Estado mínimo, revogarmos a EC-95 e voltarmos um pouco atrás com as alianças
que ele tem, o que é muito difícil.
De
um lado a cruz, do outro a caldeirinha. A cruz é a LRF, a caldeirinha a EC 95.
Enquanto isso vigorar, as soluções como a tal da Agência de Desenvolvimento da
Atenção Primária vão sempre pipocar em tudo que é lugar. Porque é mais fácil
fazer uma agência, fugir do orçamento e dizer que o dinheiro gasto na agência
não é despesa de Estado, é gasto contratado, e assim contratar terceiros,
contratar organizações não governamentais ou Oscips e toda essa variedade de
formas de jogar dinheiro no ralo e colocar o Estado a serviço de terceiros.
Quem
optou pelo Estado mínimo ou pelas agências optou contra desenvolver a atenção
primária no SUS. Pega-se bairros inteiros de grandes cidades brasileiras e
vende-se para organizações terceirizadas, que prometem saúde e atendimento.
Essas organizações vão querer lucro. Assim, aquilo que “dava prejuízo”, que é o
Estado contratando posto de saúde, hospital, policlínica, de repente passa a
“dar lucro”. E aí todo mundo quer comprar. Sendo que a liderança de quem quer
comprar é do pessoal do centrão, até hoje liderado pelo cara que ajudou a fazer
tais coisas, o ex-ministro da saúde Ricardo Barros, que vendeu a saúde para ele
mesmo.
·
Ou seja, criaram-se subterfúgios para que despesas do
Estado com saúde que passem pela mão da iniciativa privada não entrem na conta
do teto.
Sim,
a LRF permite que recursos humanos, do médico ao porteiro, do motorista da
ambulância ao carregador de maca, não sejam considerados orçamento público. É
considerado contrato de terceiros, através de empresa. Como não é orçamento de
recursos humanos, não entra na mesma rubrica, foge das limitações da antiga
LRF. Esse era o objetivo. Em que pese tudo isso, continuam as restrições da
EC-95. Não pode gastar dinheiro com saúde. Se entrar na rubrica saúde vai bater
no teto.
Traz-se
uma briga para dentro de casa. Quem está gastando dinheiro contratando
terceiros não vai ter interesse em contratar funcionário para o ministério da
Saúde ou para o funcionalismo estadual e municipal, porque já está gastando com
a agência que contratou para lhe vender serviço, a Adaps. Assim, uma briga que
era do congresso e pelo orçamento com o ministério da Economia do Paulo Guedes
vem para dentro do próprio terreno do ministério da Saúde. E manda-se o
ministro da Saúde resolver com o dinheiro empenhado na tal da Adaps para outras
finalidades. É óbvio que não vai ter grana pra contratar técnico, gestor, um
monte de outras coisas que precisaria fazer. Se duvidar, vai faltar dinheiro
para remédio e vacina.
·
Ainda nesse sentido, estamos falando de uma política
fiscal que você coloca como trava histórica, imposta desde antes de 2016,
quando aparece a EC-95. Agora, vemos debates intensificando entre os defensores
da autonomia do Banco Central e os críticos não alinhados ao “liberalismo
econômico à brasileira”, que colocam as posições do BC como uma barreira ao
governo Lula, inclusive uma barreira politizada. Como você observa essa questão
e como ela vai repercutir no financiamento do SUS e nos desafios da saúde
brasileira, depois de toda uma luta para recompor um orçamento mínimo?
Na
prática o Banco Central come orçamento público. Quando se elevam os juros,
eleva-se a quantia de dinheiro do orçamento retirada das funções públicas para
pagar juros a banqueiro. O Banco Central brasileiro está trabalhando a favor de
quem montou sua “independência”, isto é, os próprios banqueiros. E se eles têm
de cuidar de alguém, vão cuidar primeiro deles mesmos.
Lula
é corajoso ao não recusar o debate, mesmo sabendo que Globo, Folha de S. Paulo,
a mídia chamada da corrente principal, virá bater em cima na hora que ele
reclamar dos juros do Banco Central. Já estão fazendo isso. O interessante é
que começa a vazar, até vi um pequeno clipe da CNN em que alguém diz “todo
mundo está batendo no Lula, mas ninguém ouviu a versão dele”. Ele tem
conseguido furar a bolha. Ele está sendo politicamente mais corajoso do que nas
circunstâncias anteriores, quando tentava contemporizar com o BC da época do
Henrique Meirelles.
·
Enquanto isso, temos visto debates de algumas categorias
da classe trabalhadora, como a enfermagem, que de certa forma significam a
briga por uma fatia maior do orçamento. O movimento de saúde vai ter de entrar
mais a fundo no debate econômico?
Realmente,
estamos lutando contra muitos dragões ao mesmo tempo. E talvez o Lula esteja
seguindo um pouco da sabedoria do Ho Chi Min: “um inimigo de cada vez, tendo os
outros como aliados”. Mas não sei se é prático no momento ir por tal via e
estou dando um crédito de confiança ao governo que se iniciou em janeiro, primeiro
porque é a nossa única alternativa atual para combater o fascismo, coisa que
está fazendo de fato. Segundo, porque está colocando atores sociais em jogo,
que podem se destacar na mídia, na educação popular, na discussão do boca a
boca na rua. Essa disputa está mais equilibrada do que há um ano.
Não
tenho a visão de que nós vamos, por exemplo, conseguir que o Banco Central
volte a responder por políticas públicas, com um Congresso desses na mediação.
Não penso que a Adaps, que deveria ser fechada no primeiro dia, o será, a
exemplo da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), fechada no dia de entrada. Lula
botou o pé no tapete da sala do Palácio e fechou a Funasa. A fundação era um
problema, nem os gestores mais honestos tinham conseguido dar uma solução e fechá-la
logo no primeiro dia de governo foi uma medida corajosa.
A
Adaps deveria fechar, mas não sei se há força política. E agora há um processo
em que grupos técnicos que se bandearam para a agência estão justificando a
própria existência, dizendo coisas como se o Mais Médicos, por exemplo, existe
e deu algum resultado é porque eles colaboraram. É mentira, eles não
colaboraram. A Adaps foi criada para furar o programa Mais Médicos. Agora,
reescrevendo a história, fica parecendo que o Mais Médicos recebeu ajuda da
Adaps recém-criada. Isso não aconteceu. As pessoas estarem na Adaps hoje e
reportarem resultados positivos no programa Mais Médicos é uma coincidência
histórica, não é produto do trabalho da Adaps*.
Não
podemos ter a ingenuidade de pensar que resolveremos isso no primeiro momento,
mas devemos reconhecer que alguma coisa pode acontecer de positivo se soubermos
quem estamos enfrentando. Eu não tenho nenhuma aspiração de continuidade com o
modelo de criação de agências para substituir o Estado. Eu acho que isso é
básico, inclusive para quem pensa saúde pública de modo geral. Não é somente um
pensamento da esquerda, é também da chamada direita esclarecida, que hoje não
sabemos bem onde anda.
Fonte:
Por Heleno Corrêa Filho em entrevista a Gabriel Brito, para Outras Saúde
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