Teste da governabilidade depende do varejo no Congresso
Começou
o jogo que contrapõe um presidente da República de esquerda — mas dono da
caneta — a um Legislativo de maioria conservadora, mas que não sabe
sobreviver politicamente sem emendas e cargos. No recém-empossado Congresso, já
há uma bolsa de apostas em torno do primeiro teste legislativo do novo governo.
Tudo indica que, em algum momento, os parlamentares — sobretudo os deputados de
Arthur Lira — irão infligir uma derrota ao Planalto, só para mostrar quem
manda. Nada grave, que desestabilize ou prejudique o governo de forma
irreversível. Mas um recado — e a dinâmica que se estabelecer nesses primeiros
minutos da partida será decisiva para o jogo da governabilidade até 2026.
O
que se diz no tapete verde é que esse teste não vai esperar, certamente, pela
reforma tributária, de horizonte temporal incerto e, principalmente, objeto de
divergências que não se organizam em torno da disputa governo x oposição, mas
talvez entre União x estados/municípios, entre estados ricos e estados pobres,
ou mesmo entre interesses de setores diversos como indústria x serviços. Sua
complicada aprovação vai depender do entendimento entre essas forças, tendo o
governo como uma espécie de facilitador.
Dificilmente
também veremos o Legislativo derrubar a proposta de nova âncora fiscal que o
governo Lula apresentará ao Congresso sob a forma de lei complementar,
provavelmente até abril. Há dúvidas, entre parlamentares experientes, de que se
chegará a um consenso em torno desse arcabouço, destinado a substituir o teto
de gastos. Mas o Planalto não iria ao plenário em clima de incerteza, e se não
tiver os votos muito bem mapeados e acertados, não vota. Aliás, até no mercado
há quem diga que não haveria nada demais em continuar sobrevivendo com o
pé-direito alto estabelecido para permitir os gastos no Orçamento 2023 na PEC
da Transição. No limite, usa-se mecanismo semelhante para o ano que vem. Tudo
isso, porém, deve ficar para mais adiante.
O
teste de governabilidade poderá vir, e logo, na votação de temas menos
importantes, como vetos, ou sob a forma de medidas provisórias, como
a da nova estrutura administrativa, que acabou com a Funasa. Suas atribuições
foram divididas entre Saúde e Cidades, e com isso diluíram-se as
superintendências estaduais que faziam a festa do Centrão do Nordeste. A
pressão dos partidos aliados, como o PSD, e daqueles que começam a negociar uma
aproximação ao governo para restabelecer a estrutura anterior é enorme, e tudo
indica que o próprio PT não se entendeu internamente sobre o assunto. O
ministro da Casa Civil, Rui Costa, diz que a separação será mantida, enquanto o
líder na Câmara, Zeca Dirceu, prevê um acordo para a volta da Funasa.
Independentemente
do desfecho desse caso específico, o que se constata é que ainda há muito
varejo parlamentar a ser resolvido para que o Planalto tenha tranquilidade no
Congresso. A base que uniu inicialmente os partidos com os quais Lula se
elegeu, agregando MDB, PSD e União — que ganhou ministério mas não entregou o
apoio prometido — é insuficiente, e haja Funasas e Codevasfs para trazer
deputados do PP, do Republicanos e até do PL bolsonarista, hoje rachado ao
meio.
Sem
contar o jogo mais pesado do presidente da Câmara, que segundo aliados continua
muito insatisfeito por não ter emplacado o amigo Elmar Nascimento (União-BA) no
primeiro escalão. Daí o aceno de integrantes do governo e do PT, como a
presidente Gleisi Hoffmann, a mudanças que podem deslocar ministros do União de
suas pastas se o partido fizer feio no primeiro teste de plenário.
Ø
Afagos
de Lula à esquerda e aos amigos empreiteiros irritam os partidos aliados
Declarações
recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que criticou o Banco Central,
tem tratado o impeachment de Dilma Rousseff como “golpe” e defendeu o uso do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para financiar
obras no exterior, provocaram incômodo na frente ampla de apoio ao governo,
tratada pelo petista durante a campanha como fundamental para o sucesso de sua
gestão.
O
discurso agrada à base mais fiel do titular do Palácio do Planalto, mas gera
críticas entre aliados do centro à esquerda, como PSD, PSB, MDB e Cidadania.
Parte
deles levou o descontentamento a Lula na quarta-feira, durante a reunião do
Conselho Político da coalizão, composto por representantes de legendas que
integram a atual administração, no Planalto. O presidente do Cidadania,
ex-deputado Roberto Freire, foi um dos que se manifestaram na ocasião.
—
Eu estive com o presidente e coloquei muito claramente que temos divergências.
Os juros estão na estratosfera, e isso é um problema, mas nós defendemos a
autonomia do Banco Central — disse.
O
BC tornou-se alvo ao longo da última semana. Nesse período, Lula questionou a
taxa de juros de 13,75% e a independência do banco. Ele também atacou
diretamente o presidente da instituição, Roberto Campos Neto, nomeado para o
posto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
“Quero
saber do que serviu a independência do Banco Central. Eu vou esperar esse
cidadão (Roberto Campos Neto) terminar o mandato dele para fazermos uma
avaliação do que significou o Banco Central independente“ — disse o petista na
segunda-feira.
Aliados
também desaprovam o fato de Lula ter voltado a classificar o impeachment de
Dilma como “golpe de Estado”, durante a viagem do petista à Argentina no final
do mês passado. A frase de Lula reverberou em diferentes partidos da base. No
MDB, Michel Temer, que assumiu a Presidência da República com a queda de Dilma,
rebateu o petista.
“O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece insistir em manter os pés no
palanque e os olhos no retrovisor, agora tentando reescrever a História por
meio de narrativas ideológicas”, criticou, por meio de nota.
No
PSD, que tem três ministérios (Minas e Energia, Agricultura e Pesca), tanto o
discurso do golpe quanto os ataques ao Banco Central são malvistos.
—
O presidente Lula nesses primeiros dias tem demonstrado, em relação à economia,
que quer dar uma guinada. Isso é muito perigoso — disse o presidente do
partido, Gilberto Kassab, na semana passada, em entrevista ao portal UOL.
Embora
tenha por objetivo afagar a sua base mais à esquerda, as afirmações de Lula
encontraram descontentes até nas legendas desse campo, entre elas o PSB, sigla
do vice-presidente, Geraldo Alckmin, e um dos partidos mais afinados ao PT.
Lideranças da sigla dizem que a trincheira aberta contra o BC e Campos Neto,
assim como a classificação do impeachment como golpe são desnecessárias.
Dias
depois de disparar contra a maior autoridade monetária do país, Lula saiu em
defesa de uma das iniciativas mais criticadas dos governos petistas: o
financiamento pelo BNDES de obras públicas em outros países, como Cuba e
Venezuela.
Ele
aproveitou a cerimônia de posse de Aloizio Mercadante como presidente do banco
de desenvolvimento, na segunda-feira, para dizer que a instituição foi “vítima
de difamação muito grave” durante a campanha. A declaração também pegou mal
entre governistas.
Outro
ponto que desagradou integrantes da frente ampla foi a discussão sobre uma
moeda comum entre os países do Mercosul. Lula assinou uma carta com o
presidente da Argentina, Alberto Fernandéz, anunciando estudos para
implementá-la. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve que explicar que a
ideia era ampliar os mecanismos que facilitassem o comércio entre os dois
países e não criar uma moeda.
Ø
Palanque
se impõe e já Lula se aproxima de posições de Dilma e Bolsonaro na economia
A
linha que separa a retórica política e o tecnicismo governamental guarda grande
capacidade de provocar ruídos. O debate puxado pelo presidente Luiz Inácio Lula
da Silva sobre a conveniência da atual política de juros do Banco Central — que
envolve, inclusive, a autonomia da autoridade monetária frente ao Executivo —
está longe de ser um caso isolado ou um fenômeno dos dias atuais.
Nos
últimos 10 anos, a manutenção do capital político, em detrimento das
recomendações técnicas, marcou os governos de Jair Bolsonaro (PL) e de Dilma
Rousseff (PT). A ex-presidente, por exemplo, bancou a política de expansão de
gastos nos primeiros quatro anos de governo.
Dilma
Rousseff foi reeleita, mas, no segundo mandato, diante do recrudescimento dos
desequilíbrios fiscais e da escalada da inflação, tentou dar uma virada
ortodoxa ao chamar Joaquim Levy, “o homem do ajuste”, para calar as críticas
que minavam sua base no Congresso. Ao fim, acabou tragada pela instabilidade
política que levou ao impeachment. Também em sua gestão, o Brasil perdeu o grau
de investimento que atestava a solidez das contas públicas.
Nova
tentativa de ajuste das contas públicas foi feita na gestão de Michel Temer
(MDB), com a aprovação, na Câmara e no Senado, da Lei do Teto de Gastos, que
funciona até hoje como âncora fiscal.
Outra
decisão do governo do emedebista que provoca reflexos até hoje é a paridade de
preços dos combustíveis com as cotações internacionais, que o atual governo
Lula tenta alterar. Ambos os casos ilustram aderência de Temer à cartilha de
sua equipe econômica.
No
governo Bolsonaro, retornaram as tensões entre áreas técnicas e posicionamentos
político-ideológicos do grupo que assumiu o poder. Os ruídos também. Na maior
crise sanitária mundial dos últimos 100 anos, Bolsonaro assumiu uma postura
negacionista diante da gravidade da pandemia de covid-19, perdeu dois ministros
da Saúde ligados à área médica, debochou do uso de máscaras e atrasou a compra
de vacinas, não sem antes questionar sua eficácia.
Os
exemplos acima mostram que o embate político atropelou o viés técnico e gerou
desgastes para o governo de plantão, contaminando e fragilizando as relações do
Executivo com as instituições.
Lula
já não encontra unanimidade em suas críticas a Campos Neto, nem mesmo dentro de
sua própria base aliada, incluindo congressistas e ministros. Na semana
passada, o presidente disse não existir “nenhuma justificativa” para a Selic se
manter no atual patamar de 13,75% ao ano. “Não é o Lula que vai brigar, não.
Quem tem que brigar (para baixar a taxa de juros) é a sociedade brasileira”,
disse.
A
autonomia do Banco Central, assegurada por lei, também entrou no pacote de
críticas, com aval de ministros como Flávio Dino, da Justiça e Segurança
Pública. “Todos os órgãos administrativos estão sob a autoridade do chefe de
governo delegatário da vontade popular. E nem o mandato presidencial é
incondicional e ilimitado”, declarou o ministro, que complementou: “Autonomia
não é soberania”
Aliado
de Lula, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) é a favor da manutenção da
autonomia do BC, assim como os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG),
e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Ninguém admite pautar uma nova mudança da lei
que blinda o banco Central de ingerências políticas.
Em
2016, Lula chegou a pedir pessoalmente a Renan Calheiros para que a autonomia
do BC fosse pautada no Senado. Mas a “soberania” do BC só foi consolidada em
2021. Antes, havia sido defendida publicamente por Lula em 2013, e pelo PT,
entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000.
¨ Lula ameaça
transformar seu governo num “Dilma 2”, adverte Armínio Fraga
O
ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, diz que Luiz Inácio Lula da
Silva não é o único no Brasil a considerar que os juros estão elevados, mas
afirma que a instituição precisa de ajuda para melhorar condições da economia e
avançar para uma queda nas taxas.
Segundo
Fraga, com quem conversei hoje, “é inegável” que os juros são altos, mas a
solução para tentar reduzi-los não passa por dar declarações que reduzem a
confiança dos agentes econômicos na capacidade do governo de manejar de forma
responsável as contas públicas.
“As
taxas de juros são mesmo uma questão, o Brasil é um ponto fora da curva. Mas
para mim está mais ou menos claro que se o Banco Central, sozinho, não está
conseguindo dar conta – ou até está, mas está custando muito caro – isso quer
dizer que ele precisa de uma ajuda fiscal do governo”, diz.
Para
ele, os ataques de Lula ao BC e a seu presidente, Roberto Campos Neto, provocam
muitas dúvidas em relação à disposição do governo de manter a disciplina
fiscal.
“Dar
um apoio amplo a medidas dessa natureza teria um efeito importante sobre a
credibilidade da política econômica, que reduziria o prêmio de risco (sobre os
títulos da dívida brasileira) e ajudaria na valorização do real frente ao
dólar. Mas o que a gente está vendo é uma ameaça de voluntarismo, que é
Dilma.2, que está fadada ao insucesso, e que pode atrapalhar tudo de bom que
esse governo pode fazer”.
Para
Fraga, que comandou o Banco Central durante o governo de Fernando Henrique
Cardoso e hoje é gestor do Gávea Investimentos, a reação do presidente da
República ao comunicado do Copom que citava uma “incerteza maior do que o
habitual” no âmbito da política monetária foi fruto de interpretação errada.
“O
correto (seria entender que) apesar do esforço de Haddad em promover um ajuste,
todo o estrago que foi feito pelo atual presidente com as suas declarações vai
na direção contrária. O que ele diz tem peso, e não ajuda a eliminar a
impressão geral de que o atual governo não tem uma convicção firme em relação à
importância da disciplina fiscal”.
O
ex-presidente do BC não está entre os gestores e investidores que consideram
que as declarações de Lula são arroubos retóricos que poderão ser contidos pela
equipe econômica.
“Isso
é sério, e inclusive contradiz o que Lula disse na campanha, que era ‘não se
preocupe, que em todos os meus governos eu tive superávit primário’, e agora
não há um compromisso formal com o superávit. Esse compromisso tem que
existir”, assinala Fraga.
Fraga,
que defende a independência do Banco Central, reconhece que Roberto Campos Neto
merece críticas por ter se alinhado politicamente ao bolsonarismo.
“Foi
uma pena ele ter tomado certas atitudes, mas não vamos confundir as coisas. Eu
não tenho por que achar que ele vai tomar medidas equivocadas de propósito para
punir esse governo. Isso é de um nonsense completo”.
O
ex-dirigente do BC diz que dá mais valor do que muitos de seus colegas ao
ajuste que Haddad se comprometeu a fazer. “Acho que é um primeiro passo. Mas
ainda deixa o saldo primário negativo em 1% mais ou menos, quando deveria ir
para um superávit de no mínimo 2%”.
Chegar
lá, segundo ele, depende de uma série de outras definições do governo Lula,
como fazer a reforma tributária, não retroceder nas reformas previdenciária e
trabalhista natureza da reforma tributária, ou entrar na OCDE, por exemplo.
Fraga
acha que não é necessário mudar a meta de inflação. Em sua opinião o BC já
trabalha com um horizonte mais longo para a política monetária, que segundo a
própria ata do Copom é o terceiro trimestre de 2024. Ou seja, a inflação pode
cruzar este ano um pouco acima da meta, desde que chegue à meta no final de
2024. “Minha leitura é que isso já é uma flexibilização, e uma flexibilização
adequada”.
O
que ele considera que o governo Lula não pode perder de vista é a noção da
importância do ajuste. Isso porque, em sua visão, o presidente da República
está influenciado por pessoas que “prometeram a ele milagres, dizendo que não
tem problema em se endividar e que pode tomar dinheiro emprestado sem limites”.
Um
dos protagonistas da transição entre o governo FHC e o primeiro governo de
Lula, o ex-presidente do BC afirma que “se o presidente refletir sobre a
própria experiência dele, talvez ele dispense essas ideias meio malucas que
estão surgindo e siga um caminho que a meu ver é não só compatível com a busca
da responsabilidade social, mas é necessário. Porque na bagunça fiscal, pode
ter certeza que os pobres sempre perdem”.
Fonte:
Por Helena Chagas, em Os Divergentes/O Globo/Correio Braziliense
Nenhum comentário:
Postar um comentário