Sérgio Ricardo Dusilek: O que explica a opção evangélica pelo bolsonarismo?
Há
muita coisa sendo escrita sobre a opção evangélica pelo bolsonarismo. Muitas
teses, interessantes por sinal, já foram esboçadas. Sem querer ser repetitivo,
tampouco inaugurar um ineditismo, gostaria de sugerir um quádruplo foco, o qual
perpassa pelas ideias de memória, pela “redoma”, pelo que estou provisoriamente
chamando de novos processos e por fim pelo viés hermenêutico. Especialmente
neste texto concentrarei no primeiro foco, o da memória.
Quando
penso em memória, não estou trabalhando com arquétipos individuais, mas sim de
um grupo social. Maurice Halbwachs já afirmava que a identidade de um grupo,
similar ao indivíduo, era mais definida por aquilo que lhe é inconsciente do
que consciente. Nesse processo de tessitura do inconsciente coletivo se faz
presente essa memória fundacional, arquetípica.
Tal
perspectiva nos remete a falar do puritanismo inglês, berço espiritual do
surgimento de parte das denominações protestantes históricas, não por acaso as
praticantes de um protestantismo de missão, como os batistas e metodistas. O
puritanismo foi um movimento sócio-religioso de cunho espiritual que apregoava
uma piedade orgânica, sem a enviesada interferência estatal, uma vida de
santidade e obediência aos mandamentos bíblicos, como resposta à Reforma
inglesa, da qual emergiu a Igreja Anglicana.
No
auge desse período puritano Voltaire esteve em Londres. Em uma de suas Cartas
Inglesas, o filósofo francês protesta pela ausência de pub’s abertos no
domingo. Ele querendo tomar uma bebida, reclamou, com seu característico
sarcasmo, do impedimento por não ter onde comprar, por conta do movimento
puritano que sacralizou o domingo.
O
puritanismo deixa após si três principais legados que são também problemas.
A
primeira herança é a confirmação de uma eleição especial, de gente que se acha
mais próxima de Deus do que os demais. A própria existência do destino
manifesto, que norteou os peregrinos na chegada à Nova Terra, se faz presente no
ethos norte-americano revelado na construção identitária de que aquela nação é
especial, diferente de todas as demais. Sua produção cultural manifesta
claramente os Estados Unidos como uma espécie de “Capitão América” do mundo.
O
resultado desta eleição, deste destino manifesto? A colonizadora pretensão de
saber o que é melhor para todo o resto do mundo, além do empreendimento de
certo tipo de messianismo. O mundo se torna tanto subserviente quanto
expectativa. Este traço norteou a chegada do protestantismo no Brasil, vindo de
missionários americanos. Dessa dependência estadunidense o protestantismo no
Brasil nunca se desvencilhou. Aqui reside parte da explicação para as
dificuldades com o ecumenismo e com o diálogo inter-religioso, tendo em vista
que esses grupos se acham divinamente superiores. Também aqui, nesta especial
eleição reside o reforço na expectativa messiânica.
Esta
altivez encontrada justamente entre os que deveriam ser humildes de espírito
explica parte da postura inarredável de muitos evangélicos, que optam pelo
negacionismo mesmo sendo confrontados ora pela ciência, ora pela realidade.
A
segunda herança do puritanismo que nos interessa neste momento foi o legalismo.
Se, em um primeiro momento, a santidade almejada espelhava uma piedade sincera,
com o passar do tempo sobrou o regramento. Sem a vivência do amor, a santidade
se reduz a mero legalismo. Um cristianismo de pautas morais, de maximização de
costumes sempre se torna presa fácil para ideologias políticas. Como lembra
Claude-Gilbert Dubois:
“Maquiavel
percebeu bem como pode ser útil um discurso moral fundamentado na tradição mas
não efetivamente operativo, pela influência que exerce sobre o imaginário,
contribuindo para assegurar o poder. O objetivo é fazer os outros acreditarem
na nossa causa. Se falta força, o príncipe recorre à astúcia; as ideias de
império, cruzada, defesa da cristandade, religião são cortinas do estrategista
político realista, com efeito sobre os ignorantes, manipulados em seu
benefício.”.
Não
foi isso que vimos ao longo de quatro anos? A cooptação de temas sensíveis para
os religiosos como meio de manipulação para que os destinatários da mensagem
sejam envolvidos na causa. Não importa se o “príncipe” pouco encarna, vive,
representa os valores a serem defendidos; importa que estes nevrálgicos pontos
estejam no seu discurso, ainda que pese a incoerência e a visível contradição
com a prática.
O
terceiro e último legado que perfaz essa memória fundacional evangélica é a
ênfase do puritanismo em sua visão de mundo dicotômica. Richard Niebuhr tinha
qualificado esse tipo de expressão da fé cristã como Cristo em oposição à
Cultura (Cristo x Cultura). Esse maniqueísmo protestante que coloca a igreja
contra o mundo, que sacraliza os de dentro e demoniza os de fora, que chega a desprezar
as artes pelo movimento iconoclasta, ganhou novas feições, no final do século
XX, com a propagação pelo Seminário Teológico Fuller e por Charles Peter
Wagner, da noção de batalha espiritual, da luta entre anjos contra demônios,
entre Deus e o Diabo.
Ora,
quando a extrema direita adentrou com seu conceito de guerra cultural, da luta
do bem contra o mal, ela encontrou terreno fértil e preparado justamente entre
os evangélicos. Foi uma espécie de “Fator Melquisedeque” às avessas. O
resultado é esse clima de Fla x Flu em permanente looping que estamos vivendo,
em que o outro se torna inimigo, não um contrário, pois ele estaria, nessa
concepção, imbuído do mal. Neste estágio, os cancelamentos, as rupturas, não
são só possíveis, como desejáveis.
O
que tentei mostrar neste texto, elencando três aspectos que penso ser
decorrentes do puritanismo, é a condição estrutural que o Bolsonarismo
encontrou para crescer. A igreja evangélica se tornou um grupo hospedeiro por
excelência para o vírus bolsonarista. E esta foi a primeira pandemia que
enfrentamos: a sócio-religiosa.
O sequestro do cristianismo pela extrema
direita no mundo. Por Manuela Löwenthal
Nos
últimos anos, diversos países ocidentais passaram a se organizar em grupos que
se sentiam lesionados por avanços de pautas sociais ligadas às minorias,
traduzidas na agenda progressista rotulada como tirânica por esses grupos
compostos por cristãos, políticos e parte da classe média. Os avanços em torno
de igualdade social, de direitos civis e de ações afirmativas impostas por
governos comprometidos com a sociedade e a justiça social foram considerados
uma verdadeira ameaça aos grupos conservadores, como demonstra a professora de
Ciência Política da Universidade da Califórnia Wendy Brown, em seu livro Nas
ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente.
Diversas
manifestações que expressavam a insatisfação com avanços democráticos passaram
a ocorrer na Europa e no mundo. Um exemplo disso foram as expressivas
manifestações contrárias ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, realizadas
em Paris e em outras cidades francesas durante os anos de 2012 e 2013, as quais
surpreenderam o mundo por terem ocorrido em um país que por muito tempo foi
considerado um exemplo de secularismo e liberdade sexual.
Ainda
em 2012, várias manifestações contra a união homoafetiva reuniu diversos grupos
conservadores em outros países europeus como Itália, Croácia, Espanha e
Eslovênia. Em comum, elas reinvidicaram publicamente o tradicionalismo
patriarcal e a impossibilidade de novas configurações familiares.
A
defesa dos valores tradicionais se tornou pauta central nos últimos anos em
campanhas políticas do Estado Russo, tendo sido projetada pelo Kremlin com o
apoio da Igreja Ortodoxa. Há alguns anos na Polônia, o partido governista
atacou a homossexualidade e na Hungria, o atual Primeiro- Ministro Viktor
Orbán, posiciona-se cada vez mais contrário ao avanço de pautas que envolvem os
direitos de minorias sexuais, como afirma o sociólogo David Paternotte em
entrevista publicada no portal espanhol El Diário.
Foi
com grande surpresa que o mundo assistiu ao avanço de pautas de extrema direita
e à eclosão de manifestações conservadoras bem sucedidas na Europa, um
continente que até então era considerado exemplo em termos de avanço na
igualdade de gênero, direitos sexuais e humanos. Este cenário forçou a reação
de movimentos sociais e grupos de esquerda.
Diversos
estudiosos do tema relatam uma apropriação do cristianismo por grupos de
extrema direita na Europa. A identidade cristã é acionada para reforçar um
pertencimento cultural, criando a ideia de pureza nacional e ideologia
política.
Dessa
forma, uma série de líderes populistas sem nenhuma profundidade teológica se
utilizam do cristianismo para criar uma “diferenciação” entre aqueles que fazem
parte do grupo e aqueles que estão fora do grupo. Essa diferenciação alimenta
um sentimento de pertencimento muito potente e eficaz para a mobilização. É
construída a ideia de que há inimigos a serem combatidos, pessoas que não
compartilham de determinada visão de mundo, projeto de civilização e progresso.
E a partir de um poderoso discurso bélico é mobilizada a ideia de que essas
pessoas devem ser combatidas. Na Europa, essa “barreira invisível” entre grupos
pode ser observada através da marginalização e exclusão dos não cristãos, como
por exemplo os mulçumanos.
Um
movimento muito semelhante ocorre no Brasil atual. Grupos de extremistas
reivindicam a legitimidade das tradições cristãs como parte da cultura
brasileira para retirar a legitimidade das demandas progressistas relacionadas
aos direitos das mulheres, à questão de gênero e aos direitos reprodutivos. O
inimigo atacado são os grupos à esquerda, considerados subversivos e uma ameaça
à família e à ordem.
O
ex-presidente Jair Bolsonaro é um bom exemplo de apropriação do cristianismo
por lideranças populistas. Bolsonaro assumiu desde o início que seu governo
seria alinhado com a Frente Parlamentar Evangélica, aderindo um discurso que
buscava conquistar cristãos. Sua busca por uma roupagem cristã foi reforçada ao
longo do governo pela alegação de que o Estado é laico, mas a sociedade não. Em
diversos discursos públicos, o ex-presidente citou versículos bíblicos e
destacou que em seu governo seria “terrivelmente cristão”. Bolsonaro reforçou
um discurso bélico que estimulou uma visão do adversário político como inimigo
a ser aniquilado, impossibilitando a convivência das diferenças e a
possibilidade de discordância, em um posicionamento tendencioso ao
autoritarismo.
Embora
Bolsonaro se autodenominasse a voz do verdadeiro cristão brasileiro, pouco
recorria à teologia. Assim como ocorre em outros países, a extrema direita se
afirma cristã mas age de forma contrária a valores centrais do cristianismo,
como a igualdade, a piedade, a compaixão e o respeito, em um movimento que
busca o sequestro populista da religião.
Mesmo
sem Bolsonaro no poder, grupos de extrema direita continuam se utilizando da
identidade cristã para legitimar suas reivindicações e, no caso brasileiro,
atos terroristas. Bolsonaro serviu como o motivo para esses grupos emergirem no
Brasil, porém, o que tudo indica é que a partir de agora eles não irão mais
precisar de Bolsonaro para permanecerem reivindicando sua agenda conservadora
forjada em uma falsa identidade cristã.
Isso
mostra que esse movimento não é uma tendência isolada, mas sim, uma estratégia
global. Porém, esse fenômeno se manifesta de forma diferente em cada país, de
acordo com a história, contexto social, econômico, político e cultural de cada
local.
Congresso reflete dilemas dos evangélicos
do país. Por Vinicius do Valle
O
início de fevereiro trouxe o início dos trabalhos da nova legislatura do
Congresso Nacional, e com ela também os embates e confusões entre a bancada
evangélica, que pelas contas do seu atual presidente, o deputado Sóstenes
Cavalcante, contará com 132 deputados e 14 senadores – levando em conta que,
entre eles, há evangélicos e simpatizantes conservadores do bloco. Pela
primeira vez, não houve entre esse grupo um acordo para a escolha do seu líder.
Como consequência, no dia 2 de fevereiro, houve uma tentativa de votação com
essa tarefa. No entanto, o evento ficou só na tentativa: após uma série de
mal-entendidos, incluindo problemas de inscrição e contabilidade dos votos, a
eleição foi anulada.
Por
trás da confusão há mais que embates e vaidades pessoais. Em jogo está também a
linha política que será a tônica da bancada. De forma geral, a disputa se dá
entre a linha que defende uma aproximação estratégica com o governo Lula, capaz
de facilitar o trânsito do grupo com o governo, e aquela que defende um
exercício de oposição mais contundente.
Nesse
ponto, a bancada evangélica reflete dilemas da base social que representa. Há
uma série de igrejas e pastores que gostariam de ter maior influência e diálogo
com o novo governo. Também há, por outro lado, aqueles líderes que continuam
contaminados pelo discurso bolsonarista de que o PT seria uma “força do mal a
ser vencida”, e inclusive atuam como amplificadores dos devaneios golpistas que
ainda circulam entre o bolsonarismo radical. Em outras palavras, se tornaram
eles mesmos extremistas. Entre essas duas posições, estão uma extensa gama de
pastores que adorariam estar mais próximos do governo, mas manifestam o
contrário, constrangidos pelos seus próprios fiéis para não mudarem
radicalmente de posição em relação ao PT e à esquerda.
A
adesão ao bolsonarismo cobrou um preço aos evangélicos que ainda não foi
devidamente contabilizado. Ao transformarem igrejas em bases para discursos
extremistas, pastores radicalizaram parte dos seus fiéis. Tal situação,
enquanto Bolsonaro era presidente, não causou problemas imediatos. Agora que os
ventos mudaram, no entanto, muitos desses mesmos pastores não podem, com o
pragmatismo usual, simplesmente mudar de posicionamento. Pelo menos não de
forma discreta e sem gerar ruídos.
De
cima a baixo, a situação constrangedora que líderes evangélicos se encontram
deveria servir para gerar reflexões e autocríticas sobre sua atuação política
no último período. Tal atitude, no entanto, requer uma maturidade que não
parece estar presente no meio.
Fonte:
Congresso em Foco
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