sexta-feira, 10 de março de 2023


 Sérgio Ricardo Dusilek: O que explica a opção evangélica pelo bolsonarismo?

Há muita coisa sendo escrita sobre a opção evangélica pelo bolsonarismo. Muitas teses, interessantes por sinal, já foram esboçadas. Sem querer ser repetitivo, tampouco inaugurar um ineditismo, gostaria de sugerir um quádruplo foco, o qual perpassa pelas ideias de memória, pela “redoma”, pelo que estou provisoriamente chamando de novos processos e por fim pelo viés hermenêutico. Especialmente neste texto concentrarei no primeiro foco, o da memória.

Quando penso em memória, não estou trabalhando com arquétipos individuais, mas sim de um grupo social. Maurice Halbwachs já afirmava que a identidade de um grupo, similar ao indivíduo, era mais definida por aquilo que lhe é inconsciente do que consciente. Nesse processo de tessitura do inconsciente coletivo se faz presente essa memória fundacional, arquetípica.

Tal perspectiva nos remete a falar do puritanismo inglês, berço espiritual do surgimento de parte das denominações protestantes históricas, não por acaso as praticantes de um protestantismo de missão, como os batistas e metodistas. O puritanismo foi um movimento sócio-religioso de cunho espiritual que apregoava uma piedade orgânica, sem a enviesada interferência estatal, uma vida de santidade e obediência aos mandamentos bíblicos, como resposta à Reforma inglesa, da qual emergiu a Igreja Anglicana.

No auge desse período puritano Voltaire esteve em Londres. Em uma de suas Cartas Inglesas, o filósofo francês protesta pela ausência de pub’s abertos no domingo. Ele querendo tomar uma bebida, reclamou, com seu característico sarcasmo, do impedimento por não ter onde comprar, por conta do movimento puritano que sacralizou o domingo.

O puritanismo deixa após si três principais legados que são também problemas.

A primeira herança é a confirmação de uma eleição especial, de gente que se acha mais próxima de Deus do que os demais. A própria existência do destino manifesto, que norteou os peregrinos na chegada à Nova Terra, se faz presente no ethos norte-americano revelado na construção identitária de que aquela nação é especial, diferente de todas as demais. Sua produção cultural manifesta claramente os Estados Unidos como uma espécie de “Capitão América” do mundo.

O resultado desta eleição, deste destino manifesto? A colonizadora pretensão de saber o que é melhor para todo o resto do mundo, além do empreendimento de certo tipo de messianismo. O mundo se torna tanto subserviente quanto expectativa. Este traço norteou a chegada do protestantismo no Brasil, vindo de missionários americanos. Dessa dependência estadunidense o protestantismo no Brasil nunca se desvencilhou. Aqui reside parte da explicação para as dificuldades com o ecumenismo e com o diálogo inter-religioso, tendo em vista que esses grupos se acham divinamente superiores. Também aqui, nesta especial eleição reside o reforço na expectativa messiânica.

Esta altivez encontrada justamente entre os que deveriam ser humildes de espírito explica parte da postura inarredável de muitos evangélicos, que optam pelo negacionismo mesmo sendo confrontados ora pela ciência, ora pela realidade.

A segunda herança do puritanismo que nos interessa neste momento foi o legalismo. Se, em um primeiro momento, a santidade almejada espelhava uma piedade sincera, com o passar do tempo sobrou o regramento. Sem a vivência do amor, a santidade se reduz a mero legalismo. Um cristianismo de pautas morais, de maximização de costumes sempre se torna presa fácil para ideologias políticas. Como lembra Claude-Gilbert Dubois:

“Maquiavel percebeu bem como pode ser útil um discurso moral fundamentado na tradição mas não efetivamente operativo, pela influência que exerce sobre o imaginário, contribuindo para assegurar o poder. O objetivo é fazer os outros acreditarem na nossa causa. Se falta força, o príncipe recorre à astúcia; as ideias de império, cruzada, defesa da cristandade, religião são cortinas do estrategista político realista, com efeito sobre os ignorantes, manipulados em seu benefício.”.

Não foi isso que vimos ao longo de quatro anos? A cooptação de temas sensíveis para os religiosos como meio de manipulação para que os destinatários da mensagem sejam envolvidos na causa. Não importa se o “príncipe” pouco encarna, vive, representa os valores a serem defendidos; importa que estes nevrálgicos pontos estejam no seu discurso, ainda que pese a incoerência e a visível contradição com a prática.

O terceiro e último legado que perfaz essa memória fundacional evangélica é a ênfase do puritanismo em sua visão de mundo dicotômica. Richard Niebuhr tinha qualificado esse tipo de expressão da fé cristã como Cristo em oposição à Cultura (Cristo x Cultura). Esse maniqueísmo protestante que coloca a igreja contra o mundo, que sacraliza os de dentro e demoniza os de fora, que chega a desprezar as artes pelo movimento iconoclasta, ganhou novas feições, no final do século XX, com a propagação pelo Seminário Teológico Fuller e por Charles Peter Wagner, da noção de batalha espiritual, da luta entre anjos contra demônios, entre Deus e o Diabo.

Ora, quando a extrema direita adentrou com seu conceito de guerra cultural, da luta do bem contra o mal, ela encontrou terreno fértil e preparado justamente entre os evangélicos. Foi uma espécie de “Fator Melquisedeque” às avessas. O resultado é esse clima de Fla x Flu em permanente looping que estamos vivendo, em que o outro se torna inimigo, não um contrário, pois ele estaria, nessa concepção, imbuído do mal. Neste estágio, os cancelamentos, as rupturas, não são só possíveis, como desejáveis.

O que tentei mostrar neste texto, elencando três aspectos que penso ser decorrentes do puritanismo, é a condição estrutural que o Bolsonarismo encontrou para crescer. A igreja evangélica se tornou um grupo hospedeiro por excelência para o vírus bolsonarista. E esta foi a primeira pandemia que enfrentamos: a sócio-religiosa.

 

       O sequestro do cristianismo pela extrema direita no mundo. Por Manuela Löwenthal

 

Nos últimos anos, diversos países ocidentais passaram a se organizar em grupos que se sentiam lesionados por avanços de pautas sociais ligadas às minorias, traduzidas na agenda progressista rotulada como tirânica por esses grupos compostos por cristãos, políticos e parte da classe média. Os avanços em torno de igualdade social, de direitos civis e de ações afirmativas impostas por governos comprometidos com a sociedade e a justiça social foram considerados uma verdadeira ameaça aos grupos conservadores, como demonstra a professora de Ciência Política da Universidade da Califórnia Wendy Brown, em seu livro Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente.

Diversas manifestações que expressavam a insatisfação com avanços democráticos passaram a ocorrer na Europa e no mundo. Um exemplo disso foram as expressivas manifestações contrárias ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, realizadas em Paris e em outras cidades francesas durante os anos de 2012 e 2013, as quais surpreenderam o mundo por terem ocorrido em um país que por muito tempo foi considerado um exemplo de secularismo e liberdade sexual.

Ainda em 2012, várias manifestações contra a união homoafetiva reuniu diversos grupos conservadores em outros países europeus como Itália, Croácia, Espanha e Eslovênia. Em comum, elas reinvidicaram publicamente o tradicionalismo patriarcal e a impossibilidade de novas configurações familiares.

A defesa dos valores tradicionais se tornou pauta central nos últimos anos em campanhas políticas do Estado Russo, tendo sido projetada pelo Kremlin com o apoio da Igreja Ortodoxa. Há alguns anos na Polônia, o partido governista atacou a homossexualidade e na Hungria, o atual Primeiro- Ministro Viktor Orbán, posiciona-se cada vez mais contrário ao avanço de pautas que envolvem os direitos de minorias sexuais, como afirma o sociólogo David Paternotte em entrevista publicada no portal espanhol El Diário.

Foi com grande surpresa que o mundo assistiu ao avanço de pautas de extrema direita e à eclosão de manifestações conservadoras bem sucedidas na Europa, um continente que até então era considerado exemplo em termos de avanço na igualdade de gênero, direitos sexuais e humanos. Este cenário forçou a reação de movimentos sociais e grupos de esquerda.

Diversos estudiosos do tema relatam uma apropriação do cristianismo por grupos de extrema direita na Europa. A identidade cristã é acionada para reforçar um pertencimento cultural, criando a ideia de pureza nacional e ideologia política.

Dessa forma, uma série de líderes populistas sem nenhuma profundidade teológica se utilizam do cristianismo para criar uma “diferenciação” entre aqueles que fazem parte do grupo e aqueles que estão fora do grupo. Essa diferenciação alimenta um sentimento de pertencimento muito potente e eficaz para a mobilização. É construída a ideia de que há inimigos a serem combatidos, pessoas que não compartilham de determinada visão de mundo, projeto de civilização e progresso. E a partir de um poderoso discurso bélico é mobilizada a ideia de que essas pessoas devem ser combatidas. Na Europa, essa “barreira invisível” entre grupos pode ser observada através da marginalização e exclusão dos não cristãos, como por exemplo os mulçumanos.

Um movimento muito semelhante ocorre no Brasil atual. Grupos de extremistas reivindicam a legitimidade das tradições cristãs como parte da cultura brasileira para retirar a legitimidade das demandas progressistas relacionadas aos direitos das mulheres, à questão de gênero e aos direitos reprodutivos. O inimigo atacado são os grupos à esquerda, considerados subversivos e uma ameaça à família e à ordem.

O ex-presidente Jair Bolsonaro é um bom exemplo de apropriação do cristianismo por lideranças populistas. Bolsonaro assumiu desde o início que seu governo seria alinhado com a Frente Parlamentar Evangélica, aderindo um discurso que buscava conquistar cristãos. Sua busca por uma roupagem cristã foi reforçada ao longo do governo pela alegação de que o Estado é laico, mas a sociedade não. Em diversos discursos públicos, o ex-presidente citou versículos bíblicos e destacou que em seu governo seria “terrivelmente cristão”. Bolsonaro reforçou um discurso bélico que estimulou uma visão do adversário político como inimigo a ser aniquilado, impossibilitando a convivência das diferenças e a possibilidade de discordância, em um posicionamento tendencioso ao autoritarismo.

Embora Bolsonaro se autodenominasse a voz do verdadeiro cristão brasileiro, pouco recorria à teologia. Assim como ocorre em outros países, a extrema direita se afirma cristã mas age de forma contrária a valores centrais do cristianismo, como a igualdade, a piedade, a compaixão e o respeito, em um movimento que busca o sequestro populista da religião.

Mesmo sem Bolsonaro no poder, grupos de extrema direita continuam se utilizando da identidade cristã para legitimar suas reivindicações e, no caso brasileiro, atos terroristas. Bolsonaro serviu como o motivo para esses grupos emergirem no Brasil, porém, o que tudo indica é que a partir de agora eles não irão mais precisar de Bolsonaro para permanecerem reivindicando sua agenda conservadora forjada em uma falsa identidade cristã.

Isso mostra que esse movimento não é uma tendência isolada, mas sim, uma estratégia global. Porém, esse fenômeno se manifesta de forma diferente em cada país, de acordo com a história, contexto social, econômico, político e cultural de cada local.

 

       Congresso reflete dilemas dos evangélicos do país. Por Vinicius do Valle

 

O início de fevereiro trouxe o início dos trabalhos da nova legislatura do Congresso Nacional, e com ela também os embates e confusões entre a bancada evangélica, que pelas contas do seu atual presidente, o deputado Sóstenes Cavalcante, contará com 132 deputados e 14 senadores – levando em conta que, entre eles, há evangélicos e simpatizantes conservadores do bloco. Pela primeira vez, não houve entre esse grupo um acordo para a escolha do seu líder. Como consequência, no dia 2 de fevereiro, houve uma tentativa de votação com essa tarefa. No entanto, o evento ficou só na tentativa: após uma série de mal-entendidos, incluindo problemas de inscrição e contabilidade dos votos, a eleição foi anulada.

Por trás da confusão há mais que embates e vaidades pessoais. Em jogo está também a linha política que será a tônica da bancada. De forma geral, a disputa se dá entre a linha que defende uma aproximação estratégica com o governo Lula, capaz de facilitar o trânsito do grupo com o governo, e aquela que defende um exercício de oposição mais contundente.

Nesse ponto, a bancada evangélica reflete dilemas da base social que representa. Há uma série de igrejas e pastores que gostariam de ter maior influência e diálogo com o novo governo. Também há, por outro lado, aqueles líderes que continuam contaminados pelo discurso bolsonarista de que o PT seria uma “força do mal a ser vencida”, e inclusive atuam como amplificadores dos devaneios golpistas que ainda circulam entre o bolsonarismo radical. Em outras palavras, se tornaram eles mesmos extremistas. Entre essas duas posições, estão uma extensa gama de pastores que adorariam estar mais próximos do governo, mas manifestam o contrário, constrangidos pelos seus próprios fiéis para não mudarem radicalmente de posição em relação ao PT e à esquerda.

A adesão ao bolsonarismo cobrou um preço aos evangélicos que ainda não foi devidamente contabilizado. Ao transformarem igrejas em bases para discursos extremistas, pastores radicalizaram parte dos seus fiéis. Tal situação, enquanto Bolsonaro era presidente, não causou problemas imediatos. Agora que os ventos mudaram, no entanto, muitos desses mesmos pastores não podem, com o pragmatismo usual, simplesmente mudar de posicionamento. Pelo menos não de forma discreta e sem gerar ruídos.

De cima a baixo, a situação constrangedora que líderes evangélicos se encontram deveria servir para gerar reflexões e autocríticas sobre sua atuação política no último período. Tal atitude, no entanto, requer uma maturidade que não parece estar presente no meio.

 

Fonte: Congresso em Foco

 

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