sexta-feira, 10 de março de 2023


 Após o oito de janeiro, o fascismo não lê a Constituição, ele a arrebenta

Numa breve passagem de Esaú e Jacó, obra machadiana, Machado de Assis lembra do tormento de Aires naquela ambientação de uma república democrática natimorta: no sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a Constituição.

É através dessa digressão machadiana que visitamos um tormento não novo, mas incômodo no âmago das nossas instituições, direitos e garantias constitucionalmente estabelecidas. Após o triunfo bolsonarista nas eleições de 2018, porquanto tenha saído ideologicamente vitorioso, a contar do pleito geral de 2022, seu recuo torna a figura de seu César diminuta e fraca – mas que, certamente, passará a liderar uma oposição de um movimento autoritário conservador.

Porém, respirar aliviado seria uma utopia distante e um privilégio daqueles que querem esquecer Bolsonaro e o bolsonarismo no lugar de afrontá-los. Nessa vanguarda reacionária repleta de seus devotos fervorosos, uma classe privilegiada de juristas já cuidou de sistematizar, há muito, uma leitura (anti)constitucional da Constituição Federal de 1988 que a colocava a serviço de seu César. Com o golpismo escrachado do dia oito de janeiro de 2023, lembramos da anormalidade, do medo e do fascismo – aquele, em alguma medida desconhecida, legítimo aos olhos de conservadores. É nesse novo amanhecer contextual, após o oito de janeiro, de uma doutrina ambientada numa república autoritária em que a Constituição, outra vez, “não voltaria ao que era na véspera”.

Uma teoria fascista da Constituição brasileira?

O constitucionalismo democrático, do contrário que dizem, não foi a ideologia vitoriosa do nosso século brasileiro. Talvez tenha sido a mais circunstancialmente representativa: há momentos com os quais as interpretações de uma Constituição desaguam no mesmo rio em que o pensamento, a organização e o desenho institucionais escorrem. Nessa linha, se considerarmos o cenário institucional da onda de autocratização e erosão chefiadas pela ultradireita bolsonarista, estaremos certos de que uma leitura fascista da Constituição é um ovo da serpente que se chocou – e se isso é verdade, então o constitucionalismo democrático encontrou um adversário páreo.

Fascistas tentam, hoje, ler a Constituição, atribuindo a ela pensamentos que corroem os vigamentos da equidade social, refundam o Estado Democrático de Direito como Autocracia e minam, à sua medida, as instituições permanentes. Distintamente do que Carl Schmitt, teórico do Reich, propunha na República de Weimar na sua Teoria da Constituição franqueando legitimidade aos nazifascistas de abolirem o texto constitucional, os novos fascistas leem a Constituição explorando minuciosamente suas aberturas e brechas para possibilitar a reversão do estado de coisas progressista e a sua eventual recessão democrática. Hoje, na prática, fascistas brasileiros interpretam e a um só tempo arrebentam a Constituição.

Nos próximos anos de transição e reajuste democráticos, a tolice não pode reconhecer a vitória de uma democracia definitiva, mas que sim ainda está por vir. O constitucionalismo democrático – desde que realinhado – como o principal incremento militante se apresenta como uma alternativa para reconduzir o trem descarrilhado da vida institucional ao progresso de seus trilhos. No lugar disso, devemos reconhecer que, porquanto perversos sejam os métodos de interpretação de neofascistas, esse constitucionalismo antidemocrático ou autoritário é o espantalho que assombrará os anos de reconstrução democrática, precisando ser teórica e politicamente combatido – não pelo grau de teoria constitucional outorgada por nós a eles, mas pelo que passaram a se reconhecer como.

        Franquear espaços teóricos a fascistas numa democracia liberal

Antes da retórica teórica por si só demonstrar-se um problema com uma teoria constitucional fascista brasileira, tanto antes a antessala de problemas está nos pilares de uma democracia liberal. Juristas liberais acreditam que guetos antidemocráticos são, na mesma medida, manifestações democráticas e legítimas dentro de uma democracia. Juristas liberais também acreditam que leituras fascistas se dizem, na verdade, conservadoras, enriquecendo o debate jurídico de múltiplos sentidos da Constituição. Juristas liberais também acreditam que há um espaço doutrinário a ser alargado para os autocratas – que, no entanto, pela realidade não se pede concessão, mas é usurpado e surrupiado por eles.

O mito da democracia “liberal” pôde dar conta, é verdade, da institucionalidade das instituições no governo Bolsonaro: seja no aparelhamento da PF com a indicação de Ramagem, o incitamento de descrédito e de ataques institucionais ao Supremo Tribunal Federal ou mesmo a descrença do processo eleitoral encabeçado pelo Tribunal Superior Eleitoral relembram alguns momentos de sopros promissores da democracia liberal. Nestes episódios, o primado de separação dos poderes republicanos e de seu funcionamento regular vigoraram como oposição ao que enquadravam como antidemocrático.

Todavia, a democracia liberal também descortinou seus próprios desvarios nos últimos quatro anos: reformas constitucionais pontuais de austeridade social e econômica com apoio neutro ao Presidente da República, imobilidade frente ao saqueamento de fundos de programas sociais, culturais, educacionais e econômicos, crescimento de bancadas conservadoras no parlamento como expressão do verniz democrático da democracia liberal tais como a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), entre outros.

Alguns desses apontamentos não servem, de um todo, para descredibilizar a democracia liberal se, porquanto controversa, ela foi quem assumiu a guarida do mínimo de institucionalidade para o funcionamento regular das instituições. Contudo, é uma tolice desconhecer que a democracia liberal deu voz no lugar de emudecer atos antidemocráticos. Desse enquadramento, a maior crítica é de uma democracia liberal que muito embora estivesse ameaçada, não arredou seu pilar liberal à direita ou esquerda por uma tentativa de coerência ideológica a preço de avanços sociais preciosos.

Se pretendemos, verdadeiramente, alcançar um grau de estabilidade democrática, não podemos depender, após um período transicional e especialmente frente a uma teoria fascista da Constituição, o sopro de esperança da democracia liberal. Isso se não, obviamente, pretendermos uma existência institucional no limite, a reivindicar não os avanços, mas apenas o status quo de “funcionamento regular”. E se já enxergamos, exaustivamente, que esta política democrática não satisfará a repressão contra uma teoria fascista da Constituição. Nessa razão, é preciso recolocar o constitucionalismo democrático em uma nova associação: não essa vinculada a uma democracia liberal.

        Negar a teoria fascista para preservar a Constituição

Há uma singela distinção entre reconhecer uma consistência teórica e entregar-se a ela. No conjunto da obra de uma teoria fascista, a sedução dessa ameaça teórica a grupos periféricos conquista juristas que não só reconhecem o status teórico do fascismo na interpretação constitucional, como também apoiam seus determinados atributos responsáveis por sistematizar uma leitura tão perigosa do texto constitucional.

Enquanto para alguns liberais-conservadores há a importância de reconhecer o status da força teórica do fascismo na leitura da Constituição, combatendo-a somente com o respaldo conteudístico de outras teorias democráticas, para nós, essa rejeição não pode ser protagonizada apenas no campo epistemológico. Essa resistência acontece, essencialmente, no campo político, social e cultural. A negativa da teoria fascista não pode se limitar à civilidade do debate democrático, pois é franquear espaço a antidemocratas de minar futuramente a própria possibilidade do debate público – uma vez que, para eles, não há debate teórico na sua teoria fascista. A nossa negativa deve se alinhar ao que Karl Loewenstein, constitucionalista alemão, entendeu por democracia militante: somente entrincheirado as ameaças institucionais contra a democracia é que se pode, em alguma medida, conservar alguma noção de democracia ou Constituição na nossa teoria constitucional – no constitucionalismo democrático.

Essa negativa ambientada na esfera política começa, certamente, com contornos pelos quais se escapam da teoria do direito ou da própria teoria constitucional. Se negamos a democracia liberal como alimento principal do constitucionalismo democrático e o espaço de discussão teórica pelos juristas do fascismo como leitura constitucional a grau de seu reconhecimento e apoio, para que se alcance a rejeição e o combate efetivo dessa forma de erosão e esgarçamento democráticos deve-se reformular as bases do nosso constitucionalismo democrático e da própria democracia: a politização desse debate teórico a caminho da resistência, da reforma, é crucial. De reforma a um constitucionalismo de esquerda-democrática.

        Um constitucionalismo de uma esquerda-democrática

Este é um texto, em suma, político. E até este ponto, vimos que porquanto a estrutura institucional e democrática permitiram a sobrevivência de nossas instituições na crise política, elas mesmas também concederam lugar ao crescimento de uma teoria fascista da Constituição ao ponto de a considerarem corrente teórica séria no debate epistemológico. Acenando ao horizonte da resistência, concluímos que o deslocamento da discussão pro debate político é a forma mais eficaz de combate do fascismo na leitura constitucional, desvinculando qualquer uma de suas possibilidades dos pressupostos controversos do constitucionalismo democrático-liberal.

Para isso, propusemos a politização desse debate teórico. Devemos trilhar um caminho na direção de um constitucionalismo de uma esquerda-democrática. Só se pode combater uma leitura política da Constituição com o político. Sem franqueamento ou alargamento de espaços de discussão inclusiva de juristas autoritários e conservadores, mas sim com seu eficaz bloqueio. Com a força estranha de um movimento político-ideológico como um constitucionalismo de esquerda.

Para ensaiar um constitucionalismo de esquerda-democrática travestido de um movimento político-ideológico é necessário dinamitar algumas bases conservadoras que facilitam e sustentam o edifício teórico do constitucionalismo fascista. Bases essas que só são miradas quando o debate constitucional acontece na esfera política. Sendo preliminarmente três os pontos, então, de reforma:

(i) Universalizar a linguagem constitucional com educação política, de modo que a cidadania brasileira incorpore o jargão democrático. Se a linguagem institucional por si só o é monolítica à elite, tal premissa é crucial, a vista de que o discurso fascista na leitura constitucional é facilmente sedutor das classes marginalizadas sem maturação política – não por opção, mas pelo retrocesso neoliberal que arrazoa a ausência de políticas públicas educacionais deste eixo. Universalizar a linguagem constitucional impede a ascensão do senso comum reacionário da audiência populista. Universalizar a linguagem constitucional permite a redefinição das regras do jogo democrático, não mais outorgando seriedade e legitimidade a juristas encantados pela narrativa bolsonarista de uma leitura constitucional conservadora e, por sua vez, retirando as audiências capturadas por uma retórica tão perigosa.

(ii) Resgatar o agonismo e não o antagonismo político. O termo foi desenvolvido por Chantal Mouffe, filósofa política francesa, para quem a prática do político só se perfaz mediante um confronto entre os pares na política sem que, entretanto, sejam inimigos, mas adversários legítimos. O resgate dessa construção pode encerrar um longevo ciclo de contaminação do constitucionalismo fascista brasilero, quando desde o seu vigor, ensaiou o debate constitucional na esfera das políticas da inimizade na cifra de Carl Schmitt, firme na eliminação de um inimigo. É imprescindível restabelecer radicalmente um debate da política na qual sua ambientação favoreça o progresso concomitante à retórica de seleção da proposta vencedora e da perdedora, e despropicie, no mesmo ritmo, o discurso de eliminação do distinto.

(iii) Partidarizar as instituições em combate frontal à prática antidemocrática. No governo Bolsonaro, uma das premissas centrais arrojadas pela oposição da esquerda-democrática brasileira foi, a um só tom, a necessidade da adesão institucional em prol de um valor democrático uno: instituições responsivas, combativas e ativas. Ademais disso, o único núcleo partidário onde se oxigenou fortemente. Ainda que óbvio, sem isto, é impossível combater o fascismo institucionalizado. Com o novo governo Lula, a retórica de retrabalho na modelagem das instituições reguladoras da saúde democrática resgataram sua musculatura após a anemia deixada pela bolsonarização do Estado. O que era ao parecer popular pauta exclusiva de esquerda, migrou à área prioritária de agenda de governo. Um constitucionalismo de esquerda-democrática, nesse espaço, produz maior reatividade à sanha fascista, seja ela infiltrada nas arestas das instituições, seja ela infiltrada nas práticas de subversão da essência constitucional de 1988. Com primor, Lula, já empossado, providenciou a criação do Grupo de Trabalho atrelado à Advocacia Geral da União (AGU) na forma da unidade de uma Procuradoria de Defesa da Democracia que esperará receber contribuições de entidades da sociedade, especialistas e instituições públicas. O estímulo dá vazão à juristas, entes cíveis, castas populares e grupos vulneráveis de elocubrar seu ativismo político ao ponto de pluralizar a democracia, prepará-la para investidas corrosivas e mantê-la resguarda sob valores constitucionais progressistas entabulados em parte do texto de 1988.

São estas algumas das caricaturas ensaiadas nesse manifesto político. Um constitucionalismo de uma esquerda-democrática pode, em larga medida, regenerar valores republicanos, civis e democráticos que foram alijados e deteriorados nos últimos quatro anos de desgoverno. Ele é, em parte, remédio à bolsonarização das instituições, da leitura constitucional e do trabalho íntimo com a democracia. Para fazê-lo, no entanto, é preciso enxergar todo o ofício de leitura conjuntural pelos instrumentos do direito como uma ação politizada, apaixonada, sensível e jamais neutra quanto às suas posições epistêmicas – contrariamente ao apregoado por juristas que zelaram, em algum hiato, a neutralidade analítica que também o é leniente com o fascismo.

 

       Quando neoanarquismo e populismo de esquerda se encontraram: a política do cidadanismo? Por Nina Santos

 

Os protestos de junho de 2013 são um marco inconteste na vida política brasileira. Quase dez anos depois, muitos dos temas e das chaves interpretativas que pautam nossas discussões emergiram naquele momento. Junto com a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Indignados, entre outros, as Jornadas de Junho fazem parte das ondas de protestos que ocorreram em diversas partes do mundo e marcaram uma transformação nas ações coletivas.

O debate sobre as consequências desse processo tem sido intenso e Paolo Gerbaudo inicia sua contribuição com o livro Redes e ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo, e continua sua reflexão no lançamento Máscaras e bandeiras: populismo, cidadanismo e protesto global. Nesta obra, o autor traz o neoliberalismo e o populismo para o centro da análise dos protestos.

A máscara e a bandeira servem de símbolo para o que o autor identifica como “as duas principais orientações políticas – neoanarquismo e populismo de esquerda – que se encontraram, se misturaram e se chocaram nos movimentos de 2011 a 2016, dando lugar à ‘nova política’ do cidadanismo”. O autor valoriza a tomada de protagonismo dos cidadãos na busca de (re)colocar a cidadania no centro da vivência democrática sem, no entanto, fugir do debate sobre as contradições intrínsecas a esse processo que ele chama de “cidadania auto-organizada”.

Para nós, como brasileiros e brasileiras, é difícil olhar para os movimentos de 2013 e, sobretudo, para os anos que os sucederam e enxergar apenas essa perspectiva positiva. O caso brasileiro, de fato, parece desafiar pelo menos uma das premissas levantadas por Gerbaudo. Para ele, essa cidadania auto-organizada, buscada pelos cidadãos indignados, se colocaria “em oposição às oligarquias econômicas e políticas” e procuraria “reivindicar e expandir a cidadania”, o que certamente não aconteceu por aqui.

Justamente por isso essa obra é tão desafiadora. Se por um lado o caso brasileiro parece sair pela tangente em relação a alguns argumentos, por outro, Gerbaudo é capaz de traçar caminhos de esperança e de encontrar potencialidades que certamente são essenciais para processos de transformação social. Em tempos de desamparo político e social, buscar entender e aprofundar experiências inovadoras, interessantes e democratizantes é, sem dúvida, essencial, e esse livro é magnânimo nesse sentido.

 

Fonte: Por Gabriel Alberto S. de Moraes, no Le Monde

Nenhum comentário: