Após o oito de janeiro, o fascismo não lê a Constituição, ele a arrebenta
Numa
breve passagem de Esaú e Jacó, obra machadiana, Machado de Assis lembra do
tormento de Aires naquela ambientação de uma república democrática natimorta:
no sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na
véspera, menos a Constituição.
É
através dessa digressão machadiana que visitamos um tormento não novo, mas
incômodo no âmago das nossas instituições, direitos e garantias constitucionalmente
estabelecidas. Após o triunfo bolsonarista nas eleições de 2018, porquanto
tenha saído ideologicamente vitorioso, a contar do pleito geral de 2022, seu
recuo torna a figura de seu César diminuta e fraca – mas que, certamente,
passará a liderar uma oposição de um movimento autoritário conservador.
Porém,
respirar aliviado seria uma utopia distante e um privilégio daqueles que querem
esquecer Bolsonaro e o bolsonarismo no lugar de afrontá-los. Nessa vanguarda
reacionária repleta de seus devotos fervorosos, uma classe privilegiada de
juristas já cuidou de sistematizar, há muito, uma leitura (anti)constitucional
da Constituição Federal de 1988 que a colocava a serviço de seu César. Com o
golpismo escrachado do dia oito de janeiro de 2023, lembramos da anormalidade,
do medo e do fascismo – aquele, em alguma medida desconhecida, legítimo aos
olhos de conservadores. É nesse novo amanhecer contextual, após o oito de
janeiro, de uma doutrina ambientada numa república autoritária em que a
Constituição, outra vez, “não voltaria ao que era na véspera”.
Uma
teoria fascista da Constituição brasileira?
O
constitucionalismo democrático, do contrário que dizem, não foi a ideologia
vitoriosa do nosso século brasileiro. Talvez tenha sido a mais circunstancialmente
representativa: há momentos com os quais as interpretações de uma Constituição
desaguam no mesmo rio em que o pensamento, a organização e o desenho
institucionais escorrem. Nessa linha, se considerarmos o cenário institucional
da onda de autocratização e erosão chefiadas pela ultradireita bolsonarista,
estaremos certos de que uma leitura fascista da Constituição é um ovo da
serpente que se chocou – e se isso é verdade, então o constitucionalismo
democrático encontrou um adversário páreo.
Fascistas
tentam, hoje, ler a Constituição, atribuindo a ela pensamentos que corroem os
vigamentos da equidade social, refundam o Estado Democrático de Direito como
Autocracia e minam, à sua medida, as instituições permanentes. Distintamente do
que Carl Schmitt, teórico do Reich, propunha na República de Weimar na sua
Teoria da Constituição franqueando legitimidade aos nazifascistas de abolirem o
texto constitucional, os novos fascistas leem a Constituição explorando
minuciosamente suas aberturas e brechas para possibilitar a reversão do estado
de coisas progressista e a sua eventual recessão democrática. Hoje, na prática,
fascistas brasileiros interpretam e a um só tempo arrebentam a Constituição.
Nos
próximos anos de transição e reajuste democráticos, a tolice não pode reconhecer
a vitória de uma democracia definitiva, mas que sim ainda está por vir. O
constitucionalismo democrático – desde que realinhado – como o principal
incremento militante se apresenta como uma alternativa para reconduzir o trem
descarrilhado da vida institucional ao progresso de seus trilhos. No lugar
disso, devemos reconhecer que, porquanto perversos sejam os métodos de
interpretação de neofascistas, esse constitucionalismo antidemocrático ou
autoritário é o espantalho que assombrará os anos de reconstrução democrática,
precisando ser teórica e politicamente combatido – não pelo grau de teoria
constitucional outorgada por nós a eles, mas pelo que passaram a se reconhecer
como.
• Franquear espaços teóricos a fascistas
numa democracia liberal
Antes
da retórica teórica por si só demonstrar-se um problema com uma teoria
constitucional fascista brasileira, tanto antes a antessala de problemas está
nos pilares de uma democracia liberal. Juristas liberais acreditam que guetos
antidemocráticos são, na mesma medida, manifestações democráticas e legítimas
dentro de uma democracia. Juristas liberais também acreditam que leituras
fascistas se dizem, na verdade, conservadoras, enriquecendo o debate jurídico
de múltiplos sentidos da Constituição. Juristas liberais também acreditam que
há um espaço doutrinário a ser alargado para os autocratas – que, no entanto,
pela realidade não se pede concessão, mas é usurpado e surrupiado por eles.
O
mito da democracia “liberal” pôde dar conta, é verdade, da institucionalidade das
instituições no governo Bolsonaro: seja no aparelhamento da PF com a indicação
de Ramagem, o incitamento de descrédito e de ataques institucionais ao Supremo
Tribunal Federal ou mesmo a descrença do processo eleitoral encabeçado pelo
Tribunal Superior Eleitoral relembram alguns momentos de sopros promissores da
democracia liberal. Nestes episódios, o primado de separação dos poderes
republicanos e de seu funcionamento regular vigoraram como oposição ao que
enquadravam como antidemocrático.
Todavia,
a democracia liberal também descortinou seus próprios desvarios nos últimos
quatro anos: reformas constitucionais pontuais de austeridade social e
econômica com apoio neutro ao Presidente da República, imobilidade frente ao
saqueamento de fundos de programas sociais, culturais, educacionais e
econômicos, crescimento de bancadas conservadoras no parlamento como expressão
do verniz democrático da democracia liberal tais como a Frente Parlamentar
Evangélica (FPE), entre outros.
Alguns
desses apontamentos não servem, de um todo, para descredibilizar a democracia
liberal se, porquanto controversa, ela foi quem assumiu a guarida do mínimo de
institucionalidade para o funcionamento regular das instituições. Contudo, é
uma tolice desconhecer que a democracia liberal deu voz no lugar de emudecer
atos antidemocráticos. Desse enquadramento, a maior crítica é de uma democracia
liberal que muito embora estivesse ameaçada, não arredou seu pilar liberal à
direita ou esquerda por uma tentativa de coerência ideológica a preço de avanços
sociais preciosos.
Se
pretendemos, verdadeiramente, alcançar um grau de estabilidade democrática, não
podemos depender, após um período transicional e especialmente frente a uma
teoria fascista da Constituição, o sopro de esperança da democracia liberal.
Isso se não, obviamente, pretendermos uma existência institucional no limite, a
reivindicar não os avanços, mas apenas o status quo de “funcionamento regular”.
E se já enxergamos, exaustivamente, que esta política democrática não satisfará
a repressão contra uma teoria fascista da Constituição. Nessa razão, é preciso
recolocar o constitucionalismo democrático em uma nova associação: não essa
vinculada a uma democracia liberal.
• Negar a teoria fascista para preservar a
Constituição
Há
uma singela distinção entre reconhecer uma consistência teórica e entregar-se a
ela. No conjunto da obra de uma teoria fascista, a sedução dessa ameaça teórica
a grupos periféricos conquista juristas que não só reconhecem o status teórico
do fascismo na interpretação constitucional, como também apoiam seus
determinados atributos responsáveis por sistematizar uma leitura tão perigosa
do texto constitucional.
Enquanto
para alguns liberais-conservadores há a importância de reconhecer o status da
força teórica do fascismo na leitura da Constituição, combatendo-a somente com
o respaldo conteudístico de outras teorias democráticas, para nós, essa
rejeição não pode ser protagonizada apenas no campo epistemológico. Essa
resistência acontece, essencialmente, no campo político, social e cultural. A
negativa da teoria fascista não pode se limitar à civilidade do debate
democrático, pois é franquear espaço a antidemocratas de minar futuramente a
própria possibilidade do debate público – uma vez que, para eles, não há debate
teórico na sua teoria fascista. A nossa negativa deve se alinhar ao que Karl
Loewenstein, constitucionalista alemão, entendeu por democracia militante:
somente entrincheirado as ameaças institucionais contra a democracia é que se
pode, em alguma medida, conservar alguma noção de democracia ou Constituição na
nossa teoria constitucional – no constitucionalismo democrático.
Essa
negativa ambientada na esfera política começa, certamente, com contornos pelos
quais se escapam da teoria do direito ou da própria teoria constitucional. Se
negamos a democracia liberal como alimento principal do constitucionalismo
democrático e o espaço de discussão teórica pelos juristas do fascismo como
leitura constitucional a grau de seu reconhecimento e apoio, para que se
alcance a rejeição e o combate efetivo dessa forma de erosão e esgarçamento
democráticos deve-se reformular as bases do nosso constitucionalismo
democrático e da própria democracia: a politização desse debate teórico a
caminho da resistência, da reforma, é crucial. De reforma a um
constitucionalismo de esquerda-democrática.
• Um constitucionalismo de uma
esquerda-democrática
Este
é um texto, em suma, político. E até este ponto, vimos que porquanto a
estrutura institucional e democrática permitiram a sobrevivência de nossas instituições
na crise política, elas mesmas também concederam lugar ao crescimento de uma
teoria fascista da Constituição ao ponto de a considerarem corrente teórica
séria no debate epistemológico. Acenando ao horizonte da resistência,
concluímos que o deslocamento da discussão pro debate político é a forma mais
eficaz de combate do fascismo na leitura constitucional, desvinculando qualquer
uma de suas possibilidades dos pressupostos controversos do constitucionalismo
democrático-liberal.
Para
isso, propusemos a politização desse debate teórico. Devemos trilhar um caminho
na direção de um constitucionalismo de uma esquerda-democrática. Só se pode
combater uma leitura política da Constituição com o político. Sem franqueamento
ou alargamento de espaços de discussão inclusiva de juristas autoritários e
conservadores, mas sim com seu eficaz bloqueio. Com a força estranha de um
movimento político-ideológico como um constitucionalismo de esquerda.
Para
ensaiar um constitucionalismo de esquerda-democrática travestido de um
movimento político-ideológico é necessário dinamitar algumas bases
conservadoras que facilitam e sustentam o edifício teórico do
constitucionalismo fascista. Bases essas que só são miradas quando o debate
constitucional acontece na esfera política. Sendo preliminarmente três os
pontos, então, de reforma:
(i)
Universalizar a linguagem constitucional com educação política, de modo que a
cidadania brasileira incorpore o jargão democrático. Se a linguagem
institucional por si só o é monolítica à elite, tal premissa é crucial, a vista
de que o discurso fascista na leitura constitucional é facilmente sedutor das
classes marginalizadas sem maturação política – não por opção, mas pelo
retrocesso neoliberal que arrazoa a ausência de políticas públicas educacionais
deste eixo. Universalizar a linguagem constitucional impede a ascensão do senso
comum reacionário da audiência populista. Universalizar a linguagem
constitucional permite a redefinição das regras do jogo democrático, não mais
outorgando seriedade e legitimidade a juristas encantados pela narrativa
bolsonarista de uma leitura constitucional conservadora e, por sua vez,
retirando as audiências capturadas por uma retórica tão perigosa.
(ii)
Resgatar o agonismo e não o antagonismo político. O termo foi desenvolvido por
Chantal Mouffe, filósofa política francesa, para quem a prática do político só
se perfaz mediante um confronto entre os pares na política sem que, entretanto,
sejam inimigos, mas adversários legítimos. O resgate dessa construção pode
encerrar um longevo ciclo de contaminação do constitucionalismo fascista
brasilero, quando desde o seu vigor, ensaiou o debate constitucional na esfera
das políticas da inimizade na cifra de Carl Schmitt, firme na eliminação de um
inimigo. É imprescindível restabelecer radicalmente um debate da política na
qual sua ambientação favoreça o progresso concomitante à retórica de seleção da
proposta vencedora e da perdedora, e despropicie, no mesmo ritmo, o discurso de
eliminação do distinto.
(iii)
Partidarizar as instituições em combate frontal à prática antidemocrática. No
governo Bolsonaro, uma das premissas centrais arrojadas pela oposição da
esquerda-democrática brasileira foi, a um só tom, a necessidade da adesão
institucional em prol de um valor democrático uno: instituições responsivas,
combativas e ativas. Ademais disso, o único núcleo partidário onde se oxigenou
fortemente. Ainda que óbvio, sem isto, é impossível combater o fascismo
institucionalizado. Com o novo governo Lula, a retórica de retrabalho na
modelagem das instituições reguladoras da saúde democrática resgataram sua
musculatura após a anemia deixada pela bolsonarização do Estado. O que era ao
parecer popular pauta exclusiva de esquerda, migrou à área prioritária de
agenda de governo. Um constitucionalismo de esquerda-democrática, nesse espaço,
produz maior reatividade à sanha fascista, seja ela infiltrada nas arestas das
instituições, seja ela infiltrada nas práticas de subversão da essência
constitucional de 1988. Com primor, Lula, já empossado, providenciou a criação
do Grupo de Trabalho atrelado à Advocacia Geral da União (AGU) na forma da
unidade de uma Procuradoria de Defesa da Democracia que esperará receber
contribuições de entidades da sociedade, especialistas e instituições públicas.
O estímulo dá vazão à juristas, entes cíveis, castas populares e grupos
vulneráveis de elocubrar seu ativismo político ao ponto de pluralizar a
democracia, prepará-la para investidas corrosivas e mantê-la resguarda sob
valores constitucionais progressistas entabulados em parte do texto de 1988.
São
estas algumas das caricaturas ensaiadas nesse manifesto político. Um
constitucionalismo de uma esquerda-democrática pode, em larga medida, regenerar
valores republicanos, civis e democráticos que foram alijados e deteriorados
nos últimos quatro anos de desgoverno. Ele é, em parte, remédio à
bolsonarização das instituições, da leitura constitucional e do trabalho íntimo
com a democracia. Para fazê-lo, no entanto, é preciso enxergar todo o ofício de
leitura conjuntural pelos instrumentos do direito como uma ação politizada,
apaixonada, sensível e jamais neutra quanto às suas posições epistêmicas –
contrariamente ao apregoado por juristas que zelaram, em algum hiato, a
neutralidade analítica que também o é leniente com o fascismo.
Quando neoanarquismo e populismo de
esquerda se encontraram: a política do cidadanismo? Por Nina Santos
Os
protestos de junho de 2013 são um marco inconteste na vida política brasileira.
Quase dez anos depois, muitos dos temas e das chaves interpretativas que pautam
nossas discussões emergiram naquele momento. Junto com a Primavera Árabe,
Occupy Wall Street, Indignados, entre outros, as Jornadas de Junho fazem parte
das ondas de protestos que ocorreram em diversas partes do mundo e marcaram uma
transformação nas ações coletivas.
O
debate sobre as consequências desse processo tem sido intenso e Paolo Gerbaudo
inicia sua contribuição com o livro Redes e ruas: mídias sociais e ativismo
contemporâneo, e continua sua reflexão no lançamento Máscaras e bandeiras:
populismo, cidadanismo e protesto global. Nesta obra, o autor traz o
neoliberalismo e o populismo para o centro da análise dos protestos.
A
máscara e a bandeira servem de símbolo para o que o autor identifica como “as
duas principais orientações políticas – neoanarquismo e populismo de esquerda –
que se encontraram, se misturaram e se chocaram nos movimentos de 2011 a 2016,
dando lugar à ‘nova política’ do cidadanismo”. O autor valoriza a tomada de
protagonismo dos cidadãos na busca de (re)colocar a cidadania no centro da
vivência democrática sem, no entanto, fugir do debate sobre as contradições
intrínsecas a esse processo que ele chama de “cidadania auto-organizada”.
Para
nós, como brasileiros e brasileiras, é difícil olhar para os movimentos de 2013
e, sobretudo, para os anos que os sucederam e enxergar apenas essa perspectiva
positiva. O caso brasileiro, de fato, parece desafiar pelo menos uma das
premissas levantadas por Gerbaudo. Para ele, essa cidadania auto-organizada,
buscada pelos cidadãos indignados, se colocaria “em oposição às oligarquias
econômicas e políticas” e procuraria “reivindicar e expandir a cidadania”, o
que certamente não aconteceu por aqui.
Justamente
por isso essa obra é tão desafiadora. Se por um lado o caso brasileiro parece
sair pela tangente em relação a alguns argumentos, por outro, Gerbaudo é capaz
de traçar caminhos de esperança e de encontrar potencialidades que certamente
são essenciais para processos de transformação social. Em tempos de desamparo
político e social, buscar entender e aprofundar experiências inovadoras,
interessantes e democratizantes é, sem dúvida, essencial, e esse livro é
magnânimo nesse sentido.
Fonte:
Por Gabriel Alberto S. de Moraes, no Le Monde
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