‘Racismo impede que
Salvador tenha prefeito negro, e PT baiano é conservador’, afirma professor da
Ufba
Professor
e pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba),
o advogado e analista político Samuel Vida, que já foi filiado ao PT, tem sido
um dos mais duros críticos ao partido no estado. Para ele, as gestões estaduais
do partido têm sido conservadoras e neoliberais.
Em
entrevista à Tribuna, Samuel Vida fala da decisão de deixar o PT e critica o
silêncio dos movimentos negros nos últimos anos. “Na sua esmagadora maioria,
com algumas exceções, se mostra alinhado, silenciado, subalternizado pelos
governistas petistas. Nesse episódio da nomeação do racista, não teve até o
momento um pronunciamento de entidades do movimento negro, do campo que
participa do governo. Nenhuma sequer. Quem tem criticado é quem não mantém
relação com esse governo, tem autonomia”, afirmou.
Samuel
Vida condena ainda o modelo econômico implantado no estado. “O projeto
implementado na Bahia pelos governos do PT tem como característica saliente uma
versão intensa de programa econômico, de gestão, neoliberal. A Bahia é hoje
líder nacional na implantação de privatizações, de PPPs (parcerias público
privadas). Modelos que são a ponta de lança da concepção neoliberal. Isso é tão
destacado que hoje a Bahia fornece consultoria para outros estados e até para
outros países. Nós temos uma gestão que há 17 anos aperfeiçoa mecanismos
neoliberais na contramão de tudo o que seu programa formal anuncia”,
afirmou.
• O senhor tem sido bastante crítico à
esquerda baiana. O que senhor pensa sobre a esquerda na Bahia?
Samuel
Vida – É sempre perigoso generalizar críticas ou elogios, tendo em vista grupos
que são heterogêneos. Quando a gente está falando de esquerda, a gente está
falando espectro bastante heterogêneo de agrupamentos políticos que vão do PT,
passando pelo PSB, PCdoB, chegando ao PSOL, PSTU. Eu não generalizaria sobre a
esquerda, sem fazer essa distinção. Eu preciso focar em uma análise da esquerda
que está no governo da Bahia. Aquela que, ao longo dos últimos 17 anos, tem se
apresentado como gestora, como proponente de um projeto, de um programa,
implementadora de uma política pública no estado da Bahia.
• Muita gente tem dito a esquerda que está
no poder da Bahia parece muito com o carlismo. O senhor concorda?
Samuel
Vida – Acho que essa é uma crítica também generalizada que pode ter elementos
de consistência e de distinção. O carlismo foi uma força política
historicamente determinada por dimensões do que vivia a sociedade brasileira. O
carlismo se desenvolveu à sombra da Ditadura Militar, se favoreceu de uma
dinâmica política extremamente conservadora que vigorava no país. Isso, por
exemplo, como parâmetro para buscar semelhanças com as forças que estão no
governo atual. O carlismo atuou de forma de autoritária, com política
centralizadora, política que poderíamos chamar genericamente de coronelista.
Havia um chefe supremo que detinha o controle total e que colocava a sua
vontade. Nesse aspecto, a gente já começa a ter algumas aproximações
especialmente na gestão de Rui Costa, que deu evidências muito grandes de uma
lógica autoritária e centralizadora no chefe. Tão poderosa que permite indicar
a mulher para o Tribunal de Contas [dos Municípios]. Esse episódio tem uma
evidência muito grande que as forças políticas atualmente no governo
desenvolveram traços patrimonialistas ajustadores. Muito similares ao que o
carlismo no passado seguia.
• Quais as características dessa esquerda
que está hoje no poder da Bahia?
Samuel
Vida – A primeira característica que distingue dos projetos de esquerda é que
ela é profundamente neoliberal. O projeto implementado na Bahia pelos governos
do PT tem como característica saliente uma versão intensa de programa
econômico, de gestão, neoliberal. A Bahia é hoje líder nacional na implantação
de privatizações, de PPPs (parcerias público privadas). Modelos que são a ponta
de lança da concepção neoliberal. Isso é tão destacado que hoje a Bahia fornece
consultoria para outros estados e até para outros países. Nós temos uma gestão
que há 17 anos aperfeiçoa mecanismos neoliberais na contramão de tudo o que seu
programa formal anuncia. O programa do PT, do PSB, do PCdoB diz ser contra o
neoliberal e é hoje a experiência mais bem sucedida no Brasil e, talvez, na
América Latina.
• Quais as outras características?
Samuel
Vida – A segunda característica diz respeito à democracia. As gestões do PT têm
cercado os espaços democráticos. Nós temos hoje conselhos que não funcionam,
temos mudanças em conselhos que alteraram a composição em desfavor da sociedade
civil. Nós temos um processo de gestão que é conduzido sem consideração da
opinião pública, dos movimentos sociais. Um exemplo no dia 17 foi nomeado para
um cargo da Sudesb uma pessoa que respondeu a processo por racismo e condenado
judicialmente, mesmo com toda a sociedade e opinião pública questionando.
• Como o senhor analisa a relação entre a
esquerda que está no poder e a Polícia Militar?
Samuel
Vida – Não só com a Polícia Militar. O grupo que está no poder tem uma
concepção de segurança pública protofascista, centrada na ideia de que guerra
às drogas, na eliminação física de um suposto inimigo. O que vai intensificar o
comportamento racista e violação dos direitos humanos. Há uma lógica que
privilegia o confronto e a letalidade. Essa lógica estimula a ilegalidade.
Todos os dias nós temos matérias jornalísticas em que agentes da segurança
pública estão envolvidos em, no mínimo, episódios que mereciam esclarecimentos.
A Bahia, com um governo supostamente progressista, se recusa a colocar câmeras nos
uniformes dos policiais. Essa é uma política bem-sucedida de redução da
criminalidade. Ela protege policial, o cidadão de eventuais excessos. O estado
de São Paulo adotou há dois anos. A letalidade despencou. A Bahia há dois anos
anuncia que vai fazer uma licitação, um procedimento que não duraria mais do
que dois ou três meses. Isso foi usado uma maneira cínica (pelo PT) contra um
candidato do Democratas (ACM Neto), que publicamente assumiu uma postura
contrária. O candidato do PT se disse ser defensor. Curiosamente (ele foi
apoiado por) um governo que teve a oportunidade de implementar e não
implementou.
• A postura conservadora do governo atual
impede que o antigo grupo conservador ligado ao carlismo volte ao poder na
Bahia?
Samuel
Vida – Acho que há uma dimensão desta natureza sim. No momento em que Sergio
Moro anunciou um pacote anticrimes, que aumentava a pena e violava dispositivos
constitucionais, foi imediatamente apoiado por Rui Costa. Foi um dos poucos
governadores a apoiar. Era um pacote ultraconservador.
• Por outro lado, a postura do PT na Bahia
não pode abrir espaço para que grupos mais conservadores, até bolsonarista,
cheguem ao poder?
Samuel
Vida – É evidentemente que sim. Quando o governo militariza mais de 100
escolas, quando essa política é mantida, ela resulta no fortalecimento do
imaginário conservador. Fortalece lideranças conversadoras, que têm surgido nos
governos do PT. Capitão Alden se viabilizou eleitoralmente distribuindo uma
cartilha lombrosiana, irresponsável, bancada pelos governos petistas. Foi uma
cartilha impressa e reimpressa, e levou à eleição do Capitão Alden. Foi
deputado estadual e hoje é deputado federal. Essa eleição se deve diretamente
às políticas inconsequentes dos governos petistas.
• Há uma diferença entre o PT baiano e o
nacional?
Samuel
Vida – O PT é muito complexo nacionalmente. Neste momento, a expressão nacional
do PT, que é do início do governo Lula, aponta para uma lógica diferente da do
PT baiano. O Ministério da Justiça definiu como prioridade instalar câmeras nos
uniformes da PM. Passou a ser um critério de prioridade para o repasse de
recursos essa política. Há uma concepção corrente no interior da militância do
PT que vê o petismo baiano como uma exceção extravagante e representativa no
seu comando de um pensamento conservador e neoliberal.
• O senhor já foi filiado ao PT. Como
analisa o partido agora?
Samuel
Vida – Eu construí o PT. Fui filiado por 33 anos, fui dirigente, assessor
parlamentar. Integrei instâncias de bases e até nacionais. Eu conheço o PT. Sei
do que estou falando. Construí esse partido e não foi para operar como está
operando nessa experiência governamental (da Bahia). Votei, apoiei, fiz
campanha para as duas gestões de Jaques Wagner, mesmo com críticas. Mas ainda
tentando encontrar internamente para essas críticas, e cheguei a votar na
primeira eleição do Rui Costa. Iniciei um processo irreversível de afastamento
(do PT) com o episódio da chacina do Cabula.
• O senhor está filiado ao PSOL hoje?
Samuel
Vida – Estou. Não faço militância. Não integro nenhuma instância dirigente, não
participo politicamente do dia a dia do partido. Mas sou filiado.
• Por que Salvador não consegue ter um
prefeito negro eleito diretamente?
Samuel
Vida – Como resultado mais gerado, é a consequência do racismo. A gente tem a
cidade mais racista do Brasil. Salvador é o caso mais bem-sucedido de hegemonia
de uma minoria branca sobre a esmagadora maioria negra. Nós temos uma cidade
com aproximadamente 90% de pessoas negras que é governada e controlada por meia
dúzia de pessoas brancas. Isso é revelado de que vivemos um regime racial
supremacista intenso e bem-sucedido. Isso envolve, inclusive, a esquerda. Se
olharmos a trajetória das candidaturas representadas pela esquerda e da atitude
política em relação à cidade, a gente confirma (o racismo), embora não da mesma
forma do que o projeto neocarlista.
• Como o senhor vê a atuação do movimento
negro durante esse período de governo petistas na Bahia?
Samuel
Vida – Na sua esmagadora maioria, com algumas exceções, se mostra alinhado,
silenciado, subalternizado pelos governistas petistas. Nesse episódio da
nomeação do racista, não teve até o momento um pronunciamento de entidades do
movimento negro, do campo que participa do governo. Nenhuma sequer. Quem tem
criticado é quem não mantém relação com esse governo, tem autonomia. O
movimento negro soteropolitano é levado a reboque pelo projeto petista que não
contempla, não reconhece a relevância deste setor. Na última eleição, Vilma
Reis foi a candidata petista mais votada em Salvador, e na composição do
governo ela não foi nem considerada para ocupar cargos. Que contradição.
Fonte: Tribuna da Bahia
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