“A comida é a
ferramenta mais poderosa para transformar nosso mundo”, diz escritora britânica
E
se o caminho para transformar o planeta e torná-lo sustentável dependesse de
algo tão cotidiano e de primeira necessidade como a comida? Este é o argumento
defendido pela arquiteta, professora e escritora britânica Carolyn Steel, em
seu livro Sitopía (Capitán Swing, 2022).
Sitopia
é um termo inventado por Steel a partir das palavras gregas sitos (alimento) e
topos (lugar), e significa, literalmente, lugar de alimentos. Com isso,
pretendia dar um nome à nossa sociedade, um mundo conformado pela comida.
Steel
reflete sobre como a forma como nos alimentamos moldou nossas cidades. Conforme
os mercados tradicionais vão desaparecendo e o valor que atribuímos à comida é
cada vez menor, também vamos perdendo a coesão social, a saúde e até a nossa
própria identidade cultural. Por dependermos de alimentos cada vez mais baratos
e produzidos de modo intensivo, entramos em um modo de vida menos sustentável.
Ainda temos tempo para mudar?
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Eis a entrevista.
• A filosofia está muito presente em seu
livro. O fato desta disciplina estar desaparecendo dos planos de estudo (ao
menos na Espanha) nos torna, como cidadãos, mais vulneráveis a ideologias que
nos desumanizam?
Sim!
De fato, acredito que estamos perdendo a capacidade de pensar por nós mesmos e
de nos fazer grandes perguntas, o que realmente me preocupa. Penso que a
internet criou uma espécie de supermercado das ideias, no qual as pessoas vão
às compras até encontrar conceitos pré-fabricados que as atraem. Então, elas os
adotam por atacado, como se tivessem sido pensados por elas próprias.
Isto
me preocupa muito, porque essas ideias, muitas vezes, tornam-se ideologias
irremovíveis. Também nos expõe a acreditar em teorias da conspiração e a ser
incapazes de examinar o que realmente pensamos desde a base e, portanto, de
estabelecer um debate fundamentado. Como vimos com a recente invação ao
Capitólio dos Estados Unidos e agora ao Congresso brasileiro, este fenômeno
ameaça a própria democracia.
• Qual é a relação entre filosofia e
alimentação, e como isso afeta nossa cultura alimentar?
Bem,
existem poucos atos tão significativos como o de comer: levanta questões muito
profundas como o que é a vida, o que significa compartilhar com justiça, qual é
a nossa relação com a natureza e como é uma boa vida.
Por
exemplo, só pelo fato de comer, nós nos autorizamos a considerar nossa vida
mais importante do que a de, por exemplo, um frango ou uma batata. Mais do que
isso, penso que ver o mundo pelo prisma da comida pode nos ajudar a nos
tornarmos filósofos, o que significa que pode nos habilitar a fazer grandes e
importantes perguntas. E isso, conforme eu dizia antes, é extremamente
importante. De fato, se eu tivesse que redesenhar o plano de estudos, colocaria
a alimentação e a filosofia entre as disciplinas mais importantes.
Por
isso, inventei a palavra sitopia, porque vivemos em um mundo moldado pela
comida. Sendo assim, pensar a partir dela pode nos ajudar a olhar ao nosso
redor, questionar nosso lugar no mundo e voltar a nos fazer essas grandes
perguntas.
• O urbanismo das cidades costumava gravitar
em torno de seus mercados: eram os centros de reuniões sociais e quase
políticas. Como o urbanismo mudou, desde que a nossa alimentação piorou?
O
mercado era o centro da cidade pré-industrial, não só fisicamente, mas social,
econômica, simbólica e politicamente. Antes que a industrialização destruísse a
o vínculo geográfico entre os alimentos e as cidades, os mercados eram os
únicos lugares onde as pessoas podiam comprar alimentos frescos, então, todos
recorriam a eles, não só para comprar comida, mas para uma socialização, para
saber das últimas notícias e tagarelar.
Basta
ler as descrições da ágora ateniense, os relatos de Zola sobre Les Halles, em
Paris, e os de Samuel Pepys sobre Covent Garden para perceber como esses
espaços públicos eram vibrantes. De fato, os supermercados foram projetados
especificamente para eliminar os encontros sociais que outrora caracterizavam
os mercados, o que significa uma grande perda.
• O que essas mudanças implicam?
Como
arquiteta, tenho muito interesse na importância da esfera pública, ou seja, a
presença de um espaço aberto, inclusivo e heterogêneo no qual se é livre para
atuar e se encontrar face a face com seus concidadãos. De fato, isso está
diretamente relacionado ao debate anterior, sobre como as pessoas estão perdendo
a capacidade de debater e pensar por si mesmas, porque grande parte dessa
atividade agora é realizada on-line. E isto está longe de ser um verdadeiro
espaço público, já que, como sabemos, é muito manipulado.
As
implicações são enormes, uma vez que limitam nossa experiência do outro e
nossas oportunidades de sentir o que temos em comum (apesar de nossas
diferenças). E, por sua vez, ameaça nosso compromisso político e, de fato,
nossa capacidade de participar como cidadãos em uma democracia que funcione.
• Como deveria ser uma cidade urbanizada
em torno de sua cultura gastronômica?
Qual
é a primeira coisa que você faz quando viaja para uma nova cidade? No meu caso,
e penso que no de muitos de nós, é procurar pela comida local e tradicional,
seja em mercados, comércios locais, cafés e restaurantes. É de longe a maneira
mais rápida (e prazerosa!) de entender o que faz um lugar funcionar, como as
pessoas se relacionam, como são a paisagem e a cultura local.
Uma
cidade como Barcelona, por exemplo, que protege e investe em seus mercados e
promulga leis para protegê-los do desenvolvimento dos supermercados, seria uma
dessas cidades. E, claro, muitas cidades do sul permanecem organizadas de forma
espetacular em torno de suas culturas alimentares tradicionais, porque a marcha
inexorável do McDonald's et al ainda não as alcançou.
Penso
que a mensagem mais poderosa que podemos enviar a esses lugares é que, a todo
custo, se apeguem a suas culturas alimentares locais: uma vez perdidas, é muito
difícil recuperá-las (como qualquer pessoa no Reino Unido pode dizer!) e delas
depende, em grande medida, a coesão social e política de um povo.
• A cidade precisa do campo para
sobreviver, mas, ao mesmo tempo, ela o despreza e ignora. Como explicar esta
incoerência?
Basicamente,
são estruturas de poder que, como sabemos, são muito antigas. Em um nível muito
básico, as cidades e o campo coevoluíram, mas historicamente a maior parte do
poder e da narrativa política estava nas mãos das cidades. É o que vemos,
inclusive, na Epopeia de Gilgamesh, a história mais antiga que existe, na qual
o rei de Uruk – talvez a cidade mais antiga da Terra – despreza o campo (na
forma de bosque sagrado). Ele o saqueia e é castigado pelos deuses.
Parece-me
fascinante, porque, em certo sentido, a Epopeia de Gilgamesh é a parábola
ambiental mais antiga que existe. Então, sempre soubemos que o desequilíbrio
entre cidade e campo era uma coisa perigosa, mas por muitos anos, na verdade,
até meados do século XX, pode-se dizer, permaneceu a ilusão de que a terra,
também conhecida como natureza, era infinita e dispensável.
Agora
que sabemos que a Terra é finita, essa suposição assume um traço totalmente
diferente. Talvez a tarefa mais urgente que enfrentamos hoje seja encontrar um
novo equilíbrio entre a cidade e o campo, algo que as duas metades da
civilização urbana desfrutaram só brevemente, ao longo da história.
Se
somos o que comemos, como somos hoje?
Há
pouco, brinquei dizendo que alguns de nós somos macarrões ambulantes. A
brincadeira era séria, pois conforme nossa alimentação se industrializa,
comemos mais alimentos processados, cheios de produtos químicos artificiais e
gorduras inapropriadas, inclusive, substâncias criadas artificialmente que
nossos corpos têm dificuldades para absorver e que interferem em nossos
sistemas digestivos.
E
agora sabemos que são estes alimentos que estão por trás da epidemia moderna da
obesidade, bem como aterradora onda de doenças relacionadas à dieta. (É notável
que as “condições de saúde subjacentes” que fizeram com que as pessoas no
Ocidente estivessem muito mais propensas a morrer de covid, como diabetes,
câncer e problemas cardíacos, estavam quase todas relacionadas à dieta.)
Em
síntese, nós, que vivemos de alimentos altamente processados e de grandes
marcas que cada vez mais dominam os corredores centrais dos supermercados somos
bombas-relógio ambulantes para problemas de saúde e o encurtamento da vida!
• Com a crise bélica da Ucrânia e o
problema dos grãos ucranianos que alimentam o mundo, começamos a entender o
problema da globalização. O que mais fizemos ou estamos fazendo de errado?
Certo,
a guerra na Ucrânia foi uma chamada de atenção que nos diz que o sistema
alimentar moderno, com suas cadeias alimentares altamente concentradas e
consolidadas, é uma receita para o desastre. Existe tanta coisa para dizer a
esse respeito que, realmente, seria necessário um livro, mas, em essência,
muitos dos problemas que enfrentamos hoje são o resultado de tentar resolver o
problema sobre como comer:
1.
Tentando submeter a natureza a golpes com o uso de combustíveis fósseis e
produtos químicos, em vez de trabalhar com ela.
2.
Criando a ilusão de comida barata, quando tal coisa não existe.
3.
Permitindo que nossos líderes políticos cedam o controle dos alimentos e a
responsabilidade de alimentar seu povo às empresas, cuja única motivação é
obter lucros.
4.
Desregulamentando o sistema alimentar e deixando de proteger o mundo natural,
de modo que está sendo sistematicamente destruído.
5.
Criando uma ideia de boa vida baseada na existência de alimentos baratos, que
virou de cabeça para baixo nosso sistema de valores.
• Devemos entender o livro como uma
crítica ao capitalismo?
Em
uma palavra, sim! E, claro, nenhuma das questões que acabo de enumerar teriam
sido possíveis sem o capitalismo. De fato, muitos delas são consequência direta
dele. A doutrina de que a natureza é infinita e grátis, que os animais – e os
humanos – são dispensáveis e que o lucro é a única coisa que importa são todos
resultados diretos do pensamento capitalista em sua forma mais extrema.
Isso
não quer dizer que não precisamos de mercados – precisamos –, mas também
precisamos de medidas sociais e políticas sólidas para obrigar os mercados a
agir em nosso interesse, o que significa estabelecer nossa economia de tal
maneira que os incline a objetivos sociais e ecológicos que são comuns.
Por
exemplo, espero que a maioria das pessoas esteja de acordo que a criação de uma
sociedade próspera e equitativa, a preservação da natureza e a mitigação da
mudança climática devem estar acima dos lucros. Por isso, proponho uma economia
sitopiana, que baseie nosso pensamento econômico no verdadeiro valor dos
alimentos, para substituir nosso atual sistema monetário.
• “Sitopia” traz como subtítulo “Como a
comida pode salvar o mundo”. Como você faria?
Em
primeiro lugar, valorizando a alimentação e a devolvendo ao centro da nossa
forma de viver, que é onde ela deve estar. A comida conecta e dá forma a tudo
em nossas vidas, e é também a coisa mais valiosa que temos que produzir para
sobreviver, por isso tem um poder inigualável de moldar nossas vidas para
melhor, caso permitamos!
Pensar
e agir por meio da comida nos obriga a nos fazer todas as grandes perguntas e,
como a comida é essencialmente a própria vida, pode nos levar na direção
correta. Onde as pessoas valorizam a comida e se reúnem para produzi-la,
cozinhá-la e compartilhá-la, o mundo muda para melhor.
Ao
refletir sobre a alimentação, podemos reajustar nossa ideia de uma boa vida e
começar a construir um futuro florescente. A sitopia nunca pode ser utopia, mas
aprendendo a aproveitar o poder da comida para o bem, podemos nos aproximar do
sonho utópico de criar uma sociedade equitativa, saudável e resiliente para
todos.
A
comida tem poderes mágicos! Em muitos sentidos, é a ferramenta mais poderosa
para transformar nosso mundo que não sabíamos que tínhamos.
A fome não é causada pela falta de
alimentos, de acordo com o professor Ricardo Abramovay
De
acordo com o professor Ricardo Abramovay, não há falta de alimentos, e sim a
distribuição irregular desses recursos, o que demanda a recuperação de
políticas alimentares.
Mesmo
com o aumento da produção agropecuária mundial, a fome persiste como um
problema no Brasil e no mundo. O aumento da população mundial, que passou de 7
bilhões para 8 bilhões, acende o alerta para a necessidade de melhor
distribuição de alimentos e de criação de políticas públicas efetivas. Também
há um desbalanço entre a agropecuária e o meio ambiente, que deve ser levado em
conta na produção alimentar.
O
professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de
Energia e Ambiente (IEE-USP), Ricardo Abramovay, explica a situação, ao expor
que não há, efetivamente, falta de alimentos, e sim a distribuição irregular
desses recursos. E isso se deve ao fato de que a produção agronômica não
responde a uma lógica de mercado, já que há alimentos para suprir a todos, mas
que, na prática, não funciona.
Mapa
da fome
A
fome se encontra em índices menores que há 70 anos, mas ainda afeta 1 bilhão de
pessoas no mundo todo. Só no Brasil, são 33 milhões de pessoas famintas e 120
milhões que vivem em insegurança alimentar, dados que envolvem principalmente
crianças. Fatores como a pandemia e a guerra na Ucrânia são citados como
impulsionadores do problema: “É uma situação inaceitável, porque o Brasil tinha
saído do mapa da fome, e não por que faltam alimentos. Em 2022, o País bateu
recordes de exportação de alimentos”, destaca Abramovay.
• Possíveis soluções
Alimentação
não é um bem de consumo, está relacionada ao direito à vida. As saídas
possíveis se concentram na recuperação de políticas alimentares, e “isso tem a
ver com decisões políticas, econômicas e sociais”, explica Ricardo Abramovay.
Para ele, o País possui bons profissionais qualificados em políticas públicas
para a reestruturação delas.
Como
ação concreta, será preciso reconstruir cadastros que demonstrem quem tem a
necessidade de receber alimentos. A política empregada atualmente abrange
domicílios, e não pessoas individualmente. Ademais, Abramovay destaca ser
importante o resgate do vínculo entre a alimentação escolar, que vem sofrendo
com cortes, e a agricultura familiar, para ocorrer o abastecimento das merendas
e o fomento a pequenos produtores.
A
alimentação contemporânea vai além da ingestão de carboidratos e proteínas e
envolve alimentação saudável. Por isso, seria necessário, também, pensar em
medidas que contornem os chamados “desertos alimentares”, locais em que a
disponibilidade de alimentos frescos é pouca. Isso tem relação com a qualidade
de vida, uma vez que, se não há disponibilidade desses recursos, ocorre o
aumento da ingestão de ultraprocessados, que geralmente são mais baratos.
“Sociedades democráticas não são sociedades onde se passa fome de algum jeito”,
finaliza o professor.
Fonte:
Entrevista com Carolyn Steel, para Mariángeles García, para Yorokobu. Tradução
do Cepat, para IHU/Jornal da USP
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