'Perseguição contra cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da igreja'
"A
gente se sentiu descartável." "É como se nós, cristãos, estivéssemos vivendo
a própria ditadura dentro do templo." "Não reconheço mais a Igreja
hoje." "O pastor abandonou a Bíblia pra falar de comunismo."
"É triste ver um lugar sagrado sendo corrompido." "A perseguição
contra os cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da própria igreja."
As
frases acima foram ditas por cristãos que não fazem parte deste grupo
majoritário.
Apesar
de representarem parte expressiva da comunidade evangélica — quatro em cada
dez, segundo o levantamento mais recente do instituto —, aqueles que discordam
do presidente raramente têm chance de expressar sua opinião.
Principalmente
dentro das igrejas, eles contam.
À
BBC News Brasil, eles dizem que, enquanto muitos de seus irmãos de fé apoiam
Bolsonaro por medo de enfrentarem episódios futuros de intolerância religiosa
no Brasil, a perseguição contra cristãos já existiria no país.
Nas
palavras dos entrevistados, ela acontece dentro dos próprios templos, puxada
principalmente por líderes religiosos que ameaçam com castigo divino ou punição
dentro da própria igreja aqueles que discordam da fusão entre política e
religião que tem marcado estas eleições.
A
BBC News Brasil pediu esclarecimentos a todas as igrejas citadas nesta
reportagem: Igreja Quadrangular, Igreja Batista, Assembleia de Deus e Santuário
católico de São Miguel Arcanjo. Nenhuma respondeu às solicitações de
comentários.
Enquanto
pastores influentes como André Valadão e Silas Malafaia dizem que igrejas devem
ter posição política clara e fizeram campanha pela reeleição de Bolsonaro, a
BBC News Brasil recebeu mais de 100 relatos de cristãos, principalmente
evangélicos, que narram episódios de pressão ou intimidação dentro dos templos
na reta final da eleição.
Muitos
pediram anonimato, com medo de consequências para si próprios ou suas famílias dentro
das igrejas. Outros já sofreram consequências.
• 'Queimar quem vota em Lula'
Alisson
Santos diz ter sido expulso junto à esposa da igreja evangélica que frequentava
desde 2019 em Aracaju (SE). Até o início de outubro, ambos trabalhavam como
evangelizadores de jovens no templo.
Em
entrevista à BBC News Brasil, ele diz que o apoio de pastores a Bolsonaro e
seus aliados sempre existiu, mas se intensificou no segundo semestre, quando um
dos pastores se candidatou a deputado estadual.
"A
partir daí, em todas as reuniões a gente tinha que orar por esse pré-candidato
e fazia reuniões para falar sobre isso", ele conta. "Diziam que
Bolsonaro é o único candidato que defende a liberdade religiosa, o único que
vai manter igrejas abertas. E que, se Lula for eleito, ele vai fechar as
igrejas, queimar as igrejas".
Ele
conta que viu frequentadores da igreja sendo expostos no altar por discordarem
dos candidatos apoiados pela igreja.
"Ele
(o pastor), antes do culto, procurou pessoas para perguntar em quem elas
votariam. Algumas pessoas disseram que votariam num candidato diferente do
dele. Na hora do culto ele usou essas pessoas como exemplo do que não
fazer", ele diz.
"Ele
fez isso durante a Palavra, duas semanas antes da eleição."
Para
o jovem, o tom violento adotado em alguns cultos contradiz o propósito dos
templos religiosos.
"Teve
um culto em que o pastor chegou e falou que se o candidato Lula fosse eleito e
fossem queimar as igrejas, ele ia mandar queimar primeiro quem votou nele. Isso
não foi fora da igreja, não foi nos corredores, foi na frente da igreja
toda", ele diz.
• 'Minha esposa só chora'
Após
semanas evitando se posicionar na frente de pastores, Alisson compartilhou no
status do WhatsApp um trecho de uma entrevista de Bolsonaro à revista IstoÉ
Gente, em fevereiro de 2000.
Questionado
na ocasião sobre sua opinião em relação ao aborto, que hoje condena
veementemente, o então deputado respondeu: "Tem que ser uma decisão do
casal".
Alisson
também compartilhou um vídeo gravado em 2017, quando Bolsonaro discursou dentro
de um templo da maçonaria — entidade criticada por parte dos evangélicos.
Ambas
as imagens viralizaram recentemente nas redes sociais e foram usadas por
opositores para ilustrar mudanças no discurso religioso de Bolsonaro ao longo
das últimas duas décadas.
"Foi
justamente por esse vídeo que eles marcaram uma reunião da diretoria",
conta o jovem.
"Ele
(o pastor) disse: 'Se vocês que não querem seguir o posicionamento da igreja,
procurem outro lugar'. E isso pra mim foi um absurdo. E não foi nem particularmente,
foi em frente a toda a diretoria."
Os
dois deixaram seus cargos e não frequentam mais a igreja desde então.
"É
muito triste. Minha esposa só chora desde o ocorrido. Ela só chora porque é o
lugar que sempre nos acolheu", afirma. "A perseguição contra os
cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da própria igreja."
• 'Perseguição dentro do templo'
Marta
vive numa capital nordestina. Muito religiosa, ela também diz que se viu
obrigada a deixar a igreja que frequentava há décadas por discordar da pressão
de pastores por apoio a Bosonaro.
"Sinceramente,
eu me senti pressionada. Fiquei muito triste, decepcionada primeiramente. E,
sinceramente, não tenho vontade de retornar para o templo mais porque Jesus não
é isso. Ele não veio para fazer pressão", diz.
"Você
passa a ser perseguido dentro do próprio templo pelos irmãos, na fé e pelos
próprios pastores. Porque, se você não obedece, se você não segue aquele
político que eles escolheram para votar, você não é cristão. A sua fé, ela está
sendo colocada à prova."
Durante
toda a entrevista, Marta cita trechos e ensinamentos da Bíblia.
"Não
é assim que Jesus nos ensinou, que a gente fosse agressivo, que a gente que se
armasse e partisse para cima do nosso adversário. Não é isso que a palavra do
Senhor ensina. A Palavra de Deus diz que a gente tem que mostrar o amor, a
misericórdia, a bondade", afirma. " Jesus, ele é amor, é bondade. Ele
veio para curar, salvar e libertar, e não para colocar medo nas pessoas."
Mãe
de uma criança pequena e de um adolescente, ela conta que a pressão política e
o consequente afastamento da Igreja abalou toda a família.
"Isso
mexe muito com a família, porque temos uma base religiosa, uma base cristã.
Você fala para os seus filhos, você prega para os seus filhos sobre a sua
doutrina que você crê. E, de repente, o seu filho pergunta 'Mãe, que Cristo é
esse'? 'Que doutrina é essa'? 'Que religião é desse jeito? Sobre pressão, sobre
ditadura, sobre não poder escolher?'"
• 'Ninguém se importou com a nossa saída'
Quase
3 mil quilômetros separam Marta de Deloana, uma assistente social de Osasco
(SP) que frequentava a Assembleia de Deus há 12 anos. A história, no entanto,
se repete.
"Sinto
que perdi uma referência. De verdade. Sempre acreditei em Deus. Sempre gostei
de ficar na igreja. Sempre gostei de participar dos grupos. Era realmente algo
que fazia parte da minha vida", ela conta por videoconferência.
"E
eu sinto que isso se perdeu. Não reconheço mais a Igreja hoje como a que
conheci há dez anos. Por mais que a Igreja sempre tenha tido um posicionamento
conservador, tenha a questão da doutrina, eu vejo as coisas hoje de forma muito
violenta. Se penso de forma diferente, vem uma palavra de condenação. É como se
eu pudesse ser punida por um pensamento que seja contrário."
A
punição, na prática, aconteceu. Tudo começou quando seu marido, que frequentava
a igreja desde criança, procurou um presbítero após um culto após se sentir
ofendido por algumas de suas falas.
"Meu
esposo terminou o ensinamento dos adolescentes e os levou para o final da aula
para adultos. Esse homem estava finalizando a aula. Ele começou a passar alguns
slides, colocando como se fosse o antes e depois dos jovens que entram nas
universidades públicas. Era uma espécie de alerta para os pais que estavam
ali", ela conta.
As
imagens, segundo Deolana, mostravam um "antes e depois" de jovens que
entram em universidades públicas. "O jovem todo arrumado em um primeiro
momento, e depois ele fazendo uso de droga ou se 'tornando homossexual' dentro
da universidade e coisas desse tipo. Querendo deixar bem claro que a
universidade pública era um ambiente perigoso para os jovens."
Eles
disseram ao religioso que aquele discurso era inapropriado e que o próprio
marido de Deolana estuda em uma universidade pública.
"Ele
já se alterou bastante, pelo que eu entendi, por ter sido questionado por uma
fala. Como se ele já não admitisse ser questionado. E aí chegou o momento de
ele falou: 'Estou vendo que você é de esquerda e sinto muito por você'",
conta a assistente social.
"E
ele falou como se fosse um posicionamento que fosse trazer uma condenação para
a gente, como se fosse algo absurdo. Em momento algum o meu marido falou dessa
questão de política, de esquerda e de direita. Ele estava querendo focar na
fala dele em relação a universidade em si, e aí ele misturou vários
assuntos."
O
casal não conseguiu mais ir à Igreja depois do episódio.
"A
gente se sentiu descartável, né? Ficamos com essa visão de que é um ambiente em
que a gente não vai ser bem-vindo por causa da forma que a gente pensa. O que
me chateou mais a gente foi essa intolerância. Que o pensamento contrário seja
colocado dessa forma, como se fosse pecado ou coisas do tipo", ela diz.
"E
com isso a gente não retornou mais, nem ninguém procurou a gente. Então,
ninguém se importou, essa é a verdade, com a nossa saída."
• Santinhos
João*
e a esposa moram em São Paulo (SP) e, diferente de Alisson, Marta e Deloana,
vão continuar frequentando a igreja, apesar da pressão pelo voto em Bolsonaro.
"O
nome de Bolsonaro é citado normalmente (nos cultos). Os irmãos, eles se dirigem
ao presidente como o candidato correto. É o candidato do bem. E os demais
candidatos, todos, independente da ideologia, são os adversários. São
candidatos do mal, digamos."
Ele
conta que, além do voto para presidente, pastores chegaram a indicar nomes e
números de candidatos a cargos legislativos no primeiro turno dentro do templo.
"Geralmente
a gente tem essa parte dos avisos no final dos cultos. Então, o pastor comentou
que alguns irmãos tinham perguntado para ele alguma sugestão de candidatos para
deputados de senadores (…) Então ele falou que, para quem quisesse, estava
sendo montada uma lista de candidatos de deputados de que fosse, que seria
disponibilizada para os irmãos que procurassem."
Frequentes
nos comentários ouvidos pela reportagem, os relatos sobre indicações de votos
dentro e fora de templos não vem só de evangélicos.
Católica,
a paranaense Paula Izidro diz que essa foi a gota d'água.
"Eu
tinha o costume de participar de uma caminhada com peregrinos da região ao
Santuário de São Miguel Arcanjo. E na porta do santuário estavam entregando o
santinho de um candidato. Toda aquela coisa da peregrinação de fé acabou para
mim ali", ela diz.
"Aquilo
me deixou indignada, porque eles usaram o santuário de palanque. O padre fala
abertamente sobre engajar na eleição, posta foto com Bolsonaro, e isso me deixa
muito, muito deprimida. Logo ele que defende tortura, pena de morte, que não se
importou com as pessoas na pandemia e tudo mais. Não condiz com o contexto
religioso", ela diz.
• 'Perdi minha fé. Não tenho mais
religião'
Enquanto
muitos dos cristãos ouvidos pela reportagem contam que decidiram se afastar de
suas igrejas e buscar outras opções, onde sua posição política seja respeitada,
Luiz Fernando, que vive no interior da Bahia e era evangélico desde os 12 anos,
tomou decisão mais drástica.
"Durante
todos os anos que eu estive na Igreja, passamos por eleições presidenciais, por
eleições municipais e nunca, até 2018, foi abordada essa questão de 'vote em
tal candidato'. Era uma coisa que deixava todo mundo muito à vontade. Você não
sabia se o seu irmão da cadeira da frente era a favor do partido A ou do
partido B. Não sabia se a pessoa ao seu lado era a favor de partido A ou
partido B. Tinha essa liberdade de voto e ninguém era recriminado por
isso", ele lembra.
"Em
2018, eleição presidencial em que Jair Bolsonaro apareceu como o candidato
cristão, que levantava a bandeira da família, da religiosidade, aquela coisa
toda, eu percebi que a entonação dos cultos, o direcionamento dos cultos da
igreja modificou. O pastor líder, em culto, no púlpito, falou: 'Vamos como
cristãos votar em Jair Bolsonaro, pois ele representa a família e ele
representa a nós cristãos. Aí, naquele momento eu entendi e falei 'não'. A
política entrou na Igreja."
"Aí
eu simplesmente percebi que tudo o que eu tinha vivido, aquela coisa de paz, de
amor ao próximo, de tentar conquistar através do amor, foi tudo por água
abaixo, porque eu vi o ódio presente nas pessoas, nos meus amigos que eram da
igreja. Eu vi essa coisa de guerra. Então eu falei: 'não, não dá mais, me
desiludi com a religião. Eu simplesmente deixei de ir'."
A
decepção o levou a, pela primeira vez na vida, se declarar "sem
religião".
"Depois
desse governo que se diz cristão, eu não consigo mais me relacionar com Deus
intimamente. Na última pesquisa do IBGE, eu já declarei que não tenho fé.
(Perguntaram) 'Você é crente, você é católico, qual é a sua religião?' Eu
falei: 'Não, não tenho religião'. Então não sei o que eles colocaram. Se
agnóstico ou ateu, alguma coisa assim. Mas eu já não me coloquei mais como
cristão, não me representa. Isso já não me representa mais."
"Eu
percebi que para eu voltar a ter um relacionamento com Deus, a Igreja precisa
mudar. E eu vejo que a Igreja não quer mudar."
*Nome
alterado a pedido do entrevistado
Fonte:
BBC News Brasil
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