O saneamento básico
no fundo da fossa
Após
quatro anos de Bolsonaro, que se esforçou em privatizar o setor, situação é de
terra arrasada. Orçamento deixado para investimentos em água e coleta de
esgotos não chega a 2% do necessário, e meta de universalizar em 2033 torna-se
irreal
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Cercado
por toras de bambu seco, um quintal de terra batida, cheio de pedras, plantas e árvores frutíferas. Quase
encostada na cerca, uma pia sustentada por quatro ripas de madeira. A água é
armazenada em uma panela grande de alumínio sem tampa, e, quando é utilizada, passa pelo buraco do ralo
e cai diretamente na terra. Não tem cano, nem torneira. O movimento de quem
lava os pratos ali envolve certa destreza e alguns desvios. Se fizer muita
força ou colocar muito peso, tudo pode ir ao chão num piscar de olhos. É
preciso distanciar o corpo que pode ficar inteiramente molhado. A pia fica em
frente a uma pequena casa feita de taipa (barro e pedaços de madeira), com uma
portinhola. Dentro dela, um buraco no chão. Esse espaço é conhecido, na baixada
maranhense, como sentina. Um banheiro sem vaso algum, apenas o buraco cavado no
chão, do lado de fora das casas de quem não tem condições financeiras de ter um
banheiro com tijolos, vaso, chuveiro e pia. O cheiro de fezes e urina é forte e
desagradável. Sair de casa no meio da noite para ir à sentina é quase
assustador. Por isso, a agricultora aposentada Maria Domingas Silva, 57, tinha
um sonho: ter um banheiro.
Pelo
menos 5 milhões de brasileiros vivem em moradias sem banheiro, esse é um dos
problemas mais primários associados à falta de saneamento básico. Em 2019,
segundo dados do Instituto Trata Brasil, 2,5 milhões de mulheres brasileiras
estavam nessa situação, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Domingas
foi uma delas. A agricultora mora com seus quatro netos, Dayla Cristina Silva,
14, Carlos Eduardo Silva, 10, Isaac Silva Leite, 7, Angelo Guilherme Silva, 4,
em um distrito da cidade maranhense de Pinheiro, a cerca de 140 km da capital
São Luís. Pinheiro tem aproximadamente 80 mil habitantes. Paraíso, o distrito
onde ela mora, não passa dos 5 mil. Não há abastecimento de água, esgotamento
sanitário, coleta e tratamento dos resíduos sólidos e drenagem das águas
pluviais. Para beber água, os moradores precisam recorrer a poços, caixas
d’água. Sem esgoto, utilizam as chamadas fossas negras, buracos cavados no
chão, revestidos ou não, que acumulam os dejetos da residência. Em outras
casas, os dejetos são simplesmente enterrados.
Quando
Domingas construiu sua casa, deixou o espaço do banheiro para, no dia em que
tivesse condições, construir um. Foi o que aconteceu em 2020. “Eu pensava
demais em construir meu banheiro, era meu sonho. Assim que começou a Covid, eu
adoeci e fiquei muito fraca. Quando eu precisava fazer necessidades, meu filho
me carregava para a sentina. Eu mal conseguia andar, quanto mais ficar
acocorada. Meu pai adoeceu também e eu tive que fazer um banquinho e colocar na
sentina, pra ele conseguir utilizar. Quando terminou a construção, foi uma
alegria imensa. Uma conquista muito grande, boa demais. Mesmo ele sendo pequeno,
é uma conquista.”
Domingas,
57, mora com quatro netos em uma casa com um só banheiro.Até 2020, esse era o
banheiro da sua casa. Uma “sentina” de taipa no quintal, construída ao lado do
poço que a família obtém água.
O
banheiro novo tem o chão e metade das paredes revestidas de azulejo. O vaso
sanitário e a pia ficam frente a frente, a poucos centímetros de distância.
Para chegar ao chuveiro, dois passos são o suficiente. Uma cortina de plástico
divide o espaço. Apesar da conquista, o
destino dos dejetos é quase o mesmo que na sentina. Uma fossa negra, construída
a poucos metros do poço de onde a família obtém água. “A gente manda cavar um
buraco bem grande, às vezes bota tijolo para evitar enxurrada e coloca os canos
do banheiro para cair lá”, contou ela à Piauí. Como a fossa só é parcialmente
revestida, muita água suja escoa para a terra ao redor do buraco, que acaba
armazenando apenas os dejetos sólidos. Isso prolonga o tempo entre um
esvaziamento e outro. Mandar esvaziar a fossa é algo fora do orçamento de
Domingas. “Para pagar o carro [que seca a fossa], é uns 300, 350 reais. Eu sou
aposentada, recebo benefício, mas para pagar o carro, basicamente a pessoa fica
sem comer direito, o dinheiro vai todinho para isso”, explica. No inverno, com
as chuvas, a limpeza precisa ser mais frequente. Ela tem que escolher entre
pagar o carro limpa-fossa ou tampar o buraco e cavar outro, alternativa comum
na vizinhança. “Para cavar a fossa, é 10 reais o palmo. Só que fica mais caro
porque precisa comprar cimento, tijolo. Nada é barato e tudo é por nossa conta.
Não tem ninguém que ajude, nem prefeito nem ninguém.”
As
más condições de moradia e saneamento afetam, de forma decisiva, a vida e a
saúde das mulheres. De acordo com o relatório das Nações Unidas, elas executam
o triplo de tarefas domésticas e de cuidado que os homens. E são o grupo mais
afetado com doenças relacionadas à inadequação do acesso à água, ao esgotamento
sanitário e à higiene, uma vez que estão em maior contato físico com a água
contaminada e os dejetos. Em 2019, os dados da PNADC apontaram que as mulheres
chefiavam 48,2% das moradias no país.
De
acordo com um estudo do Instituto Trata Brasil, feito com dados do Ministério
do Desenvolvimento Regional, 100 milhões de brasileiros, 47,6% da população,
vivem sem coleta de esgoto. Do que é coletado, apenas metade é tratada, o que
equivale a 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento despejadas na
natureza diariamente. Entre os piores municípios, estão principalmente cidades
das regiões Norte e Nordeste e do estado do Rio de Janeiro.
Os
números mostram que o problema está
longe de solução. Antes de chegar ao final, o governo Bolsonaro destinou à área
de saneamento básico em 2023, somando os repasses para o Ministério da Saúde e
Ministério do Desenvolvimento Regional, R$ 262 milhões – só 2% do necessário
para cumprir a meta de universalização do serviço.
O
governo Bolsonaro também cortou 91% no orçamento destinado a projetos de
saneamento básico do Ministério de Desenvolvimento Regional. Em 2022, o
ministério teve R$ 296 milhões disponíveis para investir em saneamento. Neste
ano, primeiro do novo governo Lula, o órgão terá R$ 28 milhões. O valor
destinado a programas de saneamento via Codevasf – ou seja, na área de atuação
da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba – foi
praticamente zerado: caiu de R$ 80 milhões para R$ 1,3 milhão. Para apoio à
implantação, ampliação e melhorias do Sistemas de Abastecimento de Água nessas
áreas, o governo deixou escassos R$ 5 mil.
Com
isso, fica ainda mais distante a possibilidade da universalização do serviço,
prevista para 2033 – sob a condição de que os investimentos fossem realizados.
“O investimento em saneamento não gera resultados imediatos. É um projeto de
longo prazo. Para se tornar efetivo, para resultar em água na porta das
pessoas, por exemplo, precisa de um tempo muito longo. Esgotamento sanitário é
mais ainda: no mínimo cinco anos”, explica Ana Lucia Britto, professora
associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e integrante do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento
(Ondas).
Na
avaliação dela, a gestão Bolsonaro deixa uma espécie de herança maldita para o
setor de saneamento que surtirá efeito nos próximos anos. Isso significa que
mesmo que o investimento volte a subir a partir de 2024, durante o governo
Lula, há o risco de que o governo acabe sem apresentar resultados efetivos de
melhoria no saneamento básico. Nos anos anteriores, desde 2015, o valor de
investimento também ficou aquém do estipulado pelo Plano Nacional de Saneamento
Básico, mas o corte feito pelo governo Bolsonaro foi o maior desde que o plano
foi lançado. “Toda a perspectiva de planejamento em saneamento foi abandonada
nos quatro anos de governo Bolsonaro. Vai ser preciso reconstruir toda a
política que foi interrompida”, diz a pesquisadora.
O
esgotamento sanitário, se comparado ao acesso à água, traz um desafio maior,
especialmente porque o Brasil parte de um patamar de acesso ainda muito baixo,
mesmo em áreas urbanas. “Toda política do governo Bolsonaro foi voltada para a
concessão privada, mas ainda precisamos cobrir um déficit muito elevado, e esse
é um investimento custoso”, diz ela. “O setor privado não tem capacidade de
fazer isso sozinho, tem que ter recurso público. E é um direito básico, não dá
para adiar ou não fazer, é obrigação do governo atender a população”. Um
levantamento divulgado em dezembro passado pelo Ministério do Desenvolvimento
Regional mostrou que pelo menos 1.937 municípios brasileiros não têm rede
coletora de esgoto. Essas cidades não são atendidas nem pela iniciativa privada
nem pelo poder público e usam soluções alternativas, como fossas sépticas,
fossas rudimentares, galerias de águas pluviais e lançamento de esgoto em curso
d’água.
Além
de caro, o investimento em saneamento básico raramente traz dividendos
políticos imediatos. Para Brito, isso talvez ajude a explicar a falta de
interesse político em investir num setor tão fundamental. “Construir uma praça
ou asfaltar uma rua é mais rápido”, diz ela.
Ao
todo, o setor de saneamento rural teve um corte de quase 60% no orçamento de
2023. O termo “rural” no setor de saneamento não se refere apenas a comunidades
rurais, mas a qualquer cidade de pequeno porte, fora das regiões metropolitanas,
que opera com um sistema de saneamento diferente dos grandes centros urbanos –
para ser compatível com a capacidade de pagamento da população. “Se não
quisermos ver uma tragédia de saúde pública daqui a uns anos, temos que agir
imediatamente no saneamento rural”, diz o advogado Wladimir Ribeiro, um dos
especialistas que elaboraram a Lei Nacional de Saneamento Básico de 2007.
O
órgão responsável pelo saneamento rural era a Fundação Nacional de Saúde
(Funasa), extinto no começo deste ano pelo governo Lula. Para Ribeiro, era uma
morte anunciada. Apesar de ter sido loteado e degradado ao longo dos últimos
anos, o órgão cuidava do saneamento de pequenos municípios e comunidades rurais
– locais que não têm capacidade institucional para organizar o serviço. A
Funasa é herdeira do antigo Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), que,
segundo Ribeiro, foi “a melhor experiência de saneamento do mundo em termos de
política pública”, responsável por construir do zero sistemas de águas em
cidades espalhadas no interior do país até a década de 1990.
Cidades
consideradas “rurais”, como a de Pinheiro em que vive Domingas, concentram o
maior déficit de saneamento do país e, portanto, deveriam ser prioridade das
políticas públicas – especialmente porque a iniciativa privada raramente atua
nessas regiões, já que a necessidade de investimento é maior, dizem os
especialistas ouvidos pela Piauí. “Fazer saneamento numa comunidade indígena,
num município da Amazônia, numa cidade do interior é muito mais difícil e caro
que numa região metropolitana”, diz Ribeiro. O novo governo ainda não definiu
se algum órgão específico cuidará do saneamento rural depois que a Funasa
deixar de atuar no interior do país. “Se nada for feito, não duvido que, daqui
a alguns anos, volte a subir enormemente o número de casos de mortalidade
materna e infantil nessas regiões”, prevê Ribeiro.
Em
2020, Bolsonaro sancionou o Novo Marco Legal do Saneamento, que, na prática,
fortaleceu a atuação de companhias privadas no setor, mas manteve o prazo de
universalização para 2033. Na avaliação do advogado Wladimir Ribeiro, são
palavras ao vento. “Quando você fala que em 2033 vai universalizar, sem
considerar as condições de investimento, você trabalha de maneira irrealista e
demagógica”, diz.
Nesse
ritmo, Domingas e seus quatro netos continuarão sujeitos à contaminação por
doenças de veiculação hídrica e sem perspectiva de mudança. Em 57 anos de vida,
a aposentada nunca conheceu outra realidade. Antes de se mudar para o Paraíso,
há cerca de 30 anos, morava em outro povoado chamado de Santa Rosa. “Lá é do
mesmo jeito daqui, fossa. Na verdade, é ainda pior. Muitas pessoas não tem
condição nem de construir a fossa, então tem que fazer as necessidades no mato
mesmo. No Paraíso sempre foi assim, nunca melhorou. Os políticos já falaram,
mas nunca fizeram nada. Sempre foi desse jeito e acho que não vai mudar nem tão
cedo.”
Puxadas pelo desmatamento, emissões
brasileiras crescem duas vezes mais do que média global
As
elevadas taxas de desmatamento da Floresta Amazônica, registradas
principalmente durante os quatro anos de governo Jair Bolsonaro (PL), fizeram
com que o Brasil aumentasse a sua participação global na emissão de gases do
efeito estufa e, consequentemente, no aquecimento do planeta. Apenas em 2021,
último ano em que os dados foram computados, o país emitiu 2,4 bilhões de
toneladas brutas de gás carbônico equivalente (CO2e), um aumento de 12,2% em
relação a 2020, quando foram lançados na atmosfera 2,1 bilhões de CO2e.
Os
dados fazem parte do mais recente relatório Sistema de Estimativas de Emissões
e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), elaborado pelo Observatório do
Clima, e divulgado nesta quinta-feira (23).
Este
é o segundo pior resultado em quase 20 anos de aferição, ficando atrás apenas
de 2003, quando foram lançados na atmosfera três bilhões de toneladas de CO2e.
O crescimento da poluição produzida pelo Brasil em 2021 é duas vezes superior à
média global estimada para aquele ano (5%).
Dos
2,4 bilhões de toneladas de carbono emitidas, 1,19 bilhão têm como origem o
desmatamento ocorrido em todos os biomas do país. Em comparação com 2020, a
poluição oriunda da chamada mudança de uso da terra e florestas (MUT) cresceu
18,5%. A quantidade supera as emissões do Japão – uma das maiores potências industriais
e poluidoras do mundo.
Sozinha,
a Amazônia respondeu por 77% das emissões brutas de gases do efeito estufa
oriundas da MUT. Em 2021, não por acaso, o bioma registrou a pior taxa de
desmatamento em 15 anos, conforme os dados do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE): 13.038 km2. Em 2020, a área derrubada também já tinha sido
elevada: 10.851 km2.
Somando
as emissões por desmatamento e outras mudanças de uso da terra com as do setor
agropecuário, o relatório aponta que, em 2021, a atividade agropecuária
respondeu por 74% de toda a poluição climática brasileira.
O
aumento do rebanho bovino fez com que somente a agropecuária ficasse na segunda
posição entre os maiores emissores de gases do efeito estufa: 601 milhões de
toneladas de CO2e.
Em
terceiro lugar com mais contribuição está o setor de energia, com 435 milhões
de toneladas de CO2e; um ano antes foram 387 milhões. Foi a maior alta
observada desde 1973, quando o Brasil estava no auge de seu “milagre econômico”
da ditadura militar (1964-1985).
• A “década perdida”
Os
dados sinalizam que o Brasil ficou longe de cumprir a meta de redução do
desmatamento da Amazônia estabelecida no Plano Nacional sobre Mudança do Clima
(PNCM). Aprovado em 2010, o plano trazia como meta a redução de 80% na
destruição da floresta tropical até 2020.
Assim,
o relatório elaborado pelo Observatório do Clima define o período 2010-2020
como a “década perdida” do Brasil no combate às mudanças climáticas.
“Esses
números indicam que, embora a PNMC tenha produzido inovações importantes no
ordenamento legal brasileiro e criado instrumentos para mensuração de emissões
e combate à mudança do clima, do ponto de vista da atmosfera, a década de 2010
foi perdida para o Brasil”, afirma o documento do OC.
A
organização também alerta que os resultados da “década perdida” fazem com que o
país comprometa as metas assumidas no âmbito do Acordo de Paris (NDC), em 2015.
A contribuição brasileira seria a de diminuir as emissões em 37% até 2025, em
relação a 2005. O Brasil deveria começar a tirar do papel as suas metas da NDC
em 2021.
Para
que isso fosse possível, no entanto, o combate ao desmatamento deveria ter sido
adotado como política principal, diz a organização. Todavia, o governo
Bolsonaro não só adotou a estratégia de “deixar a boiada passar” com o desmonte
da agenda ambiental, como executou uma “pedalada” para as metas assumidas no
Acordo de Paris. O truque consistiu em aumentar as emissões do ano-base (2021)
sem ajustar os percentuais.
“Desde
que o SEEG começou a publicar as estimativas anuais das emissões há 10 anos,
observamos uma trajetória ascendente, culminando no recorde em 2021. A
expectativa para a próxima década é observar uma reversão, puxada pela redução
e até a eliminação do desmatamento”, afirma David Tsai, coordenador do SEEG.
Desde
a campanha eleitoral de 2022, o agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
tinha como uma das principais promessas a reconstrução da agenda ambiental do
país.
Desde
que assumiu o cargo ele fala em desmatamento ilegal zero na Amazônia. Se de
fato o novo governo conseguir reduzir a devastação não só da Amazônia, como
também do Cerrado e Pantanal, o país pode diminuir suas contribuições para o
aquecimento global.
Fonte:
Revista Piauí/O eco
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