sábado, 25 de março de 2023

Como o Brasil vai encarar o poder das Big Techs?

Existe uma preocupante inversão no debate sobre o combate à desinformação e ao discurso de ódio. De repente, o Marco Civil da Internet passou a ser responsabilizado pela inoperância das plataformas diante dos ataques à ciência e às informações de qualidade baseadas em fatos. Nos Estados Unidos ou na Inglaterra não existia o Marco Civil e nem por isso deixamos de assistir uma onda de desinformação que redundou no Brexit, na eleição de Trump e na invasão do Capitólio.

O Marco Civil nunca impediu a moderação de conteúdos pelas plataformas. Quem não conteve as falsificações da realidade, as “fazendas de cliques”, a proliferação de grupos fascistas e seu discurso de ódio foram os donos das plataformas. Isso não ocorre simplesmente por que grande parte do Vale do Silício tem simpatias pelas ideias de incompatibilidade entre a liberdade irrestrita de exploração econômica e as democracias, tal como Peter Thiel, fundador do PayPall, ou de Larry Elisson, co-fundador da Oracle, entusiastas da extrema direita e do chamado movimento alt-right.

As plataformas têm um modelo de remuneração extremamente exitoso que redundou em valores de mercado superiores a 1 trilhão de dólares para as Big Techs que possuem o seu controle acionário. Qual a dinâmica principal desse modelo de negócios? Primeiro, a oferta gratuita de interfaces e serviços com o objetivo de coletar massivamente dados das pessoas que as utilizam. Segundo, esses dados são tratados pelos sistemas algorítmicos para a formação de perfis de comportamento e microssegmentação da população que a utiliza. Terceiro, os perfis são agrupados pelas plataformas para serem atingidos com propaganda direcionada por quem tem dinheiro, empresas, departamento de marketing, grupos políticos, entre outros.

Assim, as plataformas monetizam cada segundo que uma pessoa navega em suas estruturas que são arquitetadas para atrair e modular as atenções. Por isso, criaram a lógica da viralização, do engajamento e da venda de likes e impulsionamentos. Todo esforço das plataformas não visa a informação de qualidade, nem a proteção da democracia. Seu objetivo é a espetacularização que permita manter as pessoas olhando e compartilhando seus conteúdos. Por isso, o empobrecimento dos debates que vemos na política mundial se deve muito a essa lógica viralizante que depende de tornar tudo em algo surpreendente.

Quando se ataca o Marco Civil, em geral, o que se pretende é afirmar que as plataformas estavam impedidas de bloquear os conteúdos mentirosos e desinformativos. Logo, a lei deve exigir que a desinformação seja contida pelas plataformas. Desse modo, agora daremos às Big Techs o poder legal de dizer o que é e o que não é desinformação. Tal como no escândalo da Cambrigde Analityca, a solução proposta ao Facebook concentrou ainda mais poder na direção da empresa e não reduziu em nada o processo de desinformação – como demonstrou Frances Haugen, ex-gerente de produtos da rede social.

Na segunda quinzena de março de 2023, quem entrasse no canal do Democracy Now no Youtube se depararia com um aviso: “A comunidade do YouTube identificou o seguinte conteúdo como impróprio ou ofensivo para alguns públicos”. O vídeo considerado impróprio era uma reportagem sobre Julian Assange, líder do Wikileaks que denunciou os crimes de guerra dos Estados Unidos. O mesmo Youtube bloqueou a visualização dos conteúdos do podcast Tecnopolítica em doze episódios. Em nenhum desses casos existia desinformação ou discurso de ódio, mas os gestores da plataforma acharam por bem efetivar a redução de visualizações e o bloqueio de conteúdos. Curiosamente, isso não é realizado nos canais da extrema direita, nem mesmo no canal do ex-deputado Mamãe Falei. Para o Youtube esses canais não violam suas regras.

A regulação necessária das plataformas não deveria aumentar o seu poder arbitrário sobre os conteúdos. Precisamos de uma lei que reduza esse poder e as coloque sob o controle das democracias. A regulação exige a necessária informação sobre os dados por elas coletados, os cruzamentos realizados e os objetivos dos sistemas algorítmicos que utilizam. Os termos de uso e políticas de privacidade que expõem não são suficientes para que as democracias e as sociedades tenham informações básicas em suas operações sobre o comportamento social.

Plataformas de relacionamento social não são sites, nem blogs. Elas se colocam como espaços públicos não vinculados a nenhuma opção cultural, partidária, religiosa ou mercantil. Fazem isso para atrair todos os públicos e poder atingi-los com publicidade e marketing. Nessa condição, as plataformas devem estar submetidas a fiscalização democrática.

Como o gerenciamento imediato das plataformas é realizado por sistemas algorítmicos de aprendizado de máquina, é imprescindível a avaliação de impacto do tratamento de dados que realizam. No mínimo, as finalidades dos modelos que criam devem ser expostas nitidamente, sem dubiedades e eufemismos, para quem está sendo por eles modulados. Os termos de uso e as políticas de privacidade das plataformas são demasiadamente genéricas e não permitem saber se estão praticando uma coleta e tratamento excessivos, discriminatórios e inadequados de dados. Tal como os europeus estão criando um Conselho de Inteligência Artificial composto por especialistas em IA, representantes da sociedade civil, do governo e do mercado, a regulação das plataformas, dada a sua complexidade deveria avançar na formação de uma estrutura democrática e multissetorial de aplicação de regras sobre essas empresas de modulação social.

 

       Tecnologia e as transformações no campo de batalha. Por Eduardo Barros Mariutti

 

O que hoje chamamos de geopolítica começou a se desenhar em uma época em que, por exemplo, não se diferenciava com clareza geografia de história, o que inclinava as análises para uma temporalidade mais dilatada, centrada na longa duração (Vidal de La Blache e, mais recentemente, Fernand Braudel são os exemplos mais óbvios desta característica). No entanto, sempre tendo como referência esse quadro temporal mais dilatado, os estudiosos da geopolítica também realizam estudos de conjuntura, adentrando na temporalidade fugaz dos acontecimentos (histoire événementielle), o tempo explosivo que “enche a consciência dos contemporâneos, mas não dura muito, mal se vê a sua chama” (Braudel – História e Ciências Sociais).

Algumas transformações importantes ocorrem também em uma temporalidade peculiar, mais acelerada que a lenta dissolução das estruturas, porém mais lentas que a cena política. Formam uma espécie de quadro intermediário, que ajuda a ligar a longa duração com a cena política. Utilizarei aqui The Eye of the War, um livro brilhante publicado por Antoine Bousquet em 2018 para explorar o impacto da sociotécnica nas transformações no campo de batalha desde o final do século XIX.

Ainda persiste no imaginário público a percepção de que as guerras são decididas em batalhas capitais, onde um grande número de soldados se engaja em um combate acirrado até que um dos lados saia derrotado pelo adversário. Como já foi sugerido, esta imagem está cada vez mais distante do que efetivamente ocorre nos conflitos militares contemporâneos. Isto por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, por conta do maior alcance e letalidade das armas, as tropas ficam muito mais dispersas e ocultas, pois qualquer grande aglomeração de soldados sem cobertura e à vista do inimigo se torna presa fácil da artilharia e da aviação inimiga. O segundo aspecto é que a conduta da guerra se entrelaçou tanto com o conjunto da vida social que, hoje, é cada vez mais difícil separar a dimensão militar da civil do conflito.

O surgimento dos rifles com balas cônicas em propelentes sem fumaça foi um aspecto decisivo na reconfiguração do campo de batalha. Além da lentidão na recarga, um mosquete fazia muita fumaça e tinha um alcance letal de cerca de 75 metros. Pressupunha, portanto, uma zona de contato muito estreita com o adversário. A fumaça dos disparos não só revelava a posição do atirador como recobria o campo de batalha, reduzindo a visibilidade, exigindo uma maior proximidade entre os antagonistas. Os fuzileiros da primeira guerra mundial podiam acertar alvos a 300 metros de distância, com uma cadência de tiro muito superior. Se somarmos a isto o apoio de metralhadoras e da artilharia com um alcance de até 20 quilômetros (fogo indireto), não fica difícil concluir que a distância entre os combatentes aumentou significativamente, assim como a necessidade de ocultamento e de cobertura contra o fogo inimigo. Desde então, o campo de batalha não parou de se transformar, tornando-se cada vez mais vasto e mais disperso, demandando armas com alcance e precisão cada vez maior.

O que deve ser retido é que os novos armamentos favoreceram uma maior dispersão dos combatentes e, ao mesmo tempo, intensificaram a disputa no campo da percepção das forças em conflito. Frente a um fogo inimigo com alta letalidade e precisão, sem cobertura, qualquer grande concentração dos soldados seria dizimada com relativa facilidade. Além disto, pequenas unidades passaram a contar com uma grande capacidade de fogo, tornando-se capazes de gerar uma devastação que, com os armamentos antigos, exigiriam pelo menos um batalhão. Isto esvaziou o campo de batalha e obrigou as tropas a reduzirem a sua visibilidade, usando camuflagens e outras táticas de ocultamento. Ao contrário dos uniformes espalhafatosos que eram a norma pelo menos até o final do século XIX, a orientação dominante passou a ser tentar ficar invisível e, ao mesmo tempo, desenvolver técnicas de sensoriamento remoto para identificar as posições dos combatentes adversários e de seus apoios logísticos.

Dada a capacidade de projetar dano devastador a longa distância, a capacidade de ver sem ser visto pelo adversário se torna uma vantagem decisiva. A Guerra Fria levou ao paroxismo este princípio, colocando no horizonte “uma guerra realmente global, que se manifestaria quase simultaneamente em todo o planeta, resultando em um único e frenético espasmo nuclear” (Bousquet). No entanto, à sombra de um eventual engajamento apocalíptico entre os EUA e a URSS, os grandes embates entre superpotências cederam lugar a conflitos mais descontínuos e espacialmente fragmentados. Conflitos armados geográfica e temporalmente bem definidos (i.é., com começo e fim claramente delimitados) são cada vez mais raros. O que se verifica hoje é uma condição muito mais indeterminada, nem guerra nem paz, marcada por surtos momentâneos de violência que se espalham pelo planeta, baseados em um imbricamento crescente entre os sistemas preditivos de vigilância e os dispositivos de projeção remota de dano.

Precisamente por conta desta característica, Grégoire Chamayou (Teoria do Drone) afirma que estamos testemunhando a substituição do campo de batalha “tradicional” – onde quem ataca também pode ser atacado – pelo princípio da caça, contudo, isto se processa em um cenário em que, a princípio, a presa pode estar em qualquer parte do planeta, sem direito a nenhum santuário. Logo, se olharmos a questão do ponto de vista de quem é caçado, a questão de como funcionam os sistemas de vigilância é prioritária. Apenas mediante a compreensão de como opera o olho da guerra é possível aos caçados permanecerem ocultos, longe da mira dos caçadores. E a melhor forma de fazer isto é infiltrar-se na população, evitando marcadores e comportamentos que podem deflagrar alertas de risco. O paradoxo é que, quanto mais furtivo o “inimigo” se torna, mais se retroalimenta a lógica securitária que tende a despedaçar as liberdades civis e, ao mesmo tempo, abrir um gigantesco mercado colonizado pelas big techs.

 

Fonte: Por Sérgio Amadeu da Silveira, em Outras Palavras/Jornal GGN

 

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