Mudança do clima acelera criação de deserto do tamanho da Inglaterra no Nordeste
O
último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC),
divulgado em 9/8, reforça que o Brasil abriga uma das áreas do mundo onde a
mudança do clima tem provocado efeitos mais drásticos: o Semiárido.
O
relatório aponta que, por causa da mudança do clima, a região — que engloba boa
parte do Nordeste e o norte de Minas Gerais — já tem enfrentado secas mais
intensas e temperaturas mais altas que as habituais.
Essas
condições, aliadas ao avanço do desmatamento na região, tendem a agravar a
desertificação, que já engloba uma área equivalente à da Inglaterra (leia mais
abaixo).
Criado
na ONU e integrado por 195 países, entre os quais o Brasil, o IPCC é o
principal órgão global responsável por organizar o conhecimento científico
sobre as mudanças do clima.
O
documento apresentado nesta segunda (AR6) é o sexto relatório de avaliação
produzido desde a fundação do órgão, em 1988.
• 'Área seca mais densamente povoada'
"O
Nordeste brasileiro é a área seca mais densamente povoada do mundo e é
recorrentemente afetado por extremos climáticos", diz o relatório.
O
IPCC afirma que essas condições devem se agravar: se na década de 2030 o mundo
deve atingir um aumento de 1,5°C em sua temperatura média, em boa parte do
Brasil os dias mais quentes do ano terão um aumento da temperatura até duas
vezes maior.
Em
várias partes do Semiárido, isso significa verões com temperaturas
frequentemente ultrapassando os 40°C.
Hoje,
segundo o IPCC, o mundo já teve um aumento de 1,1°C na temperatura média em
relação aos padrões pré-industriais.
Para
limitar o grau do aquecimento, é preciso que os países reduzam drasticamente as
emissões de gases causadores do efeito estufa — como o gás carbônico, produzido
pelo desmatamento e pela queima de combustíveis fósseis, e o metano, emitido
pelo sistema digestivo de bovinos.
• Morte da vida no solo
Para
o meteorologista e cientista do solo Humberto Barbosa, professor da
Universidade Federal de Alagoas (Ufal), temperaturas extremas põem em xeque a
sobrevivência no Semiárido de micro-organismos que vivem no solo e são cruciais
para a existência das plantas.
Há
dois anos, Barbosa diz ter encontrado temperaturas de até 48°C em solos
degradados no interior de Alagoas.
"A
vegetação não crescia mais ali, independentemente se chovesse 500 mm, 700 mm ou
800 mm. Não fazia mais diferença, pois toda a atividade biológica do solo não
respondia mais", afirma.
Sem
vida no solo, aquela região se tornou desértica, como tem ocorrido em várias
outras partes do Semiárido.
Na
Ufal, Barbosa coordena o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de
Satélites (Lapis), que desde 2012 monitora a desertificação no Semiárido.
Em
2019, o laboratório revelou que 13% de toda a região estava em estágio avançado
de desertificação. Essa área engloba cerca de 127 mil quilômetros quadrados.
"Na
nossa região, naturalmente não haveria um deserto, só que a gente tem hoje um
deserto", ele diz.
Barbosa
explica: segundo a ciência, climas desérticos (ou áridos) são aqueles onde o
índice de chuvas é inferior a 250 mm por ano. Nessas condições, a sobrevivência
de plantas e animais é bastante difícil — daí o aspecto vazio de boa parte das
paisagens desérticas.
Mas
essas condições climáticas não se aplicam a nenhuma região do Brasil, nem mesmo
o Semiárido, que continua a receber entre 300 mm e 800 mm de chuvas ao ano.
Ainda
assim, a mudança do clima e o desmatamento criaram paisagens desérticas na
região.
"O
solo dessas regiões foi perdendo a atividade biológica, embora as chuvas
continuem acima do que se espera para uma região desértica. Esse é o
paradoxo", diz Barbosa.
Ele
afirma que, nesse estágio, é praticamente impossível reverter o fenômeno.
"O custo da recuperação de áreas desertificadas é alto, e no Brasil não
temos capacidade econômica para fazer esse tipo de investimento."
• Maior seca da história
Entre
2012 e 2017, o Semiárido enfrentou a maior seca desde que os níveis de chuva
começaram a ser registrados, em 1850. Essa seca, que é atribuída às mudanças
climáticas, ajudou a expandir as áreas desertificadas.
Barbosa
diz que a pandemia dificultou a realização de viagens para medir o progresso da
desertificação após 2019, mas tudo indica que o fenômeno segue avançando.
A
área já desertificada equivale ao tamanho da Inglaterra, cerca de três vezes o
tamanho do Estado do Rio de Janeiro, ou a 23 vezes a área do Distrito Federal.
Essas terras não são todas contíguas e ocupam diferentes partes do Semiárido.
Enfrentam, ainda, diferentes graus de desertificação, embora em todas o
fenômeno seja considerado praticamente irreversível.
Alguns
dos principais núcleos de desertificação ficam em Gilbués (PI), Irauçuba (CE),
Cabrobó (PE) e no Seridó (RN).
Imagens
de satélite mostram como os núcleos têm crescido nas últimas décadas, enquanto
as áreas verdes que os circundam vão rareando.
No
núcleo de Cabrobó, que ocupa uma vasta área nas duas margens do São Francisco,
as poucas manchas verdes na paisagem se devem a lavouras irrigadas com a água
do rio.
Os
Estados mais impactados pela desertificação são Alagoas (com 32,8% de sua área
total afetada pelo fenômeno), Paraíba (27,7%), Rio Grande do Norte (27,6%),
Pernambuco (20,8%), Bahia (16,3%), Sergipe (14,8%), Ceará (5,3%), Minas Gerais
(2%) e Piauí (1,8%).
• Região mais impactada do Brasil
A
desertificação no Semiárido brasileiro foi citada pelo IPCC em seu relatório
anterior, de 2019, que teve o pesquisador Humberto Barbosa como coordenador de
um capítulo sobre degradação ambiental.
O
relatório apontou que 94% da região semiárida brasileira está sujeita à
desertificação.
"A
região semiárida é a mais impactada (pela mudança do clima) no Brasil, e é a
região onde você tem os índices de desenvolvimento humano mais baixos do
país", afirma Barbosa.
Com
o agravamento das condições climáticas, diz ele, tende a se acelerar o êxodo de
moradores rumo a outras partes do país.
Legenda
do vídeo,
Os
preocupantes sinais que unem frio recorde no Brasil a enchentes e calor pelo
mundo
• O papel do desmatamento
Para
os cientistas, está claro que a desertificação tem sido acentuada pelas
mudanças climáticas e tende a aumentar se as alterações continuarem se
intensificando.
Porém,
a degradação dos solos do Semiárido também se deve a outra ação humana: o
desmatamento na Caatinga, o ecossistema natural da região.
Segundo
Humberto Barbosa, ainda não se sabe quanto da desertificação se deve ao
desmatamento e quanto se deve às mudanças climáticas. "É muito difícil
separar os dois processos."
Quarto
maior bioma do Brasil, abarcando 11% do território nacional, a Caatinga já
perdeu 53,5% de sua cobertura original, segundo o MapBiomas, plataforma que
monitora o uso do solo no país.
O
bioma vem sendo destruído desde os primeiros séculos da colonização do Brasil,
quando grandes áreas de vegetação nativa passaram a ser derrubadas para dar
lugar principalmente a pastagens para bovinos.
A
pecuária, aliás, é apontada com uma das principais causas para a desertificação
no Semiárido.
O
pesquisador Humberto Barbosa explica que, muitas vezes, os bois são criados em
áreas relativamente pequenas, compactando o solo ao pisoteá-lo repetidas vezes.
Com
o tempo, nem mesmo o capim cresce mais ali, e a terra fica totalmente exposta à
radiação do sol. A degradação se completa quando a chuva atinge a terra nua,
levando embora os últimos nutrientes do solo.
Embora
a destruição venha ocorrendo há séculos, mais de um quarto do desmatamento da
Caatinga ocorreu após 1985, segundo o MapBiomas.
E
neste ano, os índices de desmatamento deram um salto preocupante. Segundo o
Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), até 1° de agosto, houve na
Caatinga 2.130 focos de queimadas— o maior número em nove anos e uma alta de
164% em relação ao mesmo período de 2020.
Os
focos se concentram no oeste do bioma, onde a Caatinga se encontra com o
Cerrado na região de fronteira agrícola conhecida como Matopiba (nome formado
pelas iniciais dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Como
em outros biomas, o fogo é geralmente usado na Caatinga para "limpar"
uma área antes do plantio. Mas as chamas acabam degradando o solo e limitam sua
vida útil para a agricultura, estimulando a busca por novas áreas quando ele se
esgota.
• Falta de políticas públicas
Humberto
Barbosa diz que, apesar da gravidade da situação enfrentada pelo Semiárido e da
perspectiva de piora, não há qualquer plano governamental para mapear a
desertificação e combatê-la.
A
última iniciativa do governo federal nesse campo, afirma, foi o Programa de
Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca
(PAN), lançado em 2006, mas descontinuado.
Tampouco
há um sistema nacional para monitorar o desmatamento na Caatinga e orientar
ações de fiscalização e controle — diferentemente do que ocorre na Amazônia,
que conta com os sistemas Prodes e o Deter, baseados em imagens de satélite.
• E o futuro?
Segundo
o relatório do IPCC, sem ações contundentes para conter a mudança do clima, a
Caatinga e outras regiões semiáridas do mundo "vão muito provavelmente
enfrentar um aquecimento em todos os cenários futuros e vão provavelmente
enfrentar um aumento na duração, magnitude e frequência das ondas de
calor".
"De
forma geral, as secas se ampliaram em muitas regiões áridas e semiáridas nas
últimas décadas e devem se intensificar no futuro", diz o texto.
Os
maiores prejudicados pelas mudanças serão as populações locais: segundo o IPCC,
elas tendem a enfrentar oscilações na quantidade e regularidade de água, o que
impactará gravemente sua "segurança alimentar e prosperidade
econômica".
Mata Atlântica mudará mais até 2050 do
que nos últimos 21 mil anos
A
Mata Atlântica brasileira é um dos lugares com maior diversidade biológica do
planeta. Aproximadamente uma em cada 50 espécies de plantas e animais
terrestres vertebrados vive lá — e em nenhum outro lugar.
Estendendo-se
por 3.000 km ao longo de grande parte da costa brasileira e pelo interior até a
Argentina e o Paraguai, sua incrível diversidade vem de um mosaico de
diferentes ecossistemas, incluindo pastagens naturais, florestas tropicais,
florestas antigas adaptadas ao frio do inverno, "florestas nubladas"
montanhosas e enevoadas, e muito mais.
Mas
sua surpreendente biodiversidade está correndo um sério risco: o bioma foi
destruído por vários séculos de desmatamento e mudanças de habitat.
Agora,
as perturbações que estamos causando nos sistemas climáticos da Terra ameaçam,
nas próximas décadas, causar mais rupturas aos ecossistemas da Mata Atlântica
do que qualquer mudança natural em muitos milhares de anos.
Já
restam apenas fragmentos de Mata Atlântica. Somente um quarto da área florestal
remanescente está a mais de 250 metros de um terreno descampado — isso é uma
caminhada de três minutos, pelo asfalto.
Mais
de 80% de sua vegetação natural foi destruída desde que os europeus chegaram ao
Brasil, e alguns ecossistemas da Mata Atlântica têm 50% de chance de entrar em
colapso nos próximos 50 anos.
O
aquecimento global acrescenta outra ameaça.
O
clima da Terra sempre mudou, mas as rupturas neste século provavelmente serão
maiores e acontecerão mais rápido do que qualquer coisa que a humanidade já
testemunhou.
Temperaturas
mais altas e precipitações mais variáveis serão um desafio particular no sul da
Mata Atlântica, onde os ecossistemas compreendem um delicado equilíbrio de
espécies — algumas dos trópicos quentes, outras adaptadas a invernos gelados,
mas quase todas dependentes de umidade constante.
• Estudar o passado para prever o futuro
Como
as mudanças climáticas do século 21 vão afetar o sul da Mata Atlântica?
Tenho
trabalhado com colegas no Reino Unido, Suécia e Brasil para descobrir, e
colocar o próximo meio século de mudanças num contexto de 21 mil anos.
Olhar
para o passado pode parecer uma escolha surpreendente, mas fornece os melhores
— talvez os únicos — dados concretos que temos sobre como os seres vivos reagem
a grandes mudanças climáticas.
Nos
últimos 21 mil anos, as peculiaridades na órbita da Terra levaram nosso planeta
do pico da última Era do Gelo ao período de calor do Holoceno.
Se
pudermos encontrar ecos das condições futuras em milênios passados e desvendar
como as espécies e os ecossistemas responderam a eles, podemos melhorar nossas
previsões sobre o que o futuro nos reserva.
Para
fazer isso, nosso estudo reuniu reconstruções e projeções de climas passados e
futuros, dados sobre 30 espécies-chave de florestas e pastagens e várias
dezenas de locais onde mudanças anteriores no clima e na vegetação foram
registradas (como pólen fossilizado enterrado em camadas de lama do pântano).
O
que descobrimos é profundamente preocupante.
Como
era de se esperar, nossos dados mostraram que o sul do Brasil tem esquentado
gradualmente desde a última Era do Gelo.
Quase
toda a região tinha um tipo de clima semelhante às áreas montanhosas de hoje há
21 mil anos — temperado com verões quentes —, mas essa zona climática diminuiu
com o tempo, e as planícies passaram a ter um tipo de clima mais quente.
Enquanto
isso, uma zona de clima de floresta tropical permaneceu restrita à costa norte
da região, avançando e recuando ao longo dos anos.
Mas,
sem o controle das emissões de carbono, cada tipo de clima mudará mais nos
próximos 50 anos do que em qualquer um dos períodos nos últimos 3 mil anos que
analisamos.
O
aumento das temperaturas globais vai fazer com que o tipo de clima mais quente
das planícies se expanda ainda mais e mais rápido do que se expandiu em
milênios.
A
vasta expansão do clima de floresta tropical pode fazer com que ele surja em
áreas que não existia desde antes da última Era do Gelo.
E,
expulsas das áreas que ocuparam desde o início do nosso estudo, as condições
mais frias das montanhas vão encolher para sua menor extensão em mais de 21 mil
anos.
Mas
o que essas mudanças drásticas no clima significarão para a Mata Atlântica em
si?
Uma
coisa é certa, não vai ser simples. Espécies e ecossistemas mudam de maneira
confusa ao longo do tempo.
Surpresas
ecológicas são comuns, especialmente quando o clima é muito diferente do atual
— as espécies podem prosperar inesperadamente em condições que atualmente
evitam, ou podem formar grupos diferentes de todos os que conhecemos hoje.
Nosso
estudo encontrou várias evidências de mudanças na composição dos ecossistemas
do sul da Mata Atlântica ao longo do tempo, assim como dois períodos com
grandes extensões de comunidades vegetais curiosas e inesperadas. Eles ocorrem
nos momentos de maior mudança climática.
O
primeiro aconteceu há cerca de 12 mil anos, quando o mundo saiu do último
período glacial e entrou no Holoceno, mais quente. O segundo pode acontecer
durante a minha vida.
Na
década de 2070, as terras ao norte e ao leste de nossa região de estudo podem
perder espécies adaptadas ao frio que abrigou por 21 mil anos ou mais — como a
antiga e icônica Araucária, um fóssil vivo —, a serem substituídas por árvores
tropicais mais tolerantes ao calor em um arranjo que é raro no presente.
Nossos
modelos sugerem que mais de 100.000 km² do sul da Mata Atlântica passariam por
mudanças em sua composição de espécies, impulsionadas pelo clima, no século 21
de altas emissões do que em qualquer outro momento nos últimos 21 mil anos.
Preocupantemente,
encontramos indícios de que essas mudanças já podem estar em andamento, com as
comunidades vegetais adaptadas ao calor começando a empurrar suas vizinhas
adaptadas ao frio morro acima.
Nosso
estudo fornece uma maneira útil de compreender a Mata Atlântica brasileira — o
que aconteceu com ela antes, assim como o que pode acontecer a seguir.
Mas
nossos resultados também revelam as limitações de nos basear em cenários
passados — mesmo ao longo de dezenas de milhares de anos — para compreender os
efeitos do nosso futuro climático radicalmente alterado pelo homem.
Apesar
dos séculos de devastação causada pelo desmatamento, parece que o teste mais
difícil para o sul da Mata Atlântica ainda está por vir.
Fonte:
BBC News Brasil
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