Itália: perfil do país que combina história romana, catolicismo e crises políticas
Pegue
os trabalhos artísticos de Botticelli, Leonardo da Vinci, Michelangelo,
Tintoretto e Caravaggio, as óperas de Verdi e Puccini, o cinema de Federico
Fellini. Adicione a arquitetura de Veneza, Florença e Roma, e você tem apenas
uma fração dos tesouros produzidos na Itália ao longo de séculos. Enquanto o
país é renomado por esses e outros encantos, porém, também é notório por sua
vida política de estabilidade precária.
Unificado
apenas no século 19, a Itália viu a ascensão do fascismo na década de 1920. Em
1922, depois da famosa Marcha em Roma com seus seguidores, Benito Mussolini
assumiu o cargo de primeiro-ministro italiano. Ficou no poder até 1943,
compondo uma aliança com a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial e sendo
executado por militantes antifascistas em 1945.
Desde
o final da Segunda Guerra Mundial, a Itália teve dezenas de diferentes
governos, num sinal da instabilidade que se tornou característica da política
do país.
A
política italiana, porém, passou por um abalo sísmico no começo dos anos 1990,
quando a operação Mãos Limpas expôs a corrupção nos mais altos níveis da
política e de grandes empresas. Vários ex-primeiros-ministros foram implicados,
e milhares de homens de negócios e políticos foram investigados.
Houve
grandes esperanças na época de que o escândalo levaria a uma reforma radical da
cultura política italiana. Essas esperanças, no entanto, desapareceram quando
as velhas estruturas foram substituídas por um uma nova cena política dominada
pelo empresário multimilionário Silvio Berlusconi, que também acabou envolvido
em escândalos e casos de corrupção.
Mais
recentemente, partidos políticos populistas chegaram ao poder e formaram uma
coalizão governamental em 2018. A coalizão foi desfeita em 2019, quando o poder
voltou às mãos de composições de centro.
Devido
a seu passado ligado ao Império Romano e à beleza de suas cidades
renascentistas, a Itália é um dos países mais visitados do mundo, com
monumentos conhecidos internacionalmente, como o Coliseu romano. Roma também é
o centro mundial do catolicismo: a capital italiana abriga o Vaticano, Estado independente
que representa a Igreja Católica e onde vive o papa.
FATOS
• República Italiana
Capital:
Roma
• População61 milhões
• Área301.338 quilômetros quadrados
• Principal línguaItaliano
• Principal religiãoCristianismo
• Expectativa de vida81 anos (homem), 86
anos (mulher)
• MoedaEuro
Fonte:
ONU, Banco Mundial
LÍDERES
• Presidente: Sergio Mattarella
O
juiz constitucionalista e político veterano de centro-esquerda Sergio
Mattarella foi eleito presidente pelo Parlamento italiano em 2015. Sucedeu
Giorgio Napolitano, que deixou o cargo devido a sua idade avançada.
Mattarella
era pouco conhecido do grande público, mas bastante respeitado nos círculos
políticos, depois de uma carreira como parlamentar de 25 anos e vários momentos
como ministros de governos tanto de esquerda como de direita.
• Primeira-ministra: Giorgia Meloni
Líder
do partido de direita Irmãos da Itália vencedor das eleições legislaticas de
setembro de 2022, Giorgia Meloni assumiu o importante cargo de
primeira-ministra. Na Itália, o primeiro-ministro é nomeado pelo presidente da
República, com a aprovação do Parlamento. É ele o chefe de Governo, quem nomeia
e preside o Conselho de Ministros.
O
partido de Meloni consolidou-se como a maior força política italiana, obtendo
26% dos votos válidos.
A
aliança de direita comandada pelo Irmãos da Itália conseguiu a maioria na
Câmara dos Deputados e no Senado. A coalizão é formada pelos aliados de
extrema-direita do partido Liga, de Matteo Salvini, e Força Itália, do
conservador Silvio Berlusconi. O Partido Democrático (PD), principal formação
de esquerda, obteve 19% dos votos.
Aos
45 anos, Meloni se tornou a primeira mulher a governar a Itália. Durante a
longa campanha ela foi a maior opositora do então primeiro-ministro Mario
Draghi que teve seu governo assolado por alta inflação, guerra e as restrições
durante a pandemia. Meloni prometeu cortes de impostos além de uma política
familiar visando a aumentar a taxa de natalidade em um dos países com mais
idosos no mundo.
Ela
substituiu o economista e ex-presidente do Banco da Itália, Mario Draghi que
tinha formado um governo de unidade nacional em fevereiro de 2021 para liderar
o país em sua tentativa de colocar um fim à crise da covid-19.
Apelidado
de "Super Mario", Draghi é considerado por muitos como responsável
pela sobrevivência do euro depois da crise da dívida da zona do euro, durante o
período entre 2011 e 2019, quando ele foi presidente do Banco Central europeu.
Ele recebeu o apoio de todos os grande partidos no Parlamento para implementar
seu plano de recuperação econômica.
MÍDIA
A
mistura italiana de mídia com política sempre gerou manchetes de jornais tanto
no país como no exterior, com a preocupação sempre focada na concentração da
propriedade nas mãos de um homem - o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi.
O
império Mediaset de Berlusconi é dono das maiores estações de televisão
privadas da Itália, e a rede pública, RAI, foi tradicionalmente sujeita a
influência política. Portanto, quando Berlusconi era primeiro-ministro, ele
pôde exercer grande controle sobre tanto a mídia privada como a pública.
A
RAI e a Mediaset dominam o mercado de TV italiano. São potencialmente
ferramentas políticas poderosas, especialmente considerando que 80% da
população consome TV para sua dose diária de informação - o maior percentual
entre países da União Europeia.
RELAÇÕES
COM O BRASIL
Brasil
e Itália iniciaram seus laços já no século 19, assim que a Itália foi unificada
e tornou-se um país. Em 1861, o governo brasileiro reconheceu o Reino da
Itália, e já em 1870 começou a onda imigratória italiana para o Brasil.
A
chegada de italianos ao território brasileiro teve grande impacto na formação
da sociedade local, especialmente em São Paulo. Segundo o governo brasileiro,
há cerca de 30 milhões de brasileiros com ascendência italiana.
Apesar
da aproximação ideológica entre o Estado Novo (1937-45) e o regime fascista de
Benito Mussolini, o Brasil declarou guerra à Alemanha nazista e sua aliada
Itália. Tropas brasileiras lutaram em território italiano contra os alemães em
1944, mesmo ano em que as relações diplomáticas entre Brasil e o governo
italiano pós-Mussolini foram restabelecidas.
Os
dois países mantiveram uma relação próxima desde então, reafirmando seus laços
culturais históricos. Muitos brasileiros escolheram a Itália como sua nova casa
- segundo o Itamaraty, 100 mil brasileiros vivem no país. O comércio entre
Brasil e Itália somou cerca de US$ 9 bilhões em 2019.
LINHA
DO TEMPO
Importantes
datas na história da Itália:
476
- Queda de Roma marca o fim do Império Romano do Ocidente.
1861
- A Itália torna-se um Estado nacional sob o rei Victor Emmanuel II.
1915
- A Itália entra na Primeira Guerra Mundial do lado dos chamados
"aliados".
1922
- O líder fascistas Benito Mussolini forma um novo governo e coloca o país sob
uma ditadura fascista.
1935
- A Itália invade a Etiópia
1936
- Mussolini forma uma aliança com a Alemanha nazista
1940-45
- A Itália luta na Segunda Guerra Mundial ao lado da Alemanha. Invadida pelos
aliados em 1943, assina um armistício. Em 1945, Mussolini é capturado e
executado por opositores ao final da guerra.
1948
- Nova Constituição. Os democrata-cristãos vencem as eleições.
1951
- A Itália entra na Comunidade Europeia de Carvão e Aço, que daria origem à
Comunidade Europeia.
Anos
1970 - A Itália vive uma década de violência política da parte de movimentos de
esquerda e de direita.
Anos
1980 - A economia obtém significativos avanços.
1994
- O magnata Silvio Berlusconi forma o primeiro governo de direita depois que o
escândalo exposto pela operação "Mãos Limpas" abala a elite política
anterior.
2002
- O euro, moeda única da União Europeia, substitui a lira como moeda italiana.
2001
- No primeiro referendo constitucional desde 1946, a população resolve conceder
maior autonomia às regiões do país, na determinação de sua política fiscal, na
educação e políticas de meio ambiente.
2022
- Giorgia Meloni se torna a primeira mulher a ocupar o cargo de
primeira-ministra. Ela lidera a maior coalização de direita a governar o país
desde 1945.
O promotor com a cabeça a prêmio pela
mais poderosa máfia da Itália
O
principal alvo da máfia italiana só nos conta onde podemos encontrá-lo 20
minutos antes da entrevista.
O
procurador Nicola Gratteri, que lidera a luta do país contra o crime
organizado, aprendeu a viver em perigo constante. Se ele avisasse com muita
antecedência, ficaria exposto a riscos. Somos instruídos a esperar por ele fora
do tribunal, na região sul da Calábria, na Itália. Ele está na região para
supervisionar o maior julgamento do tipo desde os anos 1980. Mais de 330
suspeitos depuseram e 70 deles já foram condenados.
Gratteri
surge repentinamente, rodeado por cinco carros de polícia que compõem a sua
escolta. Nós agradecemos a ele, algumas vezes, pela sua disposição de nos
receber e falar conosco. "Pare de me agradecer e vamos logo com
isso", apressa-se ele. "Não há nada que eu odeie mais do que perder
tempo."
Gratteri
está jurado de morte pela máfia mais poderosa da Itália, a 'Ndrangheta. Ele
dedicou toda a sua carreira a combater o grupo e não é muito afeito a
cortesias.
Ele
decide nos levar de carro até o seu escritório, a 40 minutos de distância. Lá,
ele estará mais à vontade para falar. Entramos no seu carro à prova de balas e
assim começa o que talvez seja o deslocamento mais perigoso da Itália.
"Vivo com este nível de segurança desde 1989, quando atiraram na casa da
minha noiva e alguém telefonou para ela durante a noite para dizer que ela
estava se casando com um homem morto", ele conta. "Tudo aumentou até
atingir este nível de controle sufocante." E não há alternativa, se nos
lembrarmos do que aconteceu 30 anos atrás. Em 1992, o procurador Giovanni
Falcone foi atingido por uma bomba instalada sob o piso de uma rodovia perto de
Palermo pela máfia siciliana Cosa Nostra.
Falcone,
sua esposa e três policiais morreram na ocasião, enquanto seu colega Paolo
Borsellino foi assassinado por um carro-bomba dois meses depois. Os crimes — e
as dolorosas imagens da rodovia semidestruída no local do ataque a Falcone —
ainda são considerados pelos italianos um momento de definição na sua história
moderna. Os magistrados são respeitados pelo seu heroísmo e a brutalidade dos
assassinatos ainda é um forte símbolo da capacidade da máfia de praticar o
terror.
Com
os olhos na estrada, Gratteri conta que se lembra com frequência dos juízes
assassinados — e de como eles também eram alvos em movimento, enquanto
atravessavam outra parte do país dominada pelo crime organizado. "Converso
frequentemente com a morte porque você precisa racionalizar o medo para seguir
em frente", afirma ele. "Caso contrário, não poderia fazer este
trabalho."
Aceleramos
para atravessar o exuberante e acidentado pé da bota italiana, bastião da
'Ndrangheta desde as suas origens, no século 19. O sindicato do crime é
centralizado em clãs familiares, chamados de 'ndrine. Esses clãs controlavam
tradicionalmente as aldeias no topo das montanhas calabresas. Os laços
sanguíneos forjaram sua lealdade duradoura.
As
máfias Cosa Nostra, da Sicília, e Camorra, da região de Nápoles, são mais
conhecidas internacionalmente. Parte dessa fama se deve aos dramáticos ataques
com bombas, mas ambas foram enfraquecidas pela implacável perseguição da
polícia. Por isso, a 'Ndrangheta cresceu no seu lugar e, hoje, é a máfia mais
poderosa da Itália. Seus ramos estão em todo o mundo, da América do Sul até a
Austrália, com ganhos anuais estimados de cerca de US$ 60 bilhões (cerca de R$
306 bilhões). Sua moeda é a cocaína. O grupo domina o mercado global e
acredita-se que ele controle atualmente até 80% do comércio da droga na Europa.
A maior parte da cocaína passa pelo porto de contêineres mais movimentado da
Itália, o enorme Gioia Tauro, no sul da Calábria. Dali, uma parte da droga
segue para o mercado italiano e o restante passa pelo porto em direção ao
leste, até os Bálcãs e o mar Negro. Também já foi interceptado equipamento
militar destinado à Rússia.
Nós
observamos enquanto um contêiner recém-chegado do Equador trazendo bananas é
inspecionado, primeiro por cães farejadores e, em seguida, por funcionários da
Guardia di Finanza, o esquadrão contra crimes financeiros, que abre algumas
caixas para examinar os cachos de frutas. Este embarque está limpo, mas nem
sempre é assim. A quantidade de cocaína apreendida no porto quase triplicou nos
dois últimos anos. Uma recente operação policial concentrou-se em trabalhadores
portuários suspeitos de envolvimento em uma enorme rede de contrabando da
'Ndrangheta. Foram 35 presos e 7 toneladas de cocaína apreendidas, com valor de
varejo de US$ 1,4 bilhão (cerca de R$ 7,15 bilhões).
Recebemos
uma rara autorização para observar o volume dessas drogas, guardadas em uma
cela trancada. São centenas de pacotes firmemente embalados que são
fotografados e analisados em seguida. Um pouco do pó branco é retirado e
colocado em um tubo contendo uma solução líquida. O tubo é inserido em kits de
teste que parecem coisa da pandemia — mas detectando crime desta vez, não
covid. Depois de alguns segundos, surge uma linha vermelha. O resultado é
positivo, com 98% de pureza.
A
cocaína apreendida pela Guarda di Finanza no porto de Gioia Tauro nos últimos
dois anos representa mais da metade de todo o volume das últimas duas décadas.
O
contrabando da 'Ndrangheta pode estar aumentando, mas a tecnologia policial
também, com forças colaborando além das fronteiras. Uma enorme operação
internacional em 2019, conduzida por policiais da Itália, Alemanha, Suíça e
Bulgária, levou à prisão de 335 suspeitos, incluindo advogados, contadores e um
ex-parlamentar. Todos faziam parte ou mantinham relações com a família Mancuso,
um dos cerca de 150 clãs implacáveis que compõem a 'Ndrangheta. Foi o maior
ataque ao grupo na sua história e, como resultado, teve início o chamado
"megajulgamento" da Calábria, dois anos atrás.
Uma
central telefônica nos arredores da cidade de Lamezia Terme foi transformada em
um salão com espaço suficiente para receber cerca de 600 advogados e 900
testemunhas. Muitos testemunharam por chamada de vídeo. As acusações incluíram
assassinato, extorsão e tráfico de drogas. Mais de 70 pessoas já foram
condenadas.
Observando
a enorme sala, com celas instaladas em um dos lados, a sensação é de que o
simbolismo visual aqui é importante — um ambiente projetado para mostrar aos
italianos que o Estado está combatendo a 'Ndrangheta e que os mafiosos não são
inatingíveis. Este é o maior julgamento da carreira de Nicola Gratteri.
Enquanto
somos levados rapidamente para o seu escritório, com seus guarda-costas sempre
um passo atrás dele, o procurador conta que as prisões eliminaram 70% do
controle da 'Ndrangheta na província de Vibo Valentia, um dos seus redutos.
"Se todos eles forem condenados, significará espaço para a comunidade
respirar", afirma ele.
Mas
os Mancuso são apenas uma das famílias da 'Ndrangheta. Embora sejam poderosos,
este não é o início do seu fim. "Assim que terminar este julgamento, vou
seguir para o próximo", afirma Gratteri.
Ele
dedicou — e até sacrificou — sua vida em prol desta luta. "Não tenho
vida", ele conta. "Para ir a um café, preciso parar e discutir com
meus guarda-costas. Alguém entra para pagar e depois entramos e tomamos o
café." "Precisamos parar para decidir onde usar o banheiro", ele
conta. "Não vou ao cinema, nem ao restaurante, há 25 anos. Meu barbeiro
vem ao escritório quando preciso cortar o cabelo. Quase não vejo minha família.
Mas, na minha cabeça, sou um homem livre."
Pergunto
se vale a pena. Ele suspira profundamente. "Vale a pena se você acreditar
nisso — e eu acredito", responde ele. "Acredito que estou fazendo
algo importante. Existem milhares de pessoas que acreditam em mim e para quem
sou o último recurso, a última esperança de mudança. Não posso
desapontá-los."
Sara
Scarpulla e seu marido Francesco estão entre essas pessoas. Em 2018, eles
suportaram o inimaginável, enterrando seu único filho, Matteo, morto por uma
bomba instalada sob o chassi do seu carro. Acredita-se que os assassinos
pertencessem aos Mancuso — o clã da 'Ndrangheta agora em julgamento — que
haviam perseguido Matteo e Francesco depois de uma prolongada discussão sobre
os limites entre suas terras.
No
cemitério da cidade de Limbadi, a poucos metros do túmulo de Matteo, fica o
mausoléu da família Mancuso. A vítima e os parentes dos seus assassinos
repousam quase lado a lado em uma região mergulhada em disputas sanguinárias.
Na
sala de estar do casal, com as paredes decoradas com fotografias gigantes de
Matteo, Sara conta que ele era "a alegria da vida — educado e
extraordinário. Tenho orgulho de ter sido a mãe de Matteo e de tê-lo tido como
filho."
Sentado
ao lado dela, Francesco, que estava no carro com Matteo na ocasião, bate os
dedos distraidamente sobre a mesa, sem poder fazer nada enquanto vê sua esposa
não conseguir mais reter as lágrimas. "Nós não temos mais vida",
afirma ela. "Às vezes, eu pergunto a Deus: 'onde você estava quando Matteo
estava morrendo?' E a namorada de Matteo me responde: 'ele estava ali, levando
Matteo com ele'."
Sara
conta que Limbadi é dominada pela 'Ndrangheta. Eles controlam as empresas
locais, mantêm os mecanismos de poder e inspiram o medo com seu comportamento
violento. Ela relembra que, quando sua disputa de terra com eles aumentou, eles
matavam os animais da família e atiravam galinhas degoladas sobre o teto da sua
casa. "Enquanto a mentalidade das pessoas não mudar, as coisas nunca
mudarão", acrescenta ela. "Precisamos plantar a semente da mudança,
como fazem o procurador Gratteri e todos os procuradores como ele. Enquanto não
seguirmos os passos daquelas pessoas, estaremos presos aqui com a 'Ndrangheta
no poder."
Subitamente,
surge um olhar desafiador. "Preciso lutar, ir para a linha de frente e
gritar nas ruas desta cidade: 'a 'Ndrangheta precisa sair daqui!' Esta não é a
cidade da 'Ndrangheta. É a cidade de Matteo." Mas sair das garras
sufocantes da 'Ndrangheta exigirá mais que uma mudança de mentalidade. Será
preciso que os mafiosos se voltem contra a máfia, quebrando a omertà, o código
de silêncio.
Os
delatores em um grupo baseado em laços sanguíneos, em que a deslealdade
significa trair sua própria família, são poucos e preciosos. Nós encontramos
um: Luigi Bonaventura está testemunhando no julgamento dos Mancuso. Ele
concorda em nos receber no norte da Itália, não muito longe do local onde ele
mora, mas sem revelar exatamente onde fica. Seu testemunho fornece uma rara
visão dos trabalhos internos dos mafiosos e como funciona sua doutrinação.
Bonaventura
começou a colaborar com a polícia 16 anos atrás. Ele conta que o objetivo era
dar aos seus filhos a liberdade que ele nunca teve. Desde então, sua segurança
está a cargo do programa de proteção a testemunhas. Ele usa seu próprio nome,
mas cobre seu rosto com um capuz, para não ser reconhecido pelas pessoas que
delatou. "A 'Ndrangheta é uma tribo", ele conta. "Se você nascer
naquela família enquanto ela estiver em guerra, você não pode fazer nada, a não
ser crescer sendo incitado ao ódio e à violência. As palavras repetidas eram
sempre as mesmas: 'matar, matar, matar'."
Bonaventura
se lembra de ter sido criado como "criança soldado". Ele recebeu uma
pistola com 10 anos de idade e brincava com armas de verdade como se fossem
brinquedos.
Treinado
para ser o que ele chama de "matador adormecido", Bonaventura foi
convocado para lutar aos 19 anos de idade, quando sua família entrou em guerra
com outra. "Eu me envolvi em cinco assassinatos", ele conta.
"Três eu presenciei e dois eu realizei." Bonaventura afirma que sua
colaboração levou à prisão ou condenação de mais de 500 suspeitos da
'Ndrangheta. Eu pergunto qual impacto ele acredita que o megajulgamento trará
para a máfia. "A 'Ndrangheta não tem apenas um chefe, não é a Cosa Nostra
da Sicília, com um chefe dos chefes que, se cair, traz tudo abaixo com
ele", responde Bonaventura. "A 'Ndrangheta é um monstro, uma hidra de
múltiplas cabeças", prossegue ele. "Se uma for cortada, existem
muitas outras. É questão de tempo, talvez 10 anos, mas o clã Mancuso irá se
reagrupar e voltar mais forte do que nunca."
É
uma previsão pessimista. Mas, na Calábria, as associações antimáfia estão
trabalhando para educar a próxima geração e garantir que os jovens italianos se
afastem das garras do crime organizado. Os tentáculos da máfia são tão longos,
infiltrados tão profundamente na sociedade italiana, que até Nicola Gratteri, a
principal autoridade sobre a 'Ndrangheta do país, afirma que a Itália nunca
ficará livre do seu domínio. "Ela pode ser reduzida em grande parte, mas
seria necessária uma revolução para combatê-la", afirma ele.
"Precisamos de um sistema ainda mais forte — e, acima de tudo, precisamos
investir em educação e cultura."
Gratteri
afirma que isso fez a diferença para ele quando criança, enquanto muitos de seus
amigos de infância eram ludibriados pela 'Ndrangheta. "Se eu tivesse
nascido a 100 metros de distância, hoje seria um chefe da máfia", ele
conta. "Mas tive sorte porque nasci em uma família de pessoas honestas.
Muitos dos meus colegas de escola foram mortos com tiros de espingarda de cano
curto. Outros, fiz com que fossem presos por porte de armas ou drogas."
Ele
se lembra de ter se deslocado até Miami, nos Estados Unidos, quando um antigo
amigo de escola foi preso com 800 kg de cocaína no seu navio. "Ele me
disse que havia arruinado sua vida", ele conta. "Eu disse para ele:
'veja, você ainda pode mudar as coisas, existe uma chance de cooperar'. Mas ele
se recusou."
Nesta
batalha pela alma italiana, pergunto qual lado está ganhando: se a máfia ou o
Estado. Gratteri sorri e responde: "é um empate. Para ganhar, precisamos
mudar as regras do jogo, com um sistema prisional suficientemente forte para
desencorajar os criminosos." Herói de muitos e inimigo de alguns, Gratteri
parece uma figura um tanto isolada, sem medo de entrar em brigas e desvendar
tudo, ao máximo possível. Será que, com 64 anos de idade, ele tem algum
arrependimento?
"Não",
responde ele. "Talvez eu pudesse ter feito mais — até o que fosse
humanamente impossível. Tenho o melhor trabalho do mundo e vou continuar
enquanto puder." Gratteri faz uma pausa, organizando seus pensamentos.
"Tudo na vida tem um preço, não é? Para ter tido uma vida normal, eu
precisaria ter ido mais devagar. Talvez eu precisasse ter trabalhado menos. Mas
eu teria me sentido um covarde. E viver como um covarde não faz sentido para
mim", afirma ele.
Com
nosso tempo quase no final, Gratteri verifica o telefone. "Guarde tudo
rápido e leve suas bolsas", instrui ele. "Preciso trancar aqui e
sair." Com um rápido aperto de mãos, o lutador contra a máfia sai para sua
próxima batalha.
Fonte:
BBC News Mundo
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