quinta-feira, 9 de março de 2023


 Como seu intestino pode ajudar seu cérebro

O intestino de um paciente pode não ser o lugar mais óbvio para buscar as origens da depressão. Mas esse foi o palpite do químico britânico George Porter Phillips no início do século 20.

Enquanto percorria as enfermarias do notório Bethlem Royal Hospital, em Londres, Phillips observara que seus pacientes com melancolia frequentemente sofriam de constipação severa, junto com outros sinais de "entupimento geral dos processos metabólicos" - incluindo unhas quebradiças, cabelos sem lustro e tez amarelada.

Inicialmente, poderíamos pensar que esses problemas fisiológicos foram causados pela depressão, mas e se o contrário fosse verdadeiro? Phillips se perguntou, então, se seria possível aliviar a depressão tratando o intestino.

Para provar essa hipótese, ele alimentou os pacientes com uma dieta de baixo teor calórico, sem carnes, exceto peixes. Também lhes ofereceu uma bebida láctea fermentada conhecida como kefir, que contém as bactérias lactobacillus, um micróbio "amigável" que já era conhecido por facilitar a digestão.

Surpreendentemente, funcionou. Dos 18 pacientes testados por Phillips, 11 foram curados completamente. Outros dois apresentaram melhora significativa.

Foi a prova que faltava de que nossas bactérias intestinais podem ter uma profunda influência sobre nosso bem-estar mental.

        Poder da flora intestinal sob análise

Uma série da BBC Future analisou várias afirmações sobre o poder da nossa flora intestinal de causar cura ou dano. Mas a ligação entre esses micro-organismos e nossa saúde mental talvez seja a mais difícil de ser observada. Como esses seres microscópicos que se alimentam de restos da nossa digestão poderiam afetar nosso cérebro?

Algumas dessas descobertas foram superestimadas. Mas mais de um século depois do experimento inicial de Phillips, a relação entre intestino-cérebro é consideravelmente sólida.

"A influência dos micróbios em nossa saúde mental não está mais em discussão", diz Jane Allyson Foster, cujo laboratório na Universidade McMaster, no Canadá, lidera pesquisas nessa área. E isso significa que podemos curar o cérebro através de nossa barriga. "Há o potencial tanto para o desenvolvimento de novos tratamentos quanto para a medicina de precisão."

Foster destaca que um intestino não saudável é apenas uma das muitas possíveis causas de doença mental. Em outras palavras, apenas uma parcela dos pacientes vai responder bem aos novos tratamentos "psicobióticos". Mas para aqueles que sofrem de um desequilíbrio em suas bactérias intestinais, as novas terapias podem trazer um alívio muito necessário.

Apesar dos primeiros estudos, incluindo o de Phillips, a ideia de que o intestino pudesse influenciar nossa saúde mental caiu em desgraça durante grande parte do século 20, e fortes evidências para esse elo misterioso só emergiram novamente nas últimas duas décadas.

Um dos mais impressionantes experimentos modernos foi feito por cientistas da Universidade de Kyushu, no Japão, em 2004.

Eles demostraram que camundongos "sem micro-organismos" - criados em condições esterilizadas para que não tivessem micróbios em seus corpos - mostraram maiores flutuações nos hormônios corticosterona e ACTH, ambos conhecidos por refletirem os níveis de estresse. Isso sugeriu que as bactérias intestinais de camundongos saudáveis estavam, de alguma forma, moldando seu perfil hormonal.

Os pesquisadores então deram a um grupo de camundongos sem germes bactérias lactobacillus - a classe de bactérias "amigáveis" que Phillips também usou em seus pacientes melancólicos. Embora esses ratos ainda apresentassem uma resposta mais alta ao estresse do que os ratos que nunca haviam sido criados livres de germes, suas respostas ao estresse eram menos pronunciadas do que os ratos sem nenhum micróbio no intestino.

Existem até alguns sinais de que comportamentos depressivos podem ser transmitidos através das espécies - do humano ao camundongo - devido aos micróbios no intestino.

Em um outro estudo, pesquisadores chineses de Chongqing coletaram uma amostra da flora intestinal de pacientes com Transtorno Depressivo Maior e a inseriu em camundongos sem germes.

Posteriormente, verificaram que esses camundongos desistiam mais rápido durante um exercício de natação "forçada" - um comportamento que muitas vezes é considerado análogo à letargia e ao desalento, sintomas típicos da depressão. E quando os ratos foram colocados em uma caixa, gastaram menos tempo explorando as áreas centrais e ficaram mais perto da borda, onde se sentiam mais seguros.

"O que surpreende é que os animais que receberam a flora intestinal 'depressiva' se comportaram de forma 'depressiva'", explica Julio Licinio, da New York Upstate Medical University, que foi coautor do artigo. "Se você mudar a flora intestinal, você muda o comportamento."

Só podemos tirar algumas conclusões desses estudos em animais, é claro - mas elas são respaldadas por estudos epidemiológicos que analisam um grande número de participantes humanos (o mais recente foi publicado em 4 de fevereiro de 2019 ). Essas pesquisas mostraram de maneira consistente que variações na flora intestinal coincidem várias doenças mentais, incluindo depressão e ansiedade.

Nenhuma espécie isolada parece ser responsável por esses efeitos; muito mais importante seria a proporção geral das diferentes famílias de micróbios. Sendo assim, as floras intestinais de pessoas deprimidas e ansiosas indicam menos diversidade do que a dos indivíduos sem problemas de saúde mental.

Surpreendentemente, um dos trabalhos recentes de Licinio revelou que a esquizofrenia está associada a uma flora intestinal empobrecida. Quando amostras de pacientes que sofrem do transtorno foram implantadas em camundongos livres de germes, o pesquisador pôde verificar mudanças características na atividade cerebral que são marca registrada do distúrbio.

        Explicações biológicas

Esses efeitos podem surgir de muitas formas.

Certas espécies de micróbios intestinais podem proteger a parede intestinal, ajudando a manter sua membrana mucosa que impede que o conteúdo seja derramado na corrente sanguínea. Sem essa barreira, você pode sofrer de um "intestino poroso", síndrome que desencadeia, entre outras coisas, a liberação de citocinas pró-inflamatórias, proteínas que aumentam o fluxo sanguíneo ao redor dos locais de infecção e regulam a resposta imune do corpo.

Embora essa reação seja crucial para combater a infecção, essas citocinas também podem levar ao mau humor e à letargia. É por isso que muitas vezes nos sentimos cansados quando estamos doentes - e a curto prazo, essa reação nos ajuda a poupar a energia de que o nosso corpo necessita para encontrar a infecção. Mas a longo prazo, pode levar à depressão.

Os micróbios do intestino também influenciam a forma como digerimos e metabolizamos os precursores de neurotransmissores importantes, como a serotonina e a dopamina. Nossa flora intestinal tem até uma linha direta de comunicação com o cérebro, através do nervo vago (ou pneumogástrico), que possui receptores perto do revestimento intestinal que permitem controlar a nossa digestão. Os micróbios no intestino podem, portanto, liberar mensageiros químicos que alteram a resposta do nervo vago - e, consequentemente, a atividade do cérebro.

"Especificamente no intestino, há muitas oportunidades para as bactérias se comunicarem com os sistemas hospedeiros, incluindo o sistema nervoso", diz Foster. "É um espaço muito dinâmico, interativo e rico".

Mas não se trata de uma via de mão única. Assim, a atividade cerebral também pode influenciar a composição da flora intestinal. O estresse pode, por si só, aumentar a inflamação, por exemplo, o que afetaria os micróbios em nosso intestino. O resultado seria um ciclo vicioso.

        Novos caminhos

Foster diz que a pesquisa neste campo está acelerando rapidamente, conduzida por cientistas ligados a universidades e empresas.

Em última análise, esses pesquisadores esperam que suas descobertas levem a um novo tipo de tratamento para doenças como a depressão.

Os antidepressivos existentes hoje funcionam alterando o equilíbrio de substâncias químicas como a serotonina no cérebro, mas não são eficazes para todos os pacientes: apenas dois em cada dez que tomam antidepressivos apresentam sinais de melhora, além do efeito placebo. E, embora ajudem muitos pacientes, terapias da fala, como a terapia cognitivo-comportamental, são igualmente imprevisíveis. Como resultado, muitos pacientes não são tratados ou lutam para encontrar um tratamento adequado.

Algumas tentativas - como o estudo de Phillips em 1910 - alimentaram pacientes com bebidas fermentadas, como o kefir, que podem introduzir no intestino bactérias e proteínas que são conhecidas por serem benéficas à digestão, ou fibras solúveis conhecidas como "prebióticos", que ajudariam a refazer nossa flora intestinal. Infelizmente, muitos desses estudos tendem a ser pequenos, com poucos participantes, e seus resultados foram ambivalentes: em alguns estudos, as intervenções reduziram os sintomas com sucesso; em outros estudos, provaram não ser melhores do que um tratamento com placebo.

Uma explicação, segundo Foster, é que os estudos fracassados não se focaram em pacientes que se beneficiariam mais com esse tipo de tratamento. Afinal de contas, há muitas causas de depressão, e embora problemas na flora intestinal possam ser a causa subjacente da depressão ou ansiedade de algumas pessoas, em outros, o gatilho pode ser bem diferente. Para eles, é improvável que uma bebida probiótica faça uma grande diferença em seus sintomas.

Para complicar ainda mais, o microbioma de cada um de nós é único - assim, qualquer tratamento que afete a flora intestinal deve levar em conta essas diferenças. No geral, se compararmos o interior dos intestinos de dois indivíduos, o grau de semelhança é de apenas 10%.

Por esse motivo, ela acha que precisamos encontrar maneiras mais sofisticadas de ajustar o tratamento ao paciente. "É aí que o eixo intestino-cérebro vai nos ajudar, na medicina de precisão." A esperança, diz Foster, é "mapear 'biótipos' ou grupos de indivíduos que compartilham de uma determinada biologia que pode estar determinando seus sintomas". Nesse sentido, seria recomendável testar se um paciente tem inflamação alta ou baixa antes de decidir sobre o tratamento mais adequado para ele.

Licinio também se mantém cautelosamente otimista de que pesquisas futuras vão identificar terapias voltadas para eixo intestino-cérebro. Ele diz que os significativos efeitos colaterais dos antidepressivos limitaram o desenvolvimento de novos tratamentos farmacêuticos - mas essa abordagem poderia evitar esses problemas. "Você não está adulterando o cérebro", diz ele, "então, acho que qualquer efeito colateral que você tenha será menos problemático".

        Dieta mediterrânea

Embora ainda tenhamos que aprimorar nosso conhecimento sobre a relação entre nosso intestino e nosso cérebro, o que sabemos hoje aponta para a crescente evidência de que uma dieta saudável e balanceada pode ser uma importante medida preventiva para reduzir o risco de desenvolver uma doença como a depressão.

Muitos desses estudos examinaram a "dieta mediterrânea" - um termo abrangente para descrever dietas ricas em legumes, verduras, frutas, nozes, frutos do mar, gorduras insaturadas e óleos vegetais, e baixo teor de açúcar refinado e carne vermelha e processada.

Um estudo realizado na Espanha revelou que pessoas que seguiam a dieta mediterrânea tradicional tinham cerca de metade da probabilidade de serem diagnosticadas com depressão durante um período de quatro anos.

"Os dados sobre a importância da nutrição para a saúde mental e cerebral agora são extensos e altamente consistentes", diz Felice Jacka, psiquiatra nutricional da Universidade Deakin, na Austrália, e autora de Brain Changer: The Good Mental Health Diet (Transformando seu cérebro: a boa dieta de saúde mental, em tradução livre).

Pesquisas vêm comprovando que a dieta mediterrânea aumentou a diversidade de bactérias intestinais e reduziu outras alterações fisiológicas, como a inflamação crônica, que também parece acompanhar a depressão.

Mais de um século depois da experiência de Phillips, a depressão continua sem cura, mas para algumas pessoas, pelo menos, um intestino saudável pode ser um primeiro passo importante para uma mente mais feliz.

 

       A 'pandemia silenciosa' de infecções resistentes que matam milhões

 

Mais de 1,2 milhão de pessoas morreram em todo o mundo em 2019 por infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos, de acordo com o maior estudo sobre o assunto realizado até hoje.

Este número é maior do que o total de mortes por malária ou Aids a cada ano.

Os países mais pobres são os mais afetados, mas a resistência antimicrobiana ameaça a saúde de todos, diz o relatório.

O investimento urgente em novos medicamentos e o uso mais sensato dos atuais são as recomendações contra isso.

O uso excessivo de antibióticos nos últimos anos para combater infecções triviais significa que eles estão se tornando menos eficazes contra infecções graves.

As pessoas estão morrendo de infecções comuns, anteriormente tratáveis, porque as bactérias que as causam se tornaram resistentes ao tratamento.

As autoridades de saúde do Reino Unido alertaram recentemente que a resistência antimicrobiana era uma "pandemia oculta" que poderia surgir na sequência da covid-19, a menos que os antibióticos sejam receitados com responsabilidade.

        Particularmente mortal

A estimativa de mortes globais por resistência antimicrobiana, publicada na revista científica The Lancet, é baseada em uma análise de 204 países, feita por uma equipe de pesquisadores internacionais, liderada pela Universidade de Washington, nos EUA.

Eles calculam que até cinco milhões de pessoas morreram em 2019 por doenças nas quais a resistência antimicrobiana desempenhou algum papel — além das 1,2 milhão de mortes que causou diretamente.

No mesmo ano, acredita-se que a Aids tenha provocado 860 mil mortes, e a malária, 640 mil.

A maioria das mortes por resistência antimicrobiana foi causada por infecções do trato respiratório inferior, como pneumonia, e infecções da corrente sanguínea, que podem levar à sepse.

A MRSA (Staphylococcus aureus resistente à meticilina) foi particularmente mortal, enquanto a E. coli e várias outras bactérias também foram associadas a altos níveis de resistência a medicamentos.

Com base em prontuários de pacientes de hospitais, estudos e outras fontes de dados, os pesquisadores dizem que as crianças pequenas correm mais risco — cerca de uma em cada cinco mortes relacionadas à resistência antimicrobiana são de menores de cinco anos.

Estima-se que as mortes por resistência antimicrobiana foram:

- Mais altas na África Subsaariana e no Sul da Ásia, com 24 mortes para cada 100 mil pessoas.

- Mais baixas em países de alta renda, uma média de 13 para cada 100 mil pessoas.

O professor Chris Murray, do Instituto de Avaliação e Métricas de Saúde da Universidade de Washington, disse que os novos dados revelaram a verdadeira dimensão da resistência antimicrobiana em todo o mundo — e foi um sinal claro de que uma ação imediata é necessária "se quisermos ficar à frente na corrida contra a resistência antimicrobiana".

Outros especialistas dizem que um melhor monitoramento dos níveis de resistência em diferentes países e regiões é essencial.

Ramanan Laxminarayan, do Centro de Dinâmica, Economia e Política de Doenças, em Washington DC (EUA), afirma que os gastos globais para combater a resistência antimicrobiana precisam subir para níveis observados no caso de outras doenças.

"Os gastos precisam ser direcionados para a prevenção de infecções em primeiro lugar, garantindo que os antibióticos existentes sejam usados de forma adequada e criteriosa e para trazer novos antibióticos ao mercado", avalia.

Segundo ele, parte do mundo enfrentou o desafio do acesso precário a antibióticos eficazes e com preços acessíveis — e isso precisa ser levado a sério por líderes políticos e de saúde em todos os lugares.

 

Fonte: Por David Robson, da BBC Future/BBC News Brasil

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