Como seu intestino pode ajudar seu cérebro
O
intestino de um paciente pode não ser o lugar mais óbvio para buscar as origens
da depressão. Mas esse foi o palpite do químico britânico George Porter
Phillips no início do século 20.
Enquanto
percorria as enfermarias do notório Bethlem Royal Hospital, em Londres,
Phillips observara que seus pacientes com melancolia frequentemente sofriam de
constipação severa, junto com outros sinais de "entupimento geral dos
processos metabólicos" - incluindo unhas quebradiças, cabelos sem lustro e
tez amarelada.
Inicialmente,
poderíamos pensar que esses problemas fisiológicos foram causados pela
depressão, mas e se o contrário fosse verdadeiro? Phillips se perguntou, então,
se seria possível aliviar a depressão tratando o intestino.
Para
provar essa hipótese, ele alimentou os pacientes com uma dieta de baixo teor
calórico, sem carnes, exceto peixes. Também lhes ofereceu uma bebida láctea
fermentada conhecida como kefir, que contém as bactérias lactobacillus, um
micróbio "amigável" que já era conhecido por facilitar a digestão.
Surpreendentemente,
funcionou. Dos 18 pacientes testados por Phillips, 11 foram curados
completamente. Outros dois apresentaram melhora significativa.
Foi
a prova que faltava de que nossas bactérias intestinais podem ter uma profunda
influência sobre nosso bem-estar mental.
• Poder da flora intestinal sob análise
Uma
série da BBC Future analisou várias afirmações sobre o poder da nossa flora
intestinal de causar cura ou dano. Mas a ligação entre esses micro-organismos e
nossa saúde mental talvez seja a mais difícil de ser observada. Como esses
seres microscópicos que se alimentam de restos da nossa digestão poderiam
afetar nosso cérebro?
Algumas
dessas descobertas foram superestimadas. Mas mais de um século depois do
experimento inicial de Phillips, a relação entre intestino-cérebro é
consideravelmente sólida.
"A
influência dos micróbios em nossa saúde mental não está mais em
discussão", diz Jane Allyson Foster, cujo laboratório na Universidade
McMaster, no Canadá, lidera pesquisas nessa área. E isso significa que podemos
curar o cérebro através de nossa barriga. "Há o potencial tanto para o
desenvolvimento de novos tratamentos quanto para a medicina de precisão."
Foster
destaca que um intestino não saudável é apenas uma das muitas possíveis causas
de doença mental. Em outras palavras, apenas uma parcela dos pacientes vai
responder bem aos novos tratamentos "psicobióticos". Mas para aqueles
que sofrem de um desequilíbrio em suas bactérias intestinais, as novas terapias
podem trazer um alívio muito necessário.
Apesar
dos primeiros estudos, incluindo o de Phillips, a ideia de que o intestino
pudesse influenciar nossa saúde mental caiu em desgraça durante grande parte do
século 20, e fortes evidências para esse elo misterioso só emergiram novamente
nas últimas duas décadas.
Um
dos mais impressionantes experimentos modernos foi feito por cientistas da
Universidade de Kyushu, no Japão, em 2004.
Eles
demostraram que camundongos "sem micro-organismos" - criados em
condições esterilizadas para que não tivessem micróbios em seus corpos - mostraram
maiores flutuações nos hormônios corticosterona e ACTH, ambos conhecidos por
refletirem os níveis de estresse. Isso sugeriu que as bactérias intestinais de
camundongos saudáveis estavam, de alguma forma, moldando seu perfil hormonal.
Os
pesquisadores então deram a um grupo de camundongos sem germes bactérias
lactobacillus - a classe de bactérias "amigáveis" que Phillips também
usou em seus pacientes melancólicos. Embora esses ratos ainda apresentassem uma
resposta mais alta ao estresse do que os ratos que nunca haviam sido criados
livres de germes, suas respostas ao estresse eram menos pronunciadas do que os
ratos sem nenhum micróbio no intestino.
Existem
até alguns sinais de que comportamentos depressivos podem ser transmitidos
através das espécies - do humano ao camundongo - devido aos micróbios no
intestino.
Em
um outro estudo, pesquisadores chineses de Chongqing coletaram uma amostra da
flora intestinal de pacientes com Transtorno Depressivo Maior e a inseriu em
camundongos sem germes.
Posteriormente,
verificaram que esses camundongos desistiam mais rápido durante um exercício de
natação "forçada" - um comportamento que muitas vezes é considerado
análogo à letargia e ao desalento, sintomas típicos da depressão. E quando os
ratos foram colocados em uma caixa, gastaram menos tempo explorando as áreas
centrais e ficaram mais perto da borda, onde se sentiam mais seguros.
"O
que surpreende é que os animais que receberam a flora intestinal 'depressiva'
se comportaram de forma 'depressiva'", explica Julio Licinio, da New York
Upstate Medical University, que foi coautor do artigo. "Se você mudar a
flora intestinal, você muda o comportamento."
Só
podemos tirar algumas conclusões desses estudos em animais, é claro - mas elas
são respaldadas por estudos epidemiológicos que analisam um grande número de
participantes humanos (o mais recente foi publicado em 4 de fevereiro de 2019
). Essas pesquisas mostraram de maneira consistente que variações na flora
intestinal coincidem várias doenças mentais, incluindo depressão e ansiedade.
Nenhuma
espécie isolada parece ser responsável por esses efeitos; muito mais importante
seria a proporção geral das diferentes famílias de micróbios. Sendo assim, as
floras intestinais de pessoas deprimidas e ansiosas indicam menos diversidade
do que a dos indivíduos sem problemas de saúde mental.
Surpreendentemente,
um dos trabalhos recentes de Licinio revelou que a esquizofrenia está associada
a uma flora intestinal empobrecida. Quando amostras de pacientes que sofrem do
transtorno foram implantadas em camundongos livres de germes, o pesquisador
pôde verificar mudanças características na atividade cerebral que são marca
registrada do distúrbio.
• Explicações biológicas
Esses
efeitos podem surgir de muitas formas.
Certas
espécies de micróbios intestinais podem proteger a parede intestinal, ajudando
a manter sua membrana mucosa que impede que o conteúdo seja derramado na
corrente sanguínea. Sem essa barreira, você pode sofrer de um "intestino
poroso", síndrome que desencadeia, entre outras coisas, a liberação de
citocinas pró-inflamatórias, proteínas que aumentam o fluxo sanguíneo ao redor
dos locais de infecção e regulam a resposta imune do corpo.
Embora
essa reação seja crucial para combater a infecção, essas citocinas também podem
levar ao mau humor e à letargia. É por isso que muitas vezes nos sentimos
cansados quando estamos doentes - e a curto prazo, essa reação nos ajuda a
poupar a energia de que o nosso corpo necessita para encontrar a infecção. Mas
a longo prazo, pode levar à depressão.
Os
micróbios do intestino também influenciam a forma como digerimos e
metabolizamos os precursores de neurotransmissores importantes, como a
serotonina e a dopamina. Nossa flora intestinal tem até uma linha direta de
comunicação com o cérebro, através do nervo vago (ou pneumogástrico), que
possui receptores perto do revestimento intestinal que permitem controlar a
nossa digestão. Os micróbios no intestino podem, portanto, liberar mensageiros
químicos que alteram a resposta do nervo vago - e, consequentemente, a
atividade do cérebro.
"Especificamente
no intestino, há muitas oportunidades para as bactérias se comunicarem com os
sistemas hospedeiros, incluindo o sistema nervoso", diz Foster. "É um
espaço muito dinâmico, interativo e rico".
Mas
não se trata de uma via de mão única. Assim, a atividade cerebral também pode
influenciar a composição da flora intestinal. O estresse pode, por si só,
aumentar a inflamação, por exemplo, o que afetaria os micróbios em nosso
intestino. O resultado seria um ciclo vicioso.
• Novos caminhos
Foster
diz que a pesquisa neste campo está acelerando rapidamente, conduzida por
cientistas ligados a universidades e empresas.
Em
última análise, esses pesquisadores esperam que suas descobertas levem a um
novo tipo de tratamento para doenças como a depressão.
Os
antidepressivos existentes hoje funcionam alterando o equilíbrio de substâncias
químicas como a serotonina no cérebro, mas não são eficazes para todos os
pacientes: apenas dois em cada dez que tomam antidepressivos apresentam sinais
de melhora, além do efeito placebo. E, embora ajudem muitos pacientes, terapias
da fala, como a terapia cognitivo-comportamental, são igualmente imprevisíveis.
Como resultado, muitos pacientes não são tratados ou lutam para encontrar um
tratamento adequado.
Algumas
tentativas - como o estudo de Phillips em 1910 - alimentaram pacientes com
bebidas fermentadas, como o kefir, que podem introduzir no intestino bactérias
e proteínas que são conhecidas por serem benéficas à digestão, ou fibras
solúveis conhecidas como "prebióticos", que ajudariam a refazer nossa
flora intestinal. Infelizmente, muitos desses estudos tendem a ser pequenos,
com poucos participantes, e seus resultados foram ambivalentes: em alguns
estudos, as intervenções reduziram os sintomas com sucesso; em outros estudos,
provaram não ser melhores do que um tratamento com placebo.
Uma
explicação, segundo Foster, é que os estudos fracassados não se focaram em
pacientes que se beneficiariam mais com esse tipo de tratamento. Afinal de
contas, há muitas causas de depressão, e embora problemas na flora intestinal
possam ser a causa subjacente da depressão ou ansiedade de algumas pessoas, em
outros, o gatilho pode ser bem diferente. Para eles, é improvável que uma
bebida probiótica faça uma grande diferença em seus sintomas.
Para
complicar ainda mais, o microbioma de cada um de nós é único - assim, qualquer
tratamento que afete a flora intestinal deve levar em conta essas diferenças.
No geral, se compararmos o interior dos intestinos de dois indivíduos, o grau
de semelhança é de apenas 10%.
Por
esse motivo, ela acha que precisamos encontrar maneiras mais sofisticadas de
ajustar o tratamento ao paciente. "É aí que o eixo intestino-cérebro vai
nos ajudar, na medicina de precisão." A esperança, diz Foster, é
"mapear 'biótipos' ou grupos de indivíduos que compartilham de uma
determinada biologia que pode estar determinando seus sintomas". Nesse
sentido, seria recomendável testar se um paciente tem inflamação alta ou baixa
antes de decidir sobre o tratamento mais adequado para ele.
Licinio
também se mantém cautelosamente otimista de que pesquisas futuras vão
identificar terapias voltadas para eixo intestino-cérebro. Ele diz que os
significativos efeitos colaterais dos antidepressivos limitaram o desenvolvimento
de novos tratamentos farmacêuticos - mas essa abordagem poderia evitar esses
problemas. "Você não está adulterando o cérebro", diz ele,
"então, acho que qualquer efeito colateral que você tenha será menos
problemático".
• Dieta mediterrânea
Embora
ainda tenhamos que aprimorar nosso conhecimento sobre a relação entre nosso
intestino e nosso cérebro, o que sabemos hoje aponta para a crescente evidência
de que uma dieta saudável e balanceada pode ser uma importante medida
preventiva para reduzir o risco de desenvolver uma doença como a depressão.
Muitos
desses estudos examinaram a "dieta mediterrânea" - um termo
abrangente para descrever dietas ricas em legumes, verduras, frutas, nozes,
frutos do mar, gorduras insaturadas e óleos vegetais, e baixo teor de açúcar
refinado e carne vermelha e processada.
Um
estudo realizado na Espanha revelou que pessoas que seguiam a dieta
mediterrânea tradicional tinham cerca de metade da probabilidade de serem
diagnosticadas com depressão durante um período de quatro anos.
"Os
dados sobre a importância da nutrição para a saúde mental e cerebral agora são
extensos e altamente consistentes", diz Felice Jacka, psiquiatra
nutricional da Universidade Deakin, na Austrália, e autora de Brain Changer:
The Good Mental Health Diet (Transformando seu cérebro: a boa dieta de saúde
mental, em tradução livre).
Pesquisas
vêm comprovando que a dieta mediterrânea aumentou a diversidade de bactérias
intestinais e reduziu outras alterações fisiológicas, como a inflamação
crônica, que também parece acompanhar a depressão.
Mais
de um século depois da experiência de Phillips, a depressão continua sem cura,
mas para algumas pessoas, pelo menos, um intestino saudável pode ser um
primeiro passo importante para uma mente mais feliz.
A 'pandemia silenciosa' de infecções
resistentes que matam milhões
Mais
de 1,2 milhão de pessoas morreram em todo o mundo em 2019 por infecções
causadas por bactérias resistentes a antibióticos, de acordo com o maior estudo
sobre o assunto realizado até hoje.
Este
número é maior do que o total de mortes por malária ou Aids a cada ano.
Os
países mais pobres são os mais afetados, mas a resistência antimicrobiana
ameaça a saúde de todos, diz o relatório.
O
investimento urgente em novos medicamentos e o uso mais sensato dos atuais são
as recomendações contra isso.
O
uso excessivo de antibióticos nos últimos anos para combater infecções triviais
significa que eles estão se tornando menos eficazes contra infecções graves.
As
pessoas estão morrendo de infecções comuns, anteriormente tratáveis, porque as
bactérias que as causam se tornaram resistentes ao tratamento.
As
autoridades de saúde do Reino Unido alertaram recentemente que a resistência
antimicrobiana era uma "pandemia oculta" que poderia surgir na
sequência da covid-19, a menos que os antibióticos sejam receitados com
responsabilidade.
• Particularmente mortal
A
estimativa de mortes globais por resistência antimicrobiana, publicada na
revista científica The Lancet, é baseada em uma análise de 204 países, feita
por uma equipe de pesquisadores internacionais, liderada pela Universidade de
Washington, nos EUA.
Eles
calculam que até cinco milhões de pessoas morreram em 2019 por doenças nas
quais a resistência antimicrobiana desempenhou algum papel — além das 1,2
milhão de mortes que causou diretamente.
No
mesmo ano, acredita-se que a Aids tenha provocado 860 mil mortes, e a malária,
640 mil.
A
maioria das mortes por resistência antimicrobiana foi causada por infecções do
trato respiratório inferior, como pneumonia, e infecções da corrente sanguínea,
que podem levar à sepse.
A
MRSA (Staphylococcus aureus resistente à meticilina) foi particularmente
mortal, enquanto a E. coli e várias outras bactérias também foram associadas a
altos níveis de resistência a medicamentos.
Com
base em prontuários de pacientes de hospitais, estudos e outras fontes de
dados, os pesquisadores dizem que as crianças pequenas correm mais risco —
cerca de uma em cada cinco mortes relacionadas à resistência antimicrobiana são
de menores de cinco anos.
Estima-se
que as mortes por resistência antimicrobiana foram:
-
Mais altas na África Subsaariana e no Sul da Ásia, com 24 mortes para cada 100
mil pessoas.
-
Mais baixas em países de alta renda, uma média de 13 para cada 100 mil pessoas.
O
professor Chris Murray, do Instituto de Avaliação e Métricas de Saúde da
Universidade de Washington, disse que os novos dados revelaram a verdadeira
dimensão da resistência antimicrobiana em todo o mundo — e foi um sinal claro
de que uma ação imediata é necessária "se quisermos ficar à frente na
corrida contra a resistência antimicrobiana".
Outros
especialistas dizem que um melhor monitoramento dos níveis de resistência em
diferentes países e regiões é essencial.
Ramanan
Laxminarayan, do Centro de Dinâmica, Economia e Política de Doenças, em
Washington DC (EUA), afirma que os gastos globais para combater a resistência
antimicrobiana precisam subir para níveis observados no caso de outras doenças.
"Os
gastos precisam ser direcionados para a prevenção de infecções em primeiro
lugar, garantindo que os antibióticos existentes sejam usados de forma adequada
e criteriosa e para trazer novos antibióticos ao mercado", avalia.
Segundo
ele, parte do mundo enfrentou o desafio do acesso precário a antibióticos
eficazes e com preços acessíveis — e isso precisa ser levado a sério por
líderes políticos e de saúde em todos os lugares.
Fonte:
Por David Robson, da BBC Future/BBC News Brasil
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