Como Apple se tornou exceção nas demissões em massa de gigantes da tecnologia
Com aumento do juros, o crescimento mundial será reduzido drasticamente este ano, segundo previsões de organismos internacionais. E muitas empresas de Wall Street já sabem que isso irá resultar em redução das vendas e dos lucros.
Nesse
cenário, quase todos os gigantes norte-americanos da tecnologia adotaram a
mesma estratégia: reduzir custos. Microsoft, Google, Amazon, Tesla, Facebook e
Nvidia, entre muitas outras empresas, estão dispensando simultaneamente dezenas
de milhares de funcionários.
A
Amazon irá dispensar 18 mil trabalhadores; a Microsoft, 10 mil; e a Salesforce
demitirá 8 mil pessoas. O Twitter perdeu mais de 50% da sua renda e a Alphabet
(dona da Google) irá dispensar cerca de 12 mil funcionários.
A
lista de empresas de tecnologia que anunciaram cortes na sua folha de
pagamentos também inclui Netflix, Stripe, Snap, Coinbase, Robinhood, Peloton,
Lyft e muitas outras. Cada empresa tem suas próprias razões, mas elas fazem
parte do boom tecnológico que chegou ao ápice durante a pandemia, depois de
anos de progressos extraordinários.
Mas,
em meio a toda esta tormenta, a Apple é exceção entre as demissões em massa
promovidas no setor de tecnologia.
• Cautela durante a pandemia
A
empresa vem evitando, até agora, os grandes cortes de pessoal e investimentos,
depois de um período de crescimento cauteloso.
Os
analistas concordam que a Apple encontra-se em posição diferente dos seus pares
porque foi mais estratégica com relação ao seu crescimento, o que a preparou
melhor para um possível cenário de recessão econômica.
Entre
setembro de 2021 e setembro de 2022, a empresa contratou apenas 10 mil novos
funcionários, aumentando seu quadro de 154 mil para 164 mil empregados em tempo
integral, segundo documentos apresentados à Comissão de Valores Mobiliários dos
Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês) e analisados pela publicação
norte-americana Business Insider.
Este
número é muito menor que as dezenas de milhares de funcionários contratados
pela Amazon, Meta e Google no mesmo período.
• Mais serviços, menos hardware
Outra
razão que mantém as contas da Apple no azul é a aposta da empresa por serviços
e produtos Premium, em comparação com outros setores de negócios mais
concentrados em hardware, como os iPhones, iPads e computadores.
“A
ação [negociada na bolsa de valores] mais valiosa do mundo é um símbolo de
grande parte dos desafios e oportunidades enfrentados pelas grandes empresas
tecnológicas hoje em dia”, explica Ben Laidler, estrategista de mercados
globais da plataforma de investimentos eToro.
“Ela
promoveu grandes mudanças, saindo do hardware em direção aos serviços, como o
Apple Pay e Apple Music.”
“Este
setor duplicou sua proporção com relação à receita nos últimos anos,
impulsionando um aumento significativo da margem de lucro”, prossegue ele, “o
que, por sua vez, ajudou a Apple a manter valorização acima do mercado, ao
contrário de muitos dos seus homólogos das grandes empresas tecnológicas”.
Laidler
acredita que a Apple também soube aproveitar o aumento da demanda de produtos
premium de luxo.
“Com
seus iPhones de US$ 1.000 [cerca de R$ 5,2 mil], ela detém 20% das vendas
globais de smartphones, mas recebe 80% dos lucros do setor”, afirma ele. “Isso
está ajudando a compensar a brutal redução atual da demanda de smartphones.”
Além
disso, acredita-se que 60% das vendas no exterior sejam beneficiadas pela queda
do dólar.
• A deslocalização
Considerando
que o aumento das tensões entre os Estados Unidos e a China pode reduzir os
lucros das empresas tecnológicas americanas que detêm fontes de receita ou
capacidade de fabricação no gigante asiático, “a Apple reduziu drasticamente o
excesso de dependência da China na sua cadeia de fornecimento”, afirma Laidler.
“Depois
do Vietnã, a Apple acelerou a diversificação da sua cadeia de fornecimento na
Índia e seus principais fornecedores, Pegatron e Foxconn, aumentaram sua
produção nos últimos anos”, segundo Jacques-Aurélien Marcireau, codiretor de
renda variável, e Bing Yuan, analista de renda variável internacional da empresa
de gestão de ativos Edmond de Rothschild AM.
“O
objetivo de longo prazo da Apple é transferir para a Índia 40% a 45% da
montagem do iPhone, contra o percentual atual de um único dígito e de 25% em
2025”, afirmam eles.
Segundo
a Bloomberg, a Apple está desenvolvendo internamente novos chips e modems, para
tentar reduzir a dependência de fornecedores como a Qualcomm e a Broadcom.
“Olhando
para o futuro, é provável que os modelos de negócios digitais orientados ao
consumidor tenham resultados abaixo dos modelos de negócios orientados às
empresas”, afirma Trevor Noren, estrategista de investimentos temáticos da
empresa de gestão de ativos Wellington Management.
“Segundo
as estimativas da International Data Corporation, a datasfera empresarial
crescerá com mais que o dobro de rapidez da datasfera de consumo”, segundo
Noren.
Por
fim, é preciso recordar que o diretor-executivo da Apple, Tim Cook, aceitou há
pouco tempo uma redução do seu pacote salarial em 40%, depois que apenas 64%
dos acionistas aprovaram o plano de distribuição de lucros de 2022.
Por que gigantes da tecnologia estão
demitindo em massa
O
primeiro sinal de cortes de empregos na Amazon veio de postagens no LinkedIn de
funcionários demitidos.
Então,
o executivo da divisão de dispositivos da empresa, Dave Limp, anunciou: "É
doloroso para mim... mas perderemos funcionários talentosos da área de
dispositivos e serviços."
Em
toda a indústria de tecnologia, em empresas como Twitter, Meta (controladora do
Facebook), Coinbase e Snap, trabalhadores têm anunciado que estão "em
busca de novas oportunidades".
No
mundo todo, incluindo o Brasil, mais de 120 mil funcionários foram demitidos de
acordo com o site Layoffs.fyi, que acompanha os cortes na área de tecnologia.
Empresas
diferentes fizeram demissões por motivos distintos, mas há alguns fatores em
comum.
À
medida que muitas coisas migraram para o online durante a pandemia, os negócios
dos gigantes da tecnologia cresceram e os executivos acreditaram que os bons
tempos — para eles — continuariam.
A
Meta, por exemplo, contratou mais de 15 mil pessoas nos primeiros nove meses
deste ano.
Agora,
os executivos que anunciam cortes dizem que "calcularam mal".
"Tomei
a decisão de aumentar significativamente nossos investimentos. Infelizmente, as
coisas não aconteceram da maneira que eu esperava", disse Mark Zuckerberg,
diretor-executivo da Meta, ao demitir 13% dos funcionários da empresa.
• Mudanças no mercado
Anúncios
online são a principal fonte de receita para muitas empresas de tecnologia, mas
a perspectiva é de tempos difíceis à frente para o mercado de publicidade.
As
empresas têm enfrentado crescente oposição a práticas publicitárias invasivas.
A
Apple, por exemplo, dificultou o rastreamento da atividade online das pessoas e
a venda desses dados a anunciantes.
Além
disso, enquanto a economia enfrenta dificuldades, muitas empresas têm reduzido
seus orçamentos para publicidade online.
No
setor de tecnologia financeira, o aumento das taxas de juros para conter a alta
global da inflação também atingiu as empresas.
"Tem
sido um trimestre realmente decepcionante para os resultados de muitas das
grandes empresas de tecnologia", diz o analista Paolo Pescatore, da PP
Foresight. "Ninguém está imune."
Até
a Apple sinalizou cautela, com o diretor-executivo Tim Cook dizendo que a
empresa "ainda está contratando", mas "de forma cautelosa".
A
Amazon atribuiu suas demissões a um "ambiente macroeconômico incomum e
incerto", que teria forçado a empresa a priorizar o que mais importa para
os clientes.
"Como
parte de nosso processo anual de revisão do planejamento operacional, sempre
analisamos cada um de nossos negócios e o que acreditamos que devemos
mudar", disse a porta-voz Kelly Nantel.
"Enquanto
passamos por isso, dado o atual ambiente macroeconômico (assim como vários anos
de rápidas contratações), algumas equipes estão fazendo ajustes, o que em
alguns casos significa que certas funções não são mais necessárias. Não tomamos
essas decisões levianamente e estamos trabalhando para apoiar todos os
funcionários que possam ser afetados."
• Cortar o inchaço
Investidores
também aumentaram a pressão para cortar custos, acusando as empresas de estarem
inchadas e de serem lentas para responder aos sinais de desaceleração.
Em
uma carta aberta à Alphabet, controladora do Google e do YouTube, o investidor
britânico Christopher Hohn incitou a empresa a cortar empregos e salários.
A
Alphabet precisava ser mais disciplinada em relação a custos, escreveu ele, e
cortar perdas em projetos como a Waymo, sua empresa de carros autônomos.
Elon
Musk certamente acredita que há espaço para cortar custos em seu mais recente
investimento, o Twitter, que enfrentava dificuldade para gerar lucro e atrair
novos usuários.
Além
disso, muitos analistas argumentam que Musk pagou um valor maior do que a
empresa vale e há pressão para fazer o investimento valer a pena.
O
bilionário demitiu metade dos cerca de 7.500 funcionários da empresa. E, para
aqueles que permaneceram, a carga de trabalho ficou muito maior.
De
acordo com relatos da imprensa americana na terça-feira (15/11), Musk disse aos
funcionários que eles precisavam se comprometer com uma cultura de "longas
horas de trabalho em alta intensidade" ou sair da companhia.
Na
quinta (17/11), após relatos de que mais de 1 mil trabalhadores teriam optado
por deixar o Twitter, os funcionários da rede foram avisados abruptamente que
os escritórios da empresa seriam fechados até domingo, mas o motivo para isso
não está claro.
• Fim dos bons tempos
O
analista Scott Kessler diz que há menos tolerância para grandes gastos em
apostas de alta tecnologia, como realidade virtual ou veículos autônomos, que
podem não compensar no curto prazo.
Os
investidores também consideram insustentáveis os altos salários e as regalias
que alguns desfrutam no setor.
"Algumas
empresas tiveram que enfrentar duras realidades", diz ele.
Mike
Morini, da WorkForce Software, que fornece ferramentas de gerenciamento
digital, afirma que o momento parece ser um ponto de virada.
"A
indústria de tecnologia está saindo de um período de crescimento a todo custo",
diz ele.
Mas,
embora as grandes empresas de tecnologia possam estar passando por um momento
desfavorável, elas não estão quebradas.
As
10 mil demissões propostas pela Amazon em funções corporativas e de tecnologia
— seu maior corte de vagas até o momento — representam apenas 3% de sua equipe
administrativa.
Como dispensas em massa no Twitter vão
impactar a desinformação global
Uma
equipe de papel-chave no Twitter, responsável pelo combate à desinformação na
plataforma, foi dissolvida pelo novo proprietário da empresa, Elon Musk.
Esse
grupo monitorava o conteúdo da rede social, contextualizando posts enganosos ou
incorretos; destacava fontes de notícias com checagem; e criava sequências de
postagens confiáveis sobre assuntos de destaque em boa parte dos idiomas mais
falados do mundo.
Diferentes
unidades acompanhavam publicações em inglês, espanhol, árabe, hindi, português
e japonês. As equipes trabalhavam em Sydney, Singapura, Londres, Accra (Gana),
Tóquio, Cidade do México e São Paulo, assim como nos Estados Unidos.
Todas
as equipes foram cortadas.
A
BBC conversou com cinco ex-integrantes de unidades de monitoramento ao redor do
mundo. Eles solicitaram anonimato por temer que falar abertamente poderia
impactar pacotes de indenização.
O
Twitter não respondeu a um pedido de comentário feito pela BBC.
• 'Olhos e ouvidos'
"Nós
tínhamos grande alcance global. Os únicos com olhos e ouvidos em campo em
diferentes países", diz um integrante sênior de uma dessas equipes.
Segundo
essa pessoa, as equipes locais tinham capacidade de detectar as nuances
culturais em cada país.
"Havia
muita pesquisa e preparação antes de eleições em cada lugar, por exemplo. As
equipes conseguiam entender melhor a atmosfera local e até mesmo antecipar que
casos de desinformação poderiam ocorrer."
Outro
responsável pelo trabalho de monitoramento — que ficou sabendo de sua demissão
quando perdeu o acesso ao e-mail — diz estar bastante preocupado. "A
experiência de todo mundo vai piorar por falta de direção", afirma.
"Meu medo é que se torne uma plataforma de extrema-direita."
• Promoção de conteúdo confiável
O
Twitter é uma plataforma diferente para cada usuário de acordo com quais contas
segue e seus interesses, e também de acordo com sua localização.
As
equipes de monitoramento adicionavam tuítes verificados de fontes confiáveis em
discussões de temas que estavam viralizando e continham desinformação. Também
usavam a ferramenta Moments — uma compilação de postagens verificadas e
confiáveis a respeito de um tema ou notícia.
Isso
não está acontecendo mais.
"Nós
não moderávamos ou censurávamos. Nunca removemos um conteúdo, mas promovíamos
conteúdos [com contextualização]. Se era notado o aumento de algum tipo de
desinformação, nós éramos avisados e trabalhávamos com parceiros", diz um
integrante de uma equipe de monitoramento.
Depois,
informações checadas e contextualizadas eram destacadas no site.
• 'Fantasmas'
Integrantes
de equipes de monitoramento dizem que ainda há "fantasmas" do
trabalho que realizavam: conteúdo programado que continua a ser gerado, como
páginas ao vivo cobrindo eleições ou sobre a guerra na Ucrânia.
Mas
há um prazo para esse conteúdo terminar de ser publicado e logo os usuários do
Twitter vão ficar sem curadoria na plataforma.
Em
alguns países isso já está acontecendo.
Na
semana passada, "Ministério da Defesa" estava entre os trending
topics no Brasil. Ao clicar no tópico, era possível notar postagens afirmando
falsamente que o governo havia encontrado evidências de fraude no sistema
eleitoral brasileiro.
Sem
o trabalho das equipes de monitoramento, não há contextualização e checagem
para desmascarar a desinformação, que se espalha sem controle.
No
início de dezembro, os indianos que vivem no Gujarat, Estado onde nasceu o
primeiro-ministro, Narendra Modi, vão às urnas. A disputa será um termômetro
das chances do partido governista BJP nas eleições gerais de 2024.
Votações
anteriores na Índia foram repletas de desinformação. Agora, as eleições
acontecerão sem curadoria do Twitter em inglês ou hindi — nunca houve
monitoramento na língua gujarati.
No
México e em outros países de língua espanhola, as demissões terão um
"tremendo impacto", diz o especialista em mídia social Luis Ángel
Hurtado Razo, professor da Universidade Nacional Autônoma do México.
"O
Twitter não é a rede mais usada nesses países. Mas, por ser rápido e fácil de
compartilhar informações, tornou-se a mais influente na esfera pública. A
desinformação se espalha do Twitter para outras plataformas", diz Hurtado
Razo.
Ele
diz que no México, por exemplo, não há agências de verificação de fatos
suficientes e, sem o trabalho da própria rede, notícias falsas podem ter grande
alcance na plataforma.
• 'Só o mínimo'
Diferentes
locais e idiomas têm problemas distintos. Em árabe, os trending topics são
afetados por uma enorme quantidade de spam. As equipes de monitoramento
trabalhavam em um projeto para encontrar soluções para o problema. Não se sabe
se o projeto vai continuar.
O
único escritório do Twitter na África estava em Gana. Inaugurado só no ano
passado, a empresa dizia que tinha o objetivo de estar mais presentes nas
conversas do continente. Agora, quase todos os funcionários foram demitidos.
"O
Twitter fez o mínimo necessário quando se trata da África Subsaariana",
diz Rosemary Ajayi, fundadora do Digital Africa Research Lab. "O foco está
no hemisfério norte. Há atores manipulando a plataforma [na África] há vários
anos, muita violência e muita desinformação."
"Twitter
sob Musk? Nós estamos acostumados ao caos", diz ela. Mas com o corte do
monitoramento de conteúdo, "as coisas estão prestes a ficar realmente
feias".
Fonte:
BBC News Mundo
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