quarta-feira, 8 de março de 2023


 Como Apple se tornou exceção nas demissões em massa de gigantes da tecnologia

Com aumento do juros, o crescimento mundial será reduzido drasticamente este ano, segundo previsões de organismos internacionais. E muitas empresas de Wall Street já sabem que isso irá resultar em redução das vendas e dos lucros.

Nesse cenário, quase todos os gigantes norte-americanos da tecnologia adotaram a mesma estratégia: reduzir custos. Microsoft, Google, Amazon, Tesla, Facebook e Nvidia, entre muitas outras empresas, estão dispensando simultaneamente dezenas de milhares de funcionários.

A Amazon irá dispensar 18 mil trabalhadores; a Microsoft, 10 mil; e a Salesforce demitirá 8 mil pessoas. O Twitter perdeu mais de 50% da sua renda e a Alphabet (dona da Google) irá dispensar cerca de 12 mil funcionários.

A lista de empresas de tecnologia que anunciaram cortes na sua folha de pagamentos também inclui Netflix, Stripe, Snap, Coinbase, Robinhood, Peloton, Lyft e muitas outras. Cada empresa tem suas próprias razões, mas elas fazem parte do boom tecnológico que chegou ao ápice durante a pandemia, depois de anos de progressos extraordinários.

Mas, em meio a toda esta tormenta, a Apple é exceção entre as demissões em massa promovidas no setor de tecnologia.

        Cautela durante a pandemia

A empresa vem evitando, até agora, os grandes cortes de pessoal e investimentos, depois de um período de crescimento cauteloso.

Os analistas concordam que a Apple encontra-se em posição diferente dos seus pares porque foi mais estratégica com relação ao seu crescimento, o que a preparou melhor para um possível cenário de recessão econômica.

Entre setembro de 2021 e setembro de 2022, a empresa contratou apenas 10 mil novos funcionários, aumentando seu quadro de 154 mil para 164 mil empregados em tempo integral, segundo documentos apresentados à Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês) e analisados pela publicação norte-americana Business Insider.

Este número é muito menor que as dezenas de milhares de funcionários contratados pela Amazon, Meta e Google no mesmo período.

        Mais serviços, menos hardware

Outra razão que mantém as contas da Apple no azul é a aposta da empresa por serviços e produtos Premium, em comparação com outros setores de negócios mais concentrados em hardware, como os iPhones, iPads e computadores.

“A ação [negociada na bolsa de valores] mais valiosa do mundo é um símbolo de grande parte dos desafios e oportunidades enfrentados pelas grandes empresas tecnológicas hoje em dia”, explica Ben Laidler, estrategista de mercados globais da plataforma de investimentos eToro.

“Ela promoveu grandes mudanças, saindo do hardware em direção aos serviços, como o Apple Pay e Apple Music.”

“Este setor duplicou sua proporção com relação à receita nos últimos anos, impulsionando um aumento significativo da margem de lucro”, prossegue ele, “o que, por sua vez, ajudou a Apple a manter valorização acima do mercado, ao contrário de muitos dos seus homólogos das grandes empresas tecnológicas”.

Laidler acredita que a Apple também soube aproveitar o aumento da demanda de produtos premium de luxo.

“Com seus iPhones de US$ 1.000 [cerca de R$ 5,2 mil], ela detém 20% das vendas globais de smartphones, mas recebe 80% dos lucros do setor”, afirma ele. “Isso está ajudando a compensar a brutal redução atual da demanda de smartphones.”

Além disso, acredita-se que 60% das vendas no exterior sejam beneficiadas pela queda do dólar.

        A deslocalização

Considerando que o aumento das tensões entre os Estados Unidos e a China pode reduzir os lucros das empresas tecnológicas americanas que detêm fontes de receita ou capacidade de fabricação no gigante asiático, “a Apple reduziu drasticamente o excesso de dependência da China na sua cadeia de fornecimento”, afirma Laidler.

“Depois do Vietnã, a Apple acelerou a diversificação da sua cadeia de fornecimento na Índia e seus principais fornecedores, Pegatron e Foxconn, aumentaram sua produção nos últimos anos”, segundo Jacques-Aurélien Marcireau, codiretor de renda variável, e Bing Yuan, analista de renda variável internacional da empresa de gestão de ativos Edmond de Rothschild AM.

“O objetivo de longo prazo da Apple é transferir para a Índia 40% a 45% da montagem do iPhone, contra o percentual atual de um único dígito e de 25% em 2025”, afirmam eles.

Segundo a Bloomberg, a Apple está desenvolvendo internamente novos chips e modems, para tentar reduzir a dependência de fornecedores como a Qualcomm e a Broadcom.

“Olhando para o futuro, é provável que os modelos de negócios digitais orientados ao consumidor tenham resultados abaixo dos modelos de negócios orientados às empresas”, afirma Trevor Noren, estrategista de investimentos temáticos da empresa de gestão de ativos Wellington Management.

“Segundo as estimativas da International Data Corporation, a datasfera empresarial crescerá com mais que o dobro de rapidez da datasfera de consumo”, segundo Noren.

Por fim, é preciso recordar que o diretor-executivo da Apple, Tim Cook, aceitou há pouco tempo uma redução do seu pacote salarial em 40%, depois que apenas 64% dos acionistas aprovaram o plano de distribuição de lucros de 2022.

 

       Por que gigantes da tecnologia estão demitindo em massa

 

O primeiro sinal de cortes de empregos na Amazon veio de postagens no LinkedIn de funcionários demitidos.

Então, o executivo da divisão de dispositivos da empresa, Dave Limp, anunciou: "É doloroso para mim... mas perderemos funcionários talentosos da área de dispositivos e serviços."

Em toda a indústria de tecnologia, em empresas como Twitter, Meta (controladora do Facebook), Coinbase e Snap, trabalhadores têm anunciado que estão "em busca de novas oportunidades".

No mundo todo, incluindo o Brasil, mais de 120 mil funcionários foram demitidos de acordo com o site Layoffs.fyi, que acompanha os cortes na área de tecnologia.

Empresas diferentes fizeram demissões por motivos distintos, mas há alguns fatores em comum.

À medida que muitas coisas migraram para o online durante a pandemia, os negócios dos gigantes da tecnologia cresceram e os executivos acreditaram que os bons tempos — para eles — continuariam.

A Meta, por exemplo, contratou mais de 15 mil pessoas nos primeiros nove meses deste ano.

Agora, os executivos que anunciam cortes dizem que "calcularam mal".

"Tomei a decisão de aumentar significativamente nossos investimentos. Infelizmente, as coisas não aconteceram da maneira que eu esperava", disse Mark Zuckerberg, diretor-executivo da Meta, ao demitir 13% dos funcionários da empresa.

        Mudanças no mercado

Anúncios online são a principal fonte de receita para muitas empresas de tecnologia, mas a perspectiva é de tempos difíceis à frente para o mercado de publicidade.

As empresas têm enfrentado crescente oposição a práticas publicitárias invasivas.

A Apple, por exemplo, dificultou o rastreamento da atividade online das pessoas e a venda desses dados a anunciantes.

Além disso, enquanto a economia enfrenta dificuldades, muitas empresas têm reduzido seus orçamentos para publicidade online.

No setor de tecnologia financeira, o aumento das taxas de juros para conter a alta global da inflação também atingiu as empresas.

"Tem sido um trimestre realmente decepcionante para os resultados de muitas das grandes empresas de tecnologia", diz o analista Paolo Pescatore, da PP Foresight. "Ninguém está imune."

Até a Apple sinalizou cautela, com o diretor-executivo Tim Cook dizendo que a empresa "ainda está contratando", mas "de forma cautelosa".

A Amazon atribuiu suas demissões a um "ambiente macroeconômico incomum e incerto", que teria forçado a empresa a priorizar o que mais importa para os clientes.

"Como parte de nosso processo anual de revisão do planejamento operacional, sempre analisamos cada um de nossos negócios e o que acreditamos que devemos mudar", disse a porta-voz Kelly Nantel.

"Enquanto passamos por isso, dado o atual ambiente macroeconômico (assim como vários anos de rápidas contratações), algumas equipes estão fazendo ajustes, o que em alguns casos significa que certas funções não são mais necessárias. Não tomamos essas decisões levianamente e estamos trabalhando para apoiar todos os funcionários que possam ser afetados."

        Cortar o inchaço

Investidores também aumentaram a pressão para cortar custos, acusando as empresas de estarem inchadas e de serem lentas para responder aos sinais de desaceleração.

Em uma carta aberta à Alphabet, controladora do Google e do YouTube, o investidor britânico Christopher Hohn incitou a empresa a cortar empregos e salários.

A Alphabet precisava ser mais disciplinada em relação a custos, escreveu ele, e cortar perdas em projetos como a Waymo, sua empresa de carros autônomos.

Elon Musk certamente acredita que há espaço para cortar custos em seu mais recente investimento, o Twitter, que enfrentava dificuldade para gerar lucro e atrair novos usuários.

Além disso, muitos analistas argumentam que Musk pagou um valor maior do que a empresa vale e há pressão para fazer o investimento valer a pena.

O bilionário demitiu metade dos cerca de 7.500 funcionários da empresa. E, para aqueles que permaneceram, a carga de trabalho ficou muito maior.

De acordo com relatos da imprensa americana na terça-feira (15/11), Musk disse aos funcionários que eles precisavam se comprometer com uma cultura de "longas horas de trabalho em alta intensidade" ou sair da companhia.

Na quinta (17/11), após relatos de que mais de 1 mil trabalhadores teriam optado por deixar o Twitter, os funcionários da rede foram avisados abruptamente que os escritórios da empresa seriam fechados até domingo, mas o motivo para isso não está claro.

        Fim dos bons tempos

O analista Scott Kessler diz que há menos tolerância para grandes gastos em apostas de alta tecnologia, como realidade virtual ou veículos autônomos, que podem não compensar no curto prazo.

Os investidores também consideram insustentáveis os altos salários e as regalias que alguns desfrutam no setor.

"Algumas empresas tiveram que enfrentar duras realidades", diz ele.

Mike Morini, da WorkForce Software, que fornece ferramentas de gerenciamento digital, afirma que o momento parece ser um ponto de virada.

"A indústria de tecnologia está saindo de um período de crescimento a todo custo", diz ele.

Mas, embora as grandes empresas de tecnologia possam estar passando por um momento desfavorável, elas não estão quebradas.

As 10 mil demissões propostas pela Amazon em funções corporativas e de tecnologia — seu maior corte de vagas até o momento — representam apenas 3% de sua equipe administrativa.

 

       Como dispensas em massa no Twitter vão impactar a desinformação global

 

Uma equipe de papel-chave no Twitter, responsável pelo combate à desinformação na plataforma, foi dissolvida pelo novo proprietário da empresa, Elon Musk.

Esse grupo monitorava o conteúdo da rede social, contextualizando posts enganosos ou incorretos; destacava fontes de notícias com checagem; e criava sequências de postagens confiáveis sobre assuntos de destaque em boa parte dos idiomas mais falados do mundo.

Diferentes unidades acompanhavam publicações em inglês, espanhol, árabe, hindi, português e japonês. As equipes trabalhavam em Sydney, Singapura, Londres, Accra (Gana), Tóquio, Cidade do México e São Paulo, assim como nos Estados Unidos.

Todas as equipes foram cortadas.

A BBC conversou com cinco ex-integrantes de unidades de monitoramento ao redor do mundo. Eles solicitaram anonimato por temer que falar abertamente poderia impactar pacotes de indenização.

O Twitter não respondeu a um pedido de comentário feito pela BBC.

        'Olhos e ouvidos'

"Nós tínhamos grande alcance global. Os únicos com olhos e ouvidos em campo em diferentes países", diz um integrante sênior de uma dessas equipes.

Segundo essa pessoa, as equipes locais tinham capacidade de detectar as nuances culturais em cada país.

"Havia muita pesquisa e preparação antes de eleições em cada lugar, por exemplo. As equipes conseguiam entender melhor a atmosfera local e até mesmo antecipar que casos de desinformação poderiam ocorrer."

Outro responsável pelo trabalho de monitoramento — que ficou sabendo de sua demissão quando perdeu o acesso ao e-mail — diz estar bastante preocupado. "A experiência de todo mundo vai piorar por falta de direção", afirma. "Meu medo é que se torne uma plataforma de extrema-direita."

        Promoção de conteúdo confiável

O Twitter é uma plataforma diferente para cada usuário de acordo com quais contas segue e seus interesses, e também de acordo com sua localização.

As equipes de monitoramento adicionavam tuítes verificados de fontes confiáveis em discussões de temas que estavam viralizando e continham desinformação. Também usavam a ferramenta Moments — uma compilação de postagens verificadas e confiáveis a respeito de um tema ou notícia.

Isso não está acontecendo mais.

"Nós não moderávamos ou censurávamos. Nunca removemos um conteúdo, mas promovíamos conteúdos [com contextualização]. Se era notado o aumento de algum tipo de desinformação, nós éramos avisados e trabalhávamos com parceiros", diz um integrante de uma equipe de monitoramento.

Depois, informações checadas e contextualizadas eram destacadas no site.

        'Fantasmas'

Integrantes de equipes de monitoramento dizem que ainda há "fantasmas" do trabalho que realizavam: conteúdo programado que continua a ser gerado, como páginas ao vivo cobrindo eleições ou sobre a guerra na Ucrânia.

Mas há um prazo para esse conteúdo terminar de ser publicado e logo os usuários do Twitter vão ficar sem curadoria na plataforma.

Em alguns países isso já está acontecendo.

Na semana passada, "Ministério da Defesa" estava entre os trending topics no Brasil. Ao clicar no tópico, era possível notar postagens afirmando falsamente que o governo havia encontrado evidências de fraude no sistema eleitoral brasileiro.

Sem o trabalho das equipes de monitoramento, não há contextualização e checagem para desmascarar a desinformação, que se espalha sem controle.

No início de dezembro, os indianos que vivem no Gujarat, Estado onde nasceu o primeiro-ministro, Narendra Modi, vão às urnas. A disputa será um termômetro das chances do partido governista BJP nas eleições gerais de 2024.

Votações anteriores na Índia foram repletas de desinformação. Agora, as eleições acontecerão sem curadoria do Twitter em inglês ou hindi — nunca houve monitoramento na língua gujarati.

No México e em outros países de língua espanhola, as demissões terão um "tremendo impacto", diz o especialista em mídia social Luis Ángel Hurtado Razo, professor da Universidade Nacional Autônoma do México.

"O Twitter não é a rede mais usada nesses países. Mas, por ser rápido e fácil de compartilhar informações, tornou-se a mais influente na esfera pública. A desinformação se espalha do Twitter para outras plataformas", diz Hurtado Razo.

Ele diz que no México, por exemplo, não há agências de verificação de fatos suficientes e, sem o trabalho da própria rede, notícias falsas podem ter grande alcance na plataforma.

        'Só o mínimo'

Diferentes locais e idiomas têm problemas distintos. Em árabe, os trending topics são afetados por uma enorme quantidade de spam. As equipes de monitoramento trabalhavam em um projeto para encontrar soluções para o problema. Não se sabe se o projeto vai continuar.

O único escritório do Twitter na África estava em Gana. Inaugurado só no ano passado, a empresa dizia que tinha o objetivo de estar mais presentes nas conversas do continente. Agora, quase todos os funcionários foram demitidos.

"O Twitter fez o mínimo necessário quando se trata da África Subsaariana", diz Rosemary Ajayi, fundadora do Digital Africa Research Lab. "O foco está no hemisfério norte. Há atores manipulando a plataforma [na África] há vários anos, muita violência e muita desinformação."

"Twitter sob Musk? Nós estamos acostumados ao caos", diz ela. Mas com o corte do monitoramento de conteúdo, "as coisas estão prestes a ficar realmente feias".

 

Fonte: BBC News Mundo

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