As falhas em rede de proteção à infância no caso da menina de 12 anos grávida pela 2ª vez
No
início deste mês, um exame de DNA trouxe novas provas no caso da menina de 12
anos do Piauí grávida pela segunda vez após sucessivos estupros, segundo
entidades de direitos humanos que acompanham o caso. Feito a pedido da Polícia
Civil, o exame mostrou indícios de que o abuso sexual foi cometido por um tio.
Moradora
de uma área rural no Piauí, a menina já havia engravidado uma vez após sofrer
um estupro.
A
polícia chegou a investigar o caso, mas, como divulgou na época, a investigação
foi arquivada após o homicídio de um suspeito - um primo maior de idade da
criança. O homicídio também não foi solucionado.
Já
na primeira gravidez, a menina teria direito ao aborto - previsto por lei em
casos de estupro. Ela chegou a procurar o serviço de saúde bem no início da
gravidez, mas, segundo relato da mãe na época, foi desencorajada a realizar o
procedimento.
Em
2022, o Conselho Tutelar denunciou que, fora da escola, com 11 anos e um filho
de colo, a menina engravidou novamente como decorrência de outra violência
sexual.
Diante
do novo crime, a Polícia Civil desarquivou o caso e fez o pedido de testagem do
DNA, que indicou o tio como autor do crime, segundo entidades de direitos
humanos - os órgãos oficiais não têm divulgado informações com a justificativa
de que o caso está em sigilo de Justiça.
Nesta
gravidez, a menina também não teve garantido o direito ao aborto legal - o
procedimento havia sido autorizado em outubro de 2022 pela 2ª Vara da Infância
e da Juventude de Teresina, mas a decisão foi suspensa em dezembro pelo
Tribunal de Justiça do Piauí a pedido da Defensoria Pública do Estado e da mãe
da menina.
A
situação tem sido trazida a público por entidades de direitos humanos que
acompanham o caso.
"O
sigilo de Justiça é necessário para proteger a identidade da criança, mas não
impede as autoridades de prestar contas pela forma como têm agido no
caso", afirma a advogada e ativista Juliana Cesareo Alvim, da Center for
Reproductive Rights, entidade internacional voltada para a defesa de direitos
reprodutivos.
Hoje,
aos 12 anos, a menina tem um filho de um ano e está grávida novamente de 29
semanas. A Defensoria Pública divulgou que ela está afastada da família e
morando em um abrigo municipal junto com o bebê.
O
tio está em prisão cautelar e os pais respondem na Justiça por negligência,
segundo as últimas informações obtidas pela Comissão de Direitos Humanos da
OAB-Piauí.
Mas
como a situação chegou a esse ponto? O que deveria ter sido feito pelas
instâncias de proteção à infância? Veja a seguir, o papel de cinco instituições
nesse caso.
·
Família
Embora
o conceito de família possa passar a ideia de um ambiente em que, em tese, a
criança estaria protegida, na prática, casos como o da menina do Piauí estão
longe de ser exceção, explica a ativista de direitos humanos Luciana Temer,
professora de direito constitucional da PUC-SP e diretora do instituto Liberta
de enfrentamento à violência sexual contra crianças.
"Este
é um dos casos que vieram à tona, mas situações como essa são muito
comuns", afirma a professora. "Dados do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública apontam que mais de 80% dos estupros de vulneráveis são praticados por
parentes próximos."
O
caso da criança do Piauí é agravado pela extrema vulnerabilidade social da
família, que é extremamente pobre, segundo o conselho tutelar. Mas o problema
do abuso sexual por parentes ocorre mesmo famílias de maior poder aquisitivo.
"A
gente sabe que a casa não é o lugar mais seguro em todas as classes
sociais", diz Temer.
Os
pais da menina se separaram entre um abuso e outro, segundo o que foi divulgado
pelo conselho tutelar. A menina, junto com o bebê, foi morar com o pai e com a
avó.
A
segunda gravidez foi descoberta quando o pai pediu ajuda do Conselho Tutelar
para cuidar das crianças pois estava com dificuldades financeiras, de acordo
com o que foi divulgado pela entidade.
Atualmente,
os pais respondem criminalmente por negligência, segundo informações obtidas
pela OAB do Piauí. Apesar disso, eles ainda fizeram parte do processo de
decisão sobre o aborto, já que a menina é muito nova e judicialmente não pode
tomar a decisão.
A
decisão acabou ficando com a Justiça pois houve discordância entre os pais: o
pai desejava o aborto e falou até com a imprensa sobre isso, mas a mãe da
menina se posicionou contra.
·
Sistema de Saúde
O
atendimento recebido pela menina nas unidades do SUS (Sistema Único de Saúde)
no Estado do Piauí é apontado por entidades de direitos humanos como um dos
principais problemas.
Como
menor de idade e vítima de um estupro, a criança tinha direito ao aborto legal
nos dois casos, sem necessidade de decisão judicial.
Mas,
ao procurar atendimento no SUS, a criança e a mãe não só não foram informadas
dos seus direitos como não tiveram orientação adequada quanto aos enormes
riscos de saúde de prosseguir com uma gravidez nessa idade, dizem as entidades.
Segundo
o relato da própria mãe, elas foram dissuadidas de fazer o procedimento.
"O
atendimento não foi adequado e não indicou nem o direito dela nem os riscos de
prosseguir com a gravidez", afirma Juliana Cesareo Alvim, advogada do
Center for Reproductive Rights e professora de direitos humanos na UFMG.
Embora
médicos individualmente possam alegar objeção de consciência para não fazer um
aborto, o SUS tem o dever de fornecer o atendimento e a orientação adequada.
"A
legislação é muito clara e específica sobre o direito ao aborto legal. Não é
dado a nenhum servidor de saúde desrespeitar (essa determinação)", explica
Temer.
Duas
outras entidades que acompanham o caso apontaram que uma médica da coordenação
do Samvis, o atendimento à vítimas, é pessoalmente contra o aborto - previsto
em lei em casos de estupro.
A
BBC News Brasil questionou a Secretaria de Saúde do Piauí sobre a questão, mas
não teve retorno até a publicação desta reportagem.
·
Polícia
A
Polícia Civil chegou a abrir investigação sobre o primeiro caso de estupro, mas
ela foi arquivada quando um suspeito - um primo maior de idade da vítima - foi
vítima de homicídio.
Após
o segundo abuso, no entanto, o caso foi desarquivado e a polícia pediu teste de
DNA, que apontou o tio como autor do crime.
A
BBC News Brasil questionou a Polícia Civil por que o exame não foi pedido na
primeira investigação, mas não houve resposta até a publicação desta
reportagem.
·
Defensoria Pública
A
Defensoria Pública é a entidade responsável por defender na Justiça os direitos
de quem não tem condições de pagar por advogado.
A
menina teve uma defensora apontada pela Justiça para representá-la e o pai
também recebe atendimento de um defensor.
Mas
o caso chamou a atenção por causa do envolvimento altamente incomum - e
apontado como ilegal por advogados - de uma defensora que pediu para ser
apontada como defensora do feto (nesta segunda gravidez da menina).
Pela
legislação brasileira, explica Cesareo, o direito à personalidade e à
representação jurídica começa com o nascimento com vida. Não existe nenhuma
previsão legal para que um feto tenha apontado um representante legal.
No
entanto, o pedido da defensora para ser representante do feto foi atendido pela
2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina.
Após
a nomeação, a defensora do feto recorreu da autorização inicialmente dada pela
Justiça para o aborto.
A
situação é apontada como "aberrante" por entidades que acompanham o
caso.
"É
totalmente inconstitucional", diz Cesareo, do Center for Reproductive
Rights.
"Existe
uma grande falha no Sistema de Justiça quando, por convicções pessoais, as
pessoas se sentem no direito de desrespeitar a lei", afirma Luciana Temer,
da Libertas.
A
BBC News questionou a Defensoria Pública do Piauí sobre o caso, mas não houve
resposta até a publicação desta reportagem.
·
Poder Judiciário
O
aborto legal é um direito garantido pela legislação brasileira em qualquer caso
de estupro sem necessidade de autorização judicial - todos os documentos
necessários são preenchidos no próprio hospital, bastando o relato da vítima à
equipe médica.
Qualquer
menina de até 14 que esteja grávida tem o direito ao procedimento, já que a
legislação brasileira considera que até essa idade a criança não tem capacidade
de consentir e o estupro é presumido.
Na
prática, no entanto, nem sempre esse direito é garantido devido a dificuldades
de acesso no sistema de saúde e a uma série de barreiras encontradas pelas
mulheres e meninas que já sofreram a violência sexual.
"É
uma série de barreiras práticas, desde poucos hospitais que fazem o
procedimento até informações erradas sobre os direitos vindas de profissionais
de saúde que deveriam garanti-lo", afirma Cesareo.
"Além
disso, muitos locais criam barreiras extras, como criar a exigência de
ultrassom, que não é previsto em lei nem é necessário para o
procedimento."
No
caso da menina do Piauí, como houve discordância dos pais sobre autorização
para o procedimento na segunda gravidez - e como a criança foi afastada do
convívio familiar - a questão foi decidida pela Justiça.
Inicialmente
havia autorização para a realização do aborto dada pela 2ª Vara da Infância e
da Juventude de Teresina.
No
entanto, a defensora do feto e a mãe da menina recorreram da decisão e a
autorização foi suspensa em dezembro pela 2ª Câmara Especializada Civil do
Tribunal de Justiça do Piauí.
Segundo
instituições de defesa de direitos humanos que acompanham o caso, a justificativa
dada pelo desembargador foi de que "o procedimento não seria desejo da
criança" - a BBC News Brasil não teve acesso aos autos, já que o caso está
em segredo.
No
entanto, a conselheira tutelar que levou o caso à Justiça e tentou ajudar a
criança a obter o direito relatou no ano passado que a menina inicialmente
demonstrou o desejo de fazer o procedimento e voltar à escola.
Além
disso, aponta Luciana Temer, o bem estar e a saúde da criança precisam ser
garantidos pelos responsáveis e pela Justiça.
"Não
é uma justificativa válida (a do desembargador). Não há o que se falar em jogar
essa decisão em uma criança em extremo sofrimento físico e mental", afirma
a professora de direito.
O
Tribunal de Justiça do Piauí diz que não comenta o caso por causa do segredo de
Justiça.
Cesareo
afirma que a situação da menina do Piauí é um exemplo de como diversas
instâncias falharam sucessivamente em seu dever de proteger a criança.
Mas
o caso não é raro - muitas crianças engravidam após abusos sexuais sucessivos e
desamparo de diversas instâncias que deveriam protegê-las.
"O
Brasil tem um número altíssimo de gravidez na infância. Em 2021 houve 17 mil
crianças de até 14 anos grávidas segundo dados do datasus compilados pela UNfpa
(Fundo de População das Nações Unidas)", diz.
Segundo
o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública (publicado em junho de
2022), houve 66 mil vítimas de estupro no Brasil em 2021 - e 61% delas eram
crianças com menos de 13 anos.
Fonte:
BBC News Brasil
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