Os kids pretos foram a origem do Bope e das megachacinas
Cursos de operações especiais dos kids pretos
estão na origem do Bope. Em comum, as violações de direitos humanos e o
desprezo à democracia.
“Homens de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela
e deixar corpo no chão!”. O grito de guerra entoado nos treinamentos do
Batalhão de Operações Especiais, o Bope, vinculado à Polícia Militar do Rio de
Janeiro, se tornou célebre diante do sucesso do filme “Tropa de Elite”.
Outro cântico orgulhoso desses policiais diz que “o
Bope tem guerreiros que matam guerrilheiros”. Este último é bastante sugestivo
do tipo de preocupação que estava nas origens da criação do grupo.
A história do Bope, bem como da força de elite da
Polícia Civil do Rio de Janeiro, a Coordenadoria de Recursos Especiais, o Core,
está diretamente ligada ao contexto da ditadura militar, quando “matar
guerrilheiros” era a tarefa central das forças de segurança do Estado
brasileiro.
De forma mais específica, as origens do Bope e da Core
remontam a um grupo de elite do Exército brasileiro conhecido como Forças
Especiais. Os FE são aqueles militares designados pela expressão que hoje se
tornou célebre em meios às investigações sobre a tentativa de golpe de Estado
organizada por Jair Bolsonaro: kids pretos.
As revelações feitas no âmbito do inquérito instaurado
para investigar a trama golpista têm trazido à tona importantes informações
sobre a história e a lógica de atuação dos militares das Forças Especiais. Este
capítulo da história, no entanto, que liga os kids pretos ao surgimento de
forças policiais como o Bope e a Core, continua amplamente desconhecido.
·
A origem dos kids pretos
“Exército prepara em segredo tropa de guerrilheiros”.
Esta era a manchete de uma reportagem especial do jornal Tribuna da Imprensa de
22 de maio de 1961, que trazia uma descrição detalhada de como funcionava e
quais eram as etapas do Curso de Operações Especiais, que desde 1957 vinha
sendo oferecido anualmente pelo Exército.
Aqueles que se formavam no curso passavam a integrar
uma seleta elite do Exército brasileiro, que opera sob o lema “qualquer missão,
em qualquer lugar, de qualquer maneira e a qualquer hora”.
Em meados dos anos 1960, com o Brasil já sob uma
ditadura militar, o curso de operações especiais ganhou maior relevância na
estrutura interna das Forças Armadas. Havia uma necessidade de aprofundar a
repressão, especialmente diante do surgimento de focos de resistência armada ao
regime autoritário.
Em 12 de agosto de 1968, poucos meses antes da
decretação do AI-5, o Ministério do Exército publicou uma portaria criando o
curso de ações comandos, o Cac, e o curso de forças especiais, o CFEsp. Eles se
tornaram, respectivamente, as duas primeiras fases do curso de operações
especiais. Ao mesmo tempo, a primeira unidade de Operações Especiais do
Exército foi criada: era o Destacamento de Forças Especiais, o DFEsp.
Em 1969, dez indicados da Secretaria de Segurança
Pública, a SSP, do estado da Guanabara submeteram-se aos treinamentos desse
revigorado curso de operações especiais. Sob liderança do policial civil José
Paulo Boneschi, eles obtiveram seus diplomas e retornaram ao estado, onde
criaram o Grupo de Operações Policiais, o Goesp, vinculado à SSP. Foi a
primeira força vinculada a uma polícia estadual criada a partir da mesma lógica
e do mesmo treinamento dos kids pretos.
Dentre os militares que fizeram o curso de operações
especiais do Exército para formar a primeira configuração do Goesp estava o
bombeiro Valter da Costa Jacarandá. Em 2013, em uma audiência pública da
Comissão da Verdade do Rio de Janeiro sobre o caso Mário Alves, Jacarandá
admitiu a prática de tortura na sede do 1º Batalhão de Polícia do Exército, onde
ficava o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de
Defesa Interna, o Doi-Codi.
“Pau-de-arara é fato?”, questionou Wadih Damous, então
presidente da comissão. “É fato”, atestou Jacarandá, diante das câmeras e de
ex-presos políticos que o apontavam como torturador. No mesmo ano, o bombeiro
foi denunciado pelo Ministério Público Federal, o MPF, pela participação na
tortura, no assassinato e no desaparecimento forçado de Mário Alves. Na peça
apresentada pelo MPF, outro agente era citado como tendo participado do crime:
José Paulo Boneschi. Por já ter falecido, porém, ele não foi formalmente
indiciado.
Até hoje, não é exatamente clara qual era a relação
entre o Goesp e o Doi-Codi, se eles atuavam juntos ou se aquele forneceu os
quadros para este. Mas a presença de Jacarandá e Boneschi neste caso é
reveladora de como os policiais formados pelos kids pretos continuaram atuando
junto das Forças Armadas em sua patriótica missão de combater os
subversivos.
No entanto, ao lado da repressão aos opositores do
regime, o Goesp, como força de elite da polícia, tinha também uma segunda
tarefa central: o combate à chamada criminalidade comum. Ainda em novembro de
1969, logo após a criação do grupo, o jornal Diário da Noite noticiou: “Maior
ofensiva carioca contra a criminalidade”.
A matéria dava conta da criação do grupo dos Dez Homens
de Ouro, composto pelos “maiores caçadores de bandidos que a Polícia da
Guanabara já reuniu em seus quadros”. Dentre eles, estavam nomes como Mariel
Mariscott e José Guilherme Godinho, o Sivuca, que ficou famoso pelo bordão
“bandido bom é bandido morto”.
Ainda segundo a reportagem, “os ‘Dez Homens de Ouro’
funcionarão em contato direto com o Grupo de Operações Especiais, também
recém-criado (…) e agirão separadamente ou então todos juntos, de acordo com o
vulto do trabalho a ser feito”.
Aquele parece ter sido um contexto de profícuas trocas
de experiência. De um lado, policiais treinados no que havia de mais moderno em
termos de combate à guerrilha, o curso de operações especiais do Exército. De
outro lado, experientes policiais da Guanabara, acostumados à realidade das
delegacias, onde há muitas décadas o pau-de-arara era também fato mais que
consumado.
O Goesp logo cresceu e se tornou Serviço de Operações
Especiais, o Soesp. Em 1975, com a unificação dos estados da Guanabara e do Rio
de Janeiro, foi instituído o Departamento Geral de Investigações Especiais, a
DGIE, no âmbito do qual foi criado o Serviço de Recursos Especiais, que herdou
as atribuições do Soesp. Esse grupo, em seguida, seria transformado na Core.
Na segunda turma que fez o curso de operações especiais
para integrar o Goesp estava Paulo César Amendola. O hoje coronel da Polícia
Militar do Rio de Janeiro tornou-se chefe do grupo com a saída de Boneschi e ficou
na função até janeiro de 1976.
Em 1978, Amendola apresentou ao então comandante da
PMERJ, o coronel do Exército Mário José Sotero de Menezes, uma ideia que ele
vinha formulando há tempos: criar um grupo de operações especiais no interior
da PM. Com efeito, em janeiro daquele ano, foi instituído oficialmente o Núcleo
de Companhia de Operações Especiais, o Nucoe.
A primeira polêmica pública envolvendo o Nucoe teve a
ver com seu símbolo, oficializado apenas em 1981. Tratava-se de um crânio
atravessado por uma faca, tendo por trás duas armas cruzadas. Quando veio a
público, a imagem provocou reações de setores da sociedade, que viam uma
evidente semelhança com o símbolo por muito tempo utilizado pelo Esquadrão da
Morte do Rio de Janeiro.
Para se contrapor à acusação, a PM defendeu-se
afirmando que a inspiração teria sido, na verdade, o emblema dos Comandos do
Exército – ou seja, um dos símbolos dos kids pretos. As tentativas de proibir a
utilização foram infrutíferas e, até hoje, o emblema serve para a força
policial sucessora e herdeira do Nucoe: o Bope.
·
Operações Especiais e as megachacinas
Às vésperas de 7 de setembro de 2021, o país respirava
aflito. Jair Bolsonaro mobilizava suas bases para grandes manifestações e uma
preocupação era publicamente discutida na imprensa: o risco das forças
policiais dos estados se sublevarem. A despeito das bravatas de Bolsonaro, o
golpe não foi colocado em marcha naquele dia.
A opinião pública respirou aliviada. As polícias não
estavam politizadas e não representavam um risco para a democracia, comemoraram
os analistas na grande mídia.
Poucos meses depois, em novembro daquele ano, o Bope
promoveu uma chacina na Favela do Salgueiro, em São Gonçalo, que deixou nove
mortos. Essa ação, contudo, já não chocou tanto quanto a ameaça de golpe.
Afinal, para grande parte da sociedade – inclusive para
muitos que se colocam no lugar de ardorosos defensores da democracia –, a
chacina não era um sinal de que as forças policiais estavam politizadas ou
tomadas pelo extremismo.
Para esses setores, operações policiais em favelas, que
deixam um rastro de jovens negros mortos pelo caminho, parecem fazer parte do
que se entende como aceitável dentro da democracia brasileira. Essas mortes,
aparentemente, não representam uma ameaça aos valores e aos ditames da
Constituição de 1988.
É verdade que, perto da chacina protagonizada pela Core
alguns meses antes, em maio, na Favela do Jacarezinho, os nove mortos poderiam
até parecer pouco. Na ocasião, a tropa de elite da Polícia Civil havia deixado
28 vítimas.
A normalização das megachacinas no Rio de Janeiro é tão
impressionante que, se falamos da Chacina do Salgueiro, é preciso se perguntar:
qual delas? Pois exatamente quatro anos antes desta de novembro de 2021, em
novembro de 2017, uma grande operação já havia deixado oito mortos no
local. Como revelado depois pelo jornalista Rafael
Soares, a ação contou com a presença de 13 militares do Comando da Brigada das
Forças Especiais do Exército. Eram os kids pretos.
Essas três megachacinas – uma protagonizada pelo Bope,
outra pela Core, outra pelos FE – revelam como essas forças continuam marcadas
pelo mesmo ideal que as constituiu originalmente. Ou seja, pelo imaginário,
fortalecido na ditadura militar, segundo o qual sua tarefa é a de exterminar os
inimigos da nação.
A Chacina do Jacarezinho foi uma resposta das forças
policiais à decisão do Supremo Tribunal Federal em relação à chamada ADPF das
Favelas, que buscava limitar as operações policiais em meio à pandemia.
Isso ficou evidente na coletiva de imprensa dada após a
ação, quando o representante da Polícia Civil criticou o “ativismo judicial” do
STF. A expressão fazia eco com as críticas de Bolsonaro em relação às decisões
do Supremo relativas às medidas negacionistas do governo federal diante da
Covid-19, e seria amplamente utilizada para criticar a atuação de Alexandre de
Moraes à frente do TSE, já em meio ao processo eleitoral de 2022.
A fala é reveladora de como, para as forças de
segurança, está claro que sua tarefa de exterminar o inimigo da nação é
composta por duas missões complementares e indissociáveis entre si.
De um lado, limpar o país da “subversão” política,
mesmo que para isso seja necessária a abolição violenta do Estado de direito;
de outro, garantir a limpeza social dos indesejáveis, ainda que por meio de
megachacinas evidentemente ilegais.
Ocorre que, enquanto os inimigos a serem combatidos
foram jovens negros e moradores de favelas, o país seguiu convivendo
tranquilamente com esses grupos. Agora, quando fica evidente que os kids pretos
estavam no centro da tentativa de golpe de Estado, eles passam a ser uma ameaça
à democracia.
Seria o caso de levantar a questão, então, sobre o
porquê as forças progressistas e os democratas são incapazes de assumir também
como tarefas complementares a defesa do regime democrático e a luta pelo fim do
genocídio negro mas favelas e periferias.
¨ Após plano de golpe, Exército prepara reformulação para
“kids pretos”
O Exército estuda
uma reformulação da formação e atuação dos militares das Forças Especiais após
a Polícia Federal apontar a atuação direta dos “kids pretos” em uma trama
golpista para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder.
Segundo apurou
a CNN, a Força deu até março para que um diagnóstico completo sobre
eventuais ajustes para a tropa dedicada a missões especiais de alto risco, como
guerra não convencional, guerrilha, operações contra forças irregulares e
contraterrorismo.
Entre as mudanças
em discussão está evitar que militares em começo de carreira possam fazer o
curso de Forças Especiais. A avaliação na cúpula do Exército é de que para esta
formação é preciso um grau de maturidade e experiência maior.
Também estão sendo
estudadas alterações nas atividades que hoje são executadas por Forças
Especiais. A proposta poderá diminuir a atuação dos chamados “kids pretos”.
Com isso, o Exército
não descarta nem mesmo uma redução de número de integrantes do Forças
Especiais. Uma primeira percepção é que o número de militares formados pode ser
maior do que a necessidade real.
Oficiais-generais
admitem que a investigação da Polícia Federal sobre a trama golpista colocou
uma reformulação das Forças Especiais como prioridade, mas destacam que o grupo
de elite é essencial para o país.
O PSOL anunciou no
final de semana que solicitará ao Ministério da Defesa o fim do batalhão das Forças
Especiais. Como mostrou a CNN, o governo federal avalia como
uma medida exagerada a extinção dos “kids pretos”.
A investigação
apontou a participação dos “Kids Pretos” na suposta trama golpista. No dia 19 de novembro,
a PF prendeu o general da reserva, Mário Fernandes, e os tenentes-coronéis
Hélio Ferreira Lima, Mario Fernandes, Rafael Martins de Oliveira e Rodrigo
Bezerra de Azevedo, todos Forças Especiais, pela suspeita de participar de um
plano para matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin
e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em depoimento à PF,
Mauro Cid, que também é das Forças Especiais, relatou que o general Walter
Braga Netto, preso no sábado (14) entregou dinheiro em uma sacola de vinho para o kid preto Rafael de
Oliveira que serviria para o financiamento das despesas
necessárias a realização da operação.
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