Sobre a escravidão mercantil moderna
Respondendo às
críticas de Mário Maestri, expressas nos artigos “A colonização da América em
debate” e “Em busca de um Brasil feudal perdido”, postados no site A Terra
é Redonda, Ronald León Núñez apresenta, no artigo “Sobre a dinâmica da colonização européia”, postado no mesmo site sua perspectiva acerca da colonização
das Américas, na linha dos teóricos trotskistas Nahuel Moreno e George Novack.
Dá assim a um amplo público a oportunidade de conhecer seus argumentos na forma
sintética de um artigo.
Núñez define como
“essencialmente capitalista” nosso processo de colonização. De início,
distingue-se dos teóricos da dependência, como André Gunder Frank, que
caracterizam a colonização simplesmente como “capitalista”. Para Núñez, esta
concepção cometia o “erro básico” de “confundir economia mercantil com modo de
produção capitalista”, “ignorava o problema das relações de produção” e
“deformava o conceito de capitalismo”. Assim, Núñez se distinguiria daqueles
teóricos por reconhecer o conceito marxista de relações de produção. Mas porque
este conceito seria um “problema”?
Núñez começa citando
Moreno, segundo quem “A colonização tem objetivos capitalistas, obter lucro,
mas é combinada com relações de produção não capitalistas”. Esta formulação é
rigorosamente verdadeira, mas requer duas ressalvas.
Sem dúvida, a
colonização teve objetivos capitalistas por parte do capital comercial,
incluindo o tráfico escravista. Abstraindo os aspectos sociais e culturais, e
focando seu objetivo de valorização do capital, pode-se estender o adjetivo
capitalista aos sesmeiros que investiam seu patrimônio na aquisição de escravos
e, no caso do engenho de açúcar, também nas dispendiosas instalações do engenho
e no assalariamento de empregados especializados.
Mas nem todos os
atores da colonização almejavam lucros do capital. A colonização implicava
expansão territorial; as novas terras eram concedidas a nobres, geralmente em
reconhecimento a feitos militares. Estes donatários tinham direito a renda da
terra, não lucro capitalista correspondente a capital investido.
Para atração dos
indígenas, foi fundamental o clero católico, de jesuítas e de várias outras
ordens religiosas, cujo objetivo seria ideológico, religioso, mas cuja
sobrevivência também dependia de renda, não de lucro.
Por fim, mesmo quando
os sesmeiros tenham investido inicialmente capital, uma vez formado o
empreendimento, eles e seus herdeiros viveriam como rentistas, pois os gastos
de manutenção eram, em geral, baixos, até porque o plantel de escravos se
reproduzia em parte.
Entretanto, o tema
central da frase de Moreno é a combinação entre objetivos capitalistas e
relações de produção não capitalistas. Com a ressalva acima, esta combinação
existiu. A questão que se põe é qual aspecto deve ser utilizado para
caracterizar o processo de construção da sociedade colonial: os objetivos
capitalistas de alguns de seus partícipes ou as relações de produção.
Comentando a assertiva
de Moreno, Núñez acrescenta um argumento histórico sobre o processo de
colonização: “este empreendimento europeu, apesar de apelar a uma combinação
desigual de distintas relações de produção, com predomínio das
pré-capitalistas, possuía um sentido histórico ditado pelas tendências gerais
da acumulação primitiva de capital na Europa.”
O que se enxerga como
“sentido histórico” são as conseqüências futuras do desenvolvimento mercantil e
da colonização, que fertilizarão o surgimento do capitalismo nas condições
européias. A expressão é aceitável neste sentido de reconhecimento das conseqüências
do desenvolvimento mercantil moderno. Outra coisa é definir a sociedade
colonial na América pelo seu “sentido histórico”, pelo que ocorrerá no futuro,
em outro lugar. Isso é anacronismo explícito!
Mário Maestri tem toda
razão ao denotar o caráter teleológico da argumentação anacrônica de Núñez. As
consciências e ações humanas se baseiam nas condições de seu tempo; mesmo
quando se pensa o futuro, parte-se das condições e contradições do presente, para
negá-las ou mantê-las. Por isso, a expressão “sentido histórico”, tal como
empregada por Núñez, soa como se algo acima das consciências e ações humanas
comandasse o desenvolvimento histórico em direção a alguma finalidade. Já que
Núñez não recorre a qualquer intervenção divina ou diabólica, este comando
histórico deve ter sido dado pelo tão reiterado objetivo de lucro, como se este
tivesse se manifestado no mercantilismo e atingido, por si mesmo, sua plena
realização no capitalismo.
Assim, Núñez reconhece
a distinção entre capital mercantil e capitalismo, como modo de produção
capitalista, mas identifica o mercantilismo ao capitalismo pelo seu “sentido
histórico”. Reconhece formalmente a conceituação marxista, mas seu anacronismo
teleológico o leva ao mesmo resultado teórico de André Gunder Frank,
“essencialmente”.
De fato, a
historiografia descreve o mundo medieval europeu, depois os descobrimentos e o
mercantilismo no período moderno, e depois o nascimento do capitalismo
industrial no período contemporâneo. Todo historiador destas épocas tende
naturalmente a buscar as relações entre as épocas. Núñez e Frank se inserem
numa tendência muito comum de ver o mercantilismo como período de transição do
feudalismo ao capitalismo, como uma ante-sala do capitalismo que já conteria
sua essência.
Segue a teleologia:
“A idéia central
consiste em que a dinâmica do colonialismo ibérico, para além das formas
arcaicas presentes na estrutura e superestrutura dos espaços colonizados,
esteve intrinsecamente ligada à expansão do mercado mundial dominado pelo
capital comercial que, em última análise, criaria as condições para a hegemonia
do modo de produção capitalista.”
Assim, “para além” das
relações estruturais e superestruturais concretas, isto é, da vida diária e
suas contradições objetivas na Colônia, importariam, para Núñez, as relações
com o mercado mundial e a gênese do futuro modo de produção capitalista. Vê-se
como Núñez resolve o “problema das relações de produção”: reconhece o conceito,
mas o que considera relevante é o que está “para além” dele. Mais do mesmo
nesta outra passagem:
“O fundo da questão
está em compreender qual era o objetivo da produção colonial – para que se
organizava – e tirar todas as conclusões, se o regime de encomendas ou a
escravização de indígenas e africanos, entre outras formas não capitalistas de
exploração do trabalho, se subordinavam ou não ao processo de acumulação
primitiva de capital controlado pelas metrópoles.”
Não. A colonização se
subordinava ao processo de extração de mais valia da sociedade colonial pela
metrópole, envolvendo o capital mercantil, mas também a Coroa, a nobreza e o
clero. As condições de alguns países europeus, a Holanda inicialmente, depois a
Inglaterra, depois outros, propiciaram o emprego de parte desta mais valia como
acumulação primitiva para o modo de produção capitalista nascente naqueles
países. Dizer que a colonização se subordinava ao processo de acumulação
primitiva é reincidir na teleologia; quem traficava africanos, procurava metais
nobres ou construía engenhos pensava em acumular para si e os seus, não para um
modo de produção futuro.
Sobre esta abstração
das condições concretas em favor do que está “para além”, diz Núñez em resposta
a Maestri: “O problema não está em considerar ‘o concreto’, mas em pretender
transformar a parte em totalidade, atribuindo-lhe (…) ‘uma determinação fundamental’.”.
Núñez se apega a esta categoria filosófica, a totalidade. “Neste contexto
histórico, serão as necessidades deste ‘mercado internacional em expansão’ (…)
a totalidade que condicionará os elementos constitutivos de nossas sociedades”.
Argumenta que a
“totalidade condiciona as partes, e não o contrário”. É um postulado temerário.
É válido, por exemplo, quando alguém falece após um processo de deterioração
geral de sua saúde, até atingir um órgão vital, mas não quando alguém morre
pela falência de um órgão vital, num corpo em geral saudável; neste caso a
parte terá condicionado o todo.
Por conta das relações
familiares da nobreza ibérica, Portugal perdeu sua autonomia para a Espanha
após a morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir. A Holanda, pioneira no
desenvolvimento do capitalismo de manufatura, aliada de Portugal, mas inimiga
de Espanha, perdeu seu acesso ao mercado de açúcar brasileiro. Neste momento, o
mercado mundial foi condicionado por uma particularidade da concepção feudal
das monarquias ibéricas. A Holanda passou a explorar o açúcar nas Antilhas, mas
também decidiu recuperar o mercado brasileiro invadindo o Nordeste. Neste
momento, o mercado mundial afetou diretamente a sociedade colonial brasileira,
“para além” das relações econômicas locais.
Nesta linha da
totalidade, Núñez critica os “modoprodutivistas”, como Maestri, que “fixa seu
olhar em uma árvore, certamente frondosa, e perde de vista a floresta”.
Ocorre que a
totalidade de Núñez é parcial. A totalidade condicionadora da sociedade
colonial incluiu a classe mercantil da metrópole, mas também incluiu a sua
nobreza, seu clero, seus deserdados. Incluiu, por outro lado, o tipo de
organização social das tribos americanas, sua adequação ou não a uma ou outra
atividade econômica. Incluiu ainda a existência de um mercado de escravos na
África. Portanto, o papel do desenvolvimento comercial do período moderno para
a gênese do capitalismo europeu não lhe dá o caráter de “totalidade”, nem de
determinação absoluta.
Quando se foca a
produção de açúcar ou de gado na Colônia, a totalidade em consideração inclui
senhor e escravo, ou senhor e peão. Ao considerar esta produção como
capitalista devido ao interesse de lucro obtido pelo senhor através da
participação no mercado mundial, Núñez ignora o produtor direto e toma, como
critério absoluto, o interesse e a prática de quem se apropria da mais valia.
Enfim, esquece a totalidade social em favor de um pólo de sua contradição
fundamental. O contrário do conceito de modo de produção, que se baseia nas
relações entre os pólos, produtor e proprietário.
Em toda sua defesa da
caracterização capitalista, Núñez ignora formalmente, e nega efetivamente, a
resposta categórica que Marx dá a esta questão, valorizando os modos de
produção. Resumo aqui parágrafos bem conhecidos, e que citei no artigo “Em
busca do conceito de modo de produção”, nesta revista. No Prefácio da Contribuição
à crítica da economia política, Marx afirma que a totalidade das relações
de produção “constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a
qual se alça um edifício jurídico e político, e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social”. Com base neste conceito, tipifica
“os regimes asiático, antigo, feudal e burguês moderno” como “épocas
progressivas” do desenvolvimento humano. Ao tratar das formas de renda
pré-capitalista de terra em O Capital, Marx observa que “o segredo
mais recôndito, a base oculta de toda construção social” está na “relação
direta existente entre os proprietários dos meios de produção e os produtores
diretos”. Nas sequências de ambos parágrafos, as relações de produção são
ligadas historicamente ao estágio de desenvolvimento das forças produtivas,
isto é, ao modo de produção no aspecto técnico. Marx era um “modoprodutivista”
incorrigível.
Mas Núñez defende seu
posicionamento também citando Engels e Marx. Já no começo lemos:
“Para o Manifesto, o
mercado mundial capitalista e a exploração colonial constituíram ‘o elemento
revolucionário da sociedade feudal em decomposição’, abrindo caminho –
assumindo a forma de ‘extermínio, escravização e subjugação da população nativa
nas minas’ – para a hegemonia do modo de produção na Europa.”
Sim, a gênese do
capitalismo tem a ver com a expansão do mercado mundial e com relações
coloniais envolvendo escravização e subjugação da população nativa, mas nada
disso caracteriza o modo de produção capitalista.
Em dois parágrafos de
Marx, relativos à escravidão mercantil moderna, há o reconhecimento de um
aspecto capitalista no escravismo mercantil. Da Teorias do Valor,
cita Núñez:
“Na segunda espécie de
colônias – as grandes fazendas (plantations) – destinadas desde o início
à especulação comercial e com a produção voltada para o mercado mundial,
verifica-se produção capitalista, embora formalmente apenas, uma vez que a
escravatura negra exclui o assalariado livre, portanto o fundamento da produção
capitalista. Mas são capitalistas os que fazem o tráfico negreiro. O modo de
produção que introduzem não provém da escravatura, mas nela se enxerta. Neste
caso, capitalista e proprietário da terra são a mesma pessoa.”
Portanto, a produção
escravista mercantil seria capitalista “formalmente apenas”, porque estava
excluído “o fundamento da produção capitalista”, “o assalariado livre”. É
claramente reafirmada a centralidade das relações de produção. O termo
“formalmente” possivelmente se refere à forma de realização da mais valia como
valorização de capital.
Mas Núñez enxerga em
Marx o que quer enxergar. Conclui daquela frase que Marx “afirma que o sistema
de produção não é ‘escravista’, mas que a escravidão se ‘enxerta’ em um todo
mais amplo”.
Ora, em nenhum momento
Marx diz que o sistema de produção não é escravista, nem diz que a escravidão
se enxerta em qualquer lugar. Diz, sim, que “o modo de produção que introduzem
não provém da escravatura, mas nela se enxerta”, isto é, se enxerta na escravatura.
Com certeza Marx se refere ao modo de produção no sentido técnico da expressão;
a obtenção do açúcar a partir da cana, por exemplo, envolvia técnica medieval
européia, ou seja, era um modo de produção que proveio do feudalismo e foi
enxertado na escravidão. Para Marx, atento à relação histórica entre as
relações de produção e o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, este
tipo de “enxerto” de um modo técnico de produção entre relações de produção
distintas certamente despertaria atenção.
Dos Grundrisse,
cita Núñez:
“Se atualmente não só
chamamos os proprietários de plantações na América de capitalistas, mas se eles
de fato o são, isso se baseia no fato de que eles existem como uma anomalia no
interior de um mercado mundial fundado no trabalho livre”.
Aqui, terminologia e
práticas capitalistas, por serem dominantes no mercado mundial, seriam
transferidas para os modos anômalos. Mas este caráter capitalista vem depois de
um “se” condicional.
Mas deste parágrafo,
conclui Núñez: “fica claro que ele (Marx) não concebe a escravidão moderna como
algo em si mesmo, mas como parte anômala de um movimento geral de transição
para o capitalismo”. Novamente, Núñez lê em Marx o que gostaria de ler. Primeiro,
a frase de Marx não trata de qualquer movimento geral de transição, mas de um
momento apenas, contemporâneo ao que Marx escrevia, em que o modo de produção
capitalista dominante no mercado mundial coexistia com o escravismo. Segundo,
Marx trata especificamente do escravismo “em si mesmo”, tanto antigo quanto
moderno, em outras passagens. No artigo “A formação histórica do Brasil em
debate”, transcrevo parágrafos de Marx comparando a escravidão no Sul dos
EUA com o assalariamento no Norte; a comparação não os apresenta como partes de
algum movimento geral de transição, mas como relações de trabalho antagônicas.
Os Grundrisse e Teorias
da mais-Valia são manuscritos econômicos datados entre 1857 e 1863,
que foram publicados postumamente. Sobre ambas citações de Marx acima
repetidas, cabe uma observação do Prof. João Quartim de Moraes: há uma
diferença ontológica entre as obras que um autor decidiu publicar em vida e as
que não publicou. Independente disso, a designação capitalista da produção ou
do proprietário aparece em ambas citações acompanhada de reticências, enquanto
a centralidade do modo de produção é reafirmada, nos dois casos, de diferentes
maneiras.
Convém trazer ao
debate parágrafos do capítulo “Considerações históricas sobre o capital
comercial” de O Capital, em que Marx trata detalhada e
especificamente do tema. O primeiro parágrafo expressa uma consideração de
ordem geral:
“O desenvolvimento do
comércio e do capital comercial leva por toda parte a orientação da produção
para o valor de troca, aumenta seu volume, a diversifica e a cosmopolitiza,
desenvolve o dinheiro tornando-o dinheiro mundial. O comércio age por isso em todas
as partes como solvente sobre as organizações preexistentes de produção, que,
em todas as suas diferentes formas, se encontram principalmente voltadas para o
valor de uso. Até que medida, porém, ele provoca a dissolução do antigo modo de
produção depende, inicialmente, de sua solidez e articulação interna. E para
onde este processo de dissolução conduz, ou seja, que novo modo de produção
entra no lugar do antigo, não depende do comércio, mas do caráter do antigo
modo de produção.”
O texto de Núñez
lembra muito a primeira parte deste parágrafo, mas ignora totalmente a parte
final, em que Marx reitera seu “modoprodutivismo”.
Exemplificando sua
formulação, Marx foca inicialmente o desenvolvimento de modo de produção, no
sentido técnico, na Antiguidade:
“A Roma antiga, já na
época republicana tardia, desenvolve o capital comercial num grau mais elevado
do que ele jamais alcançara antes no mundo antigo sem nenhum progresso do
desenvolvimento dos ofícios; enquanto em Corinto e outras cidades gregas da Europa
e da Ásia Menor um artesanato desenvolvido acompanha o desenvolvimento do
comércio.”
Por fim, um parágrafo
em que Marx se refere especificamente ao mercantilismo moderno:
“Não há nenhuma dúvida
– e precisamente este fato gerou concepções completamente falsas – de que, nos
séculos XVI e XVII, as grandes revoluções que transcorreram no comércio com os
descobrimentos geográficos, e que rapidamente elevaram o desenvolvimento do
capital comercial, constituem um momento principal na promoção da passagem do
modo de produção feudal para o capitalista (…). No entanto, o modo de produção
capitalista se desenvolveu em seu primeiro período, o manufatureiro, somente
onde as condições para tanto haviam sido geradas durante a Idade Média.
Compare-se, por exemplo, a Holanda com Portugal.”
Temos então a opinião
de Marx sobre teorizações que ligam de forma muito direta e ligeira o
mercantilismo ao capitalismo: são “concepções completamente falsas”.
Fonte: Por José
Ricardo Figueiredo, em A Terra é Redonda
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