quinta-feira, 25 de julho de 2024

Samuel Gallo: ‘Educação e informação - das palavras geradoras à alfabetização midiática’

Paulo Freire, na década de 1960, no Rio Grande do Norte, desenvolveu um método de alfabetização que estimulava os adultos a aprender através de palavras que faziam parte do dia a dia dos alunos, como lavoura, enxada, tijolo, palha, já que aqueles que assistiam suas aulas eram agricultores, pedreiros e domésticas. Esse método foi chamado por Freire de palavras geradoras, escolhidas para despertar a consciência crítica dos alunos sobre sua realidade.

Apesar das aulas serem voltadas para adultos, a prática de Freire também despertou a curiosidade de crianças e jovens. Isso demonstra que talvez a maior dificuldade da educação no Brasil não sejam as “ferramentas”, mas sim como elas são utilizadas.

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A educação sempre esteve em segunda prioridade no Brasil, enfrentando inúmeros desafios históricos e a falta de investimento e interesse por parte dos governos. O Plano Nacional de Educação (PNE) previa o gasto público em educação de 7% do PIB até 2019 e 10% do PIB até 2024. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Brasil investiu apenas 5% na educação pública em 2022 [o relatório do 5º Ciclo de Monitoramento de Metas do PNE está disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/gestao-do-conhecimento-e-estudos-educacionais/estudos-educacionais/relatorios-de-monitoramento-do-pne].

O Plano, que teve início em 2014, expirou em junho deste ano, atingindo parcialmente somente quatro das 20 metas estabelecidas. O prazo final do atual Plano foi prorrogado para dezembro de 2025, e o novo PNE para a próxima década está em discussão na Câmara.

Mas por qual motivo não temos um sistema educacional de melhor qualidade? É óbvio. A educação possibilita um pensamento crítico e isso é um problema grave para o sistema. Descaso com a educação, desigualdades sociais e raciais, falta de interesse, carência de programas de incentivo por parte do governo, desentendimento entre o professor e o aluno e problemas estruturais são alguns aspectos que interferem no processo educacional, principalmente nas instituições mais carentes.

<><> Mídia, jornalismo e educação

As relações entre as áreas de comunicação e a educação têm sido decisivas para a configuração atual das sociedades e das novas gerações em formação, visto a inegável influência dos meios de comunicação na educação e na formação de hábitos e valores da população, principalmente da TV, que desde seu surgimento esteve em nossas vidas.

A mídia sempre esteve presente no campo educacional, mesmo que exista certa repressão em relação à sua aplicação nas escolas. Porém, as novas tecnologias ocasionaram transformações sociais e mudanças nos processos de comunicação e produção de conhecimento. Hoje, adquirimos mais informações com mais velocidade e instantaneidade. Mas isso não quer dizer que estamos mais inteligentes, muito menos que podemos adquirir conhecimento apenas pelo computador.

Com a tecnologia presente nos dias atuais, o método tradicional de educação perde força, pois a tecnologia possui vários conteúdos que são mais atraentes ao público do que uma simples aula em uma escola. O imediatismo e a vastidão da internet tornam-se mais interessante aos alunos, porém muitos professores ainda não se sentem preparados para explorar este campo, mantendo o sistema de ensino arcaico.

A educomunicação é uma área do conhecimento que surgiu com as novas tecnologias digitais. É um campo teórico-prático que propõe uma intervenção a partir de algumas linhas básicas como: “educação para a mídia; uso das mídias na educação; produção de conteúdos educativos; gestão democrática das mídias; e prática epistemológica e experimental do conceito” (SOARES et al., 2017).

A internet no processo educacional deve ser utilizada como mecanismo de desenvolvimento crítico, mediada pelos educadores. Estes não têm apenas a tarefa de ensinar e transmitir conhecimento, mas também de atuar como intermediários entre os alunos, utilizando os meios eletrônicos de comunicação como base para o compartilhamento de ideias. Paulo Freire apresenta a televisão como sendo uma coisa fantástica, mas é preciso que as pessoas a encarem de forma crítica, assim como devemos fazer com as novas tecnologias.

O jornalista, como representante da mídia, também está presente no processo de comunicação e educação. Ele atua como uma espécie de professor ao explicar determinados fatos ao público, oferecendo elementos para a formação de opiniões e apresentação dos fatos. Sim, o jornalismo pode ajudar a transformar a educação.

<><> Alfabetização midiática e informacional

Para combater as fake news com mais precisão, cito como exemplo a Finlândia, que possui um programa de combate onde as escolas ensinam a reconhecer as notícias falsas. Através da alfabetização jornalística, os alunos aprendem como identificar manipulações de imagens e vídeos, perfis falsos e a falta de informação pessoal. Lançada em 2014, a iniciativa visa ensinar não apenas estudantes, mas também jornalistas e políticos. O país está combatendo as fake news graças à força dos jornais tradicionais.

A Alfabetização Midiática e Informacional (AMI), conceito apresentado pela Unesco, tem como finalidade contemplar a capacitação de educadores e jovens para o uso crítico de novas tecnologias e produção de conteúdo. Para o jamaicano Alton Grizzle, da Unesco, “todo cidadão precisa desenvolver competências para entender o papel da mídia numa sociedade democrática”. Grizzle tem uma contribuição significativa na promoção da educação para a mídia e a informação, ajudando a capacitar indivíduos para compreenderem, analisarem e utilizarem criticamente as informações que recebem através de diversos meios de comunicação.

O Brasil também tem muito a aprender com o exemplo da Finlândia. Cada vez mais, instituições de ensino precisam adotar métodos que promovam uma forte ligação entre a prática educomunicativa e a produção de conteúdo educativo.

O programa “Educamídia”, desenvolvido pelo Instituto Palavra Aberta em parceria com o Google, oferece formação e recursos para professores, promovendo a educação midiática nas escolas. Já o projeto “Vaza, Falsiane!”, utiliza uma abordagem lúdica e interativa para ensinar crianças e adolescentes a identificar notícias falsas e desenvolver uma postura crítica em relação às informações. Ambas as iniciativas têm um impacto significativo na formação de uma sociedade mais bem informada e democrática.

Ao incorporar esses métodos, o Brasil pode caminhar na direção de uma educação mais inclusiva e adaptada aos desafios contemporâneos da comunicação e da informação. Entender o papel fundamental das mídias e da informação para a sociedade é somente o início. A tecnologia não causa mudanças apenas no que fazemos, mas também em nosso comportamento e na forma de como adquirimos conhecimentos no relacionamento com o mundo. São mudanças colhidas pelo processo de globalização, do qual buscamos um entendimento dos fenômenos na sua totalidade.

Em seu livro “Extensão ou comunicação?” (Chile, 1968), Freire diz que a educação é um processo contínuo de adaptação e evolução cultural, não uma fixação de valores estáticos: “A educação ‘dura’ na contradição permanência-mudança. Esta é a razão pela qual somente no sentido de ‘duração’ é possível dizer que a educação é permanente. Por isto mesmo, permanente, neste caso, não significa a permanência de valores, mas a permanência do processo educativo, que é o jogo entre a permanência e a mudança culturais”.

E que assim, educação e informação – lado a lado – possam criar cidadãos críticos e conscientes, capazes não apenas de assimilar conhecimentos, mas de transformar suas realidades e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

 

¨      A desinformação como modelo de negócio. Por Ergon Cugler

Em 2020, o mundo assistiu perplexo ao avanço não apenas do vírus sars-cov-2 durante a pandemia da covid-19, mas também aos efeitos da desinformação e da desordem informacional tomando conta das arenas públicas. Eis então que o termo “infodemia” é alavancado, representando um grande fluxo de informações que se espalham através do ambiente digital e sobrecarregam a sociedade com distintas e antagônicas “versões dos fatos”.

O problema é que essa sobrecarga de informações trouxe efeitos nocivos às pessoas que sequer conseguem mais saber o que é real em meio a tanta desinformação. Exemplo disso é o levantamento da American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, que aponta que informações falsas (como as de uso de supostas medicações caseiras contra a covid-19) foram diretamente responsáveis por ao menos 800 mortes, além de outras 5.800 hospitalizações, só em 2020.

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Se por um lado a desinformação traz efeitos nocivos às nossas vidas – levando ao consumo de substâncias que podem custar a nossa saúde, por exemplo -, por outro tem-se tornado evidente o quanto ela também pode beneficiar grupos maliciosos que lucram com a sua disseminação. Em meio às teorias da conspiração contra as vacinas e promessas milagrosas de supostos medicamentos de cura universal, nos resta questionar, “quem lucra quando a mentira avança?”.

<><> Dióxido de cloro (ClO₂)

O dióxido de cloro (ClO₂) é originalmente utilizado pela indústria para o branqueamento de polpa de madeira, mas é também visto no alvejamento de farinha e para a desinfecção de água. Contudo, este produto, que funciona bem para a limpeza industrial, tem sido disseminado falsamente como uma suposta “cura universal”, ou ainda como um “detox vacinal”.

Vendidos em opções de “MMS” e “CDS”, os frascos de dióxido de cloro são abertamente comercializados em comunidades clandestinas do Telegram, além de estarem publicamente em sites de e-commerce, como o Mercado Livre e a Amazon. Por trás daquilo que parece ser uma inocente crença nos poderes terapêuticos de uma substância, organiza-se todo um modelo de negócio que lucra conforme avança a desinformação sobre o seu uso supostamente milagroso.

Dentre as promessas do dióxido de cloro, temos mais de 90 doenças ou condições listadas como supostamente “curáveis” por ele. Desde aids (HIV), até artrite reumatoide, ou ainda autismo, cálculo renal, fibromialgia, tuberculose, tumor e tantas outras, as propagandas disseminadas pelos produtores e comerciantes de dióxido de cloro incitam quase que uma busca imediata para aqueles que estiverem desesperados com a sua condição atual. No caso do “detox vacinal”, o dióxido de cloro promete “desintoxicar” o usuário até de supostos nanorobôs e microchips das vacinas, relacionando teorias da conspiração com a febre da substância.

Não bastasse lucrar com a venda, as dezenas de milhares de usuários que compõem as redes no Telegram, por exemplo, são expostos diariamente a ebooks e cursos sobre “as melhores formas de se consumir o dióxido de cloro”. A monetização, portanto, não se restringe ao frasco de ClO₂, mas inclui até a transformação desse produto em um estilo de vida, oferecendo infoprodutos agregados. Em alguns casos, é passada a ideia de um “detox matinal”, em que um coach propõe que o usuário consuma o seu dióxido de cloro acompanhado de banhos frios e caminhadas pela manhã.

<><> Lucro

Em 2021, um vazamento revelou o que foi apelidado de “Facebook Papers”, um conjunto de documentos provando que o Facebook ignorou inúmeras fake news apenas para preservar o seu lucro, mantendo conteúdos nocivos na plataforma, mesmo após serem notificados. Somando-se a outras denúncias, o papel das big techs na disputa da realidade ganhou ainda mais relevância.

Atualmente, o modelo de negócio das plataformas baseia-se em manter o usuário o máximo de tempo possível dentro delas. Se um usuário gosta de carros, por exemplo, os algoritmos das plataformas irão preferir distribuir conteúdos relacionados a carros para esse usuário. E o mesmo ocorrerá com usuários que gostem de maquiagem, basquete, misticismo ou qualquer outro assunto. Contudo, uma pesquisa do Instituto Think Twice Brasil revelou que, por exemplo, conteúdos violentos são estimulados para jovens e adolescentes no TikTok, onde os algoritmos aproveitam-se das condições dos jovens e adolescentes para que então se viciem neste tipo de conteúdo.

Não muito distante, quando buscamos sobre “dióxido de cloro” ou “detox vacinal”, é fácil encontrar recomendações para compra logo na primeira página do Google, ou ainda comunidades abertas em redes sociais, mantidas pelas plataformas. E mesmo com constantes notificações do poder público, tais plataformas apelam pelo direito a uma suposta liberdade de expressão, mantendo tais comunidades e afirmando indiretamente que usuários maliciosos possuem uma intocável liberdade para intoxicar os demais com substâncias químicas, lucrando com a mentira.

Quando vale tudo pelo lucro, temos jovens e adolescentes radicalizados apenas por ser mais fácil prender a atenção destes com conteúdos violentos. Ou ainda, temos curas milagrosas causando danos à saúde das pessoas, apenas porque tais gurus pagaram pelo impulsionamento ou por uma melhor posição na prateleira das big techs.

Vale reforçar que, mais do que aquele que comercializa o dióxido de cloro, lucra também aquele que propaga desinformações contra as vacinas, pois este cria demanda para o ClO₂ entrar em cena como uma solução milagrosa para o problema apresentado. Enquanto alguns defendem que a internet seja terra sem lei, outros lucram com um modelo de negócio que aprendeu a criar a própria demanda com o caos social e com a desinformação, propiciando, em seguida, uma oferta mentirosa que se transforma até mesmo em infoprodutos e em estilo de vida.

 

Fonte: Jornal GGN/Jornal da USP

 

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