Por que tem tanto boi na Amazônia?
O que se chama hoje de
Amazônia legal abrange oito estados (todos os da Região Norte e o Mato Grosso),
além de parte do Maranhão. Ali está a maior concentração (44%) de rebanho
bovino do Brasil. Mas como eles foram parar lá?
A pecuária na Amazônia
tem 402 anos de história, mas se intensificou por volta dos anos de 1960,
quando o governo da ditadura militar atraiu grandes investidores para a região
através de incentivos fiscais e com slogans como "Toque sua boiada para o
maior pasto do mundo".
Na época, a maioria
dos empresários que migraram para a região optou pela criação de gado, pois ela
permitia uma ocupação mais rápida do território, ao demandar menos
investimentos em mão de obra e tecnologia
A expansão da
atividade deu início a um processo acelerado de desmatamento da região, que se
seguiu nas décadas seguintes, apoiado também pela mineração e agricultura -
principalmente pela soja, a partir de meados dos anos de 1990.
A extração de madeira
também devastou o bioma, mas ela não é classificada como desmatamento por não
remover toda a vegetação.
• O que a pecuária tem a ver com o
desmatamento da Amazônia?
Apesar de outras
atividades contribuírem para a derrubada de floresta, a pecuária sempre
despontou como a principal causa de desmatamento da Amazônia.
➡️De 1985 a 2022, 88% das áreas desmatadas viraram pastagem, 11%,
agricultura e 1%, silvicultura, destaca a porta-voz do Greenpeace Brasil Ana
Clis Ferreira, que consolidou dados da plataforma MapBiomas, que reúne
estatísticas de desmatamento dos últimos 39 anos.
➡️Um recorte temporal mais recente mostra uma dinâmica semelhante
no que diz respeito à criação de gado: 96,4% das áreas desmatadas entre 2018 e
2022 foram convertidas em pastagens, enquanto 0,83% viraram mineração e 0,68%,
agricultura.
<><> Quer
saber mais? Veja nos tópicos abaixo:
• como se deu a especulação de terras na
Amazônia;
• como a pecuária se estabeleceu na
Amazônia;
• quando ela começou a provocar
desmatamento;
• as pesquisas para aumentar a produção
sem desmatar;
• o que explica as taxas de desmatamento
entre 2000 e 2023.
<><>
Especulação de terras
Segundo o coordenador
do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal da USP Ricardo Rodrigues, a
abertura de pastagens, atualmente, está mais relacionada a um problema de
especulação de terras do que com a necessidade de aumentar a produção. Isso
porque, hoje, o Brasil já tem técnicas para expandir a criação de gado nos
pastos que já existem.
"Infelizmente, no
mercado da terra no Brasil, principalmente na Amazônia, a área sem florestas
vale muito mais que a área com florestas. No município de Paragominas, por
exemplo, uma área sem floresta vale R$ 30 mil o hectare ou mais. E uma área com
floresta vale R$ 3 mil o hectare", diz Rodrigues.
"O único detalhe
é que a pecuária é a atividade agrícola mais barata e mais fácil de ser tocada
nessas condições. Então, por isso, ela entra como uma opção de uso daquela
terra”, acrescenta.
“O pecuarista [...]
que está na frente do desmatamento, ele não está preocupado com a produtividade
da sua pecuária, mas em manter aquela área aberta para, no futuro, conseguir
vender", conclui Rodrigues.
Segundo ele, esse tipo
de situação é diferente do pecuarista da Amazônia que, realmente, tem na
criação de gado a sua fonte de renda. "Esses estão focados na atividade e
fazem tudo com nota, pagando imposto".
• Onde está o problema
A diretora de Ciência
do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) Ane Alencar diz que, de
fato, o desmatamento na Amazônia é mais recorrente em terras públicas invadidas
ilegalmente do que em propriedades privadas.
Mas o grande nó de
tudo isso é que toda a cadeia de produção de carne, desde os produtores
regulares até os frigoríficos, acaba contribuindo com o desmatamento quando
compra animal de áreas desmatadas.
E essa é uma situação
recorrente. Tanto é que, em 2009, o Ministério Público Federal (MPF) fechou
acordos com frigoríficos da Amazônia exigindo que eles parassem de comprar bois
de áreas desmatadas. A iniciativa foi criada após a divulgação de um relatório
do Greenpeace chamado "Farra do boi na Amazônia", que denunciava a
situação.
Esses acordos,
contudo, são voluntários e o Brasil ainda não tem uma política pública de
rastreabilidade da cadeia bovina para fins ambientais.
De 2009 para cá,
entretanto, o mercado de carne, principalmente os frigoríficos, tem tentado se
adequar, diante de pressões grandes supermercados, restaurantes e importadores
de carne, como a União Europeia, que irá proibir a entrada de produtos com desmatamento
a partir de 2025.
É por isso que nos
últimos 15 anos, frigoríficos e ONGs brasileiras vêm criando formas de rastrear
a origem da carne, mas, até o momento, só têm conseguem monitorar, com
precisão, seus fornecedores diretos, ou seja, as fazendas que vendem boi
diretamente a eles.
"Às vezes, o
animal passa por quatro, cinco fazendas antes de chegar na propriedade que vai
vender para o frigorífico. Então a gente só está olhando para a última fazenda.
A gente precisa olhar para as demais", conta o procurador do MPF Daniel Azeredo.
Essas outras
propriedades são conhecidas como fornecedores diretos.
O g1 visitou um
pecuarista da Amazônia que está implementando um sistema de rastreabilidade
individual do seu rebanho com chips e brincos, uma forma que pode controlar
melhor as compras das fazendas e frigorífico.
• Boi 'pé duro' e carne cara
A pecuária na Amazônia
começou no século 17, quando colonizadores portugueses levaram, para a região,
cabeças de gado oriundas da Península Ibérica. Os animais entraram por Belém
(PA) e foram se espalhando para outras regiões, como a Ilha do Marajó, que se
tornou o maior centro pecuário da Amazônia até os anos de 1960.
Na época, o gado
criado na região era o crioulo, também conhecido como "pé-duro",
justamente por sua carne não ser nada macia. Além disso, ele levava até 10 anos
para ser engordado - hoje se engorda um boi em três anos.
Por esses motivos, os
estados da Amazônia tinham que comprar carne de outras regiões do país, conta
Moacyr Bernardino Dias Filho, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), na unidade Amazônia Oriental.
"A carne bovina
vinha de avião. Eles eram conhecidos como 'aviões carniceiros' e vinham do
antigo Goiás [Tocantins]. Então, imagina o preço dessa carne", diz o
pesquisador.
Nesse período, as
pastagens eram naturais, ou seja, não eram plantadas.
• Pecuária cresceu na ditadura
A partir dos anos de
1960, a pecuária começou a se desenvolver mais intensamente na Amazônia, com a
inauguração da rodovia Belém-Brasília, em 1959, impulsionando a criação de gado
em áreas próximas da nova estrada.
Segundo Dias Filho,
essas fazendas eram de pequena escala, pois muitas não tinham recursos para
aumentar as pastagens, situação que começa a mudar em 1966, quando o governo
militar implementou a Operação Amazônia, uma política pública para atrair
investidores para a região.
A diretora de Ciência
do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) Ane Alencar pontua que,
nesta época, a Amazônia foi vista pelo governo como um "inferno
verde", uma terra "que tinha que ser ocupada e desmatada" sob o
risco de ser "invadida" por estrangeiros.
"A Operação
Amazônia oferecia muitas benesses para os empreendedores: juros praticamente
negativos nos empréstimos e diminuição de imposto de renda", pontua o
pesquisador da Embrapa.
Para ajudar a gerir a
operação, os militares criaram, no mesmo ano, a Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), além do Banco da Amazônia, para
administrar os recursos dos empréstimos.
Nesse contexto, a
criação de gado se destacou. "Mais de 50% dos projetos que a Sudam recebia
eram de pecuária. Os empreendedores que vieram para cá eram de São Paulo, Minas
Gerais e outros estados com forte tradição pecuária", destaca Dias Filho.
"Eles chegaram em
uma região sem infraestrutura de estradas, de energia elétrica, de saúde ou de
qualquer outro tipo. E optaram pela pecuária. Por quê? Porque a pecuária exige
menos recursos humanos e menos tecnologia por área", conta.
"Voce chega numa
área, derruba floresta, queima, pega o avião e joga semente. Depois vem com o
caminhão, coloca o gado e vai embora. Depois de um tempo, você volta e recolhe
os animais que a onça não comeu e tu ganha dinheiro", detalha.
Já o plantio de
qualquer alimento exige uma preparação maior do solo, como adubação e uso de
defensivos. "Plantar seringueira, plantar dendê, exige que você, pelo
menos, esteja na área tomando conta", diz.
Vale destacar que este
período foi marcado também pela entrada, na Amazônia, do boi zebuíno, que tem
uma carne de mais qualidade. Além disso, as pastagens passaram a ser plantadas.
• Pastos começaram a degradar
A expansão da pecuária
na Amazônia, portanto, deu início a um processo de desmatamento intenso do
bioma que foi estimulado pela degradação das pastagens.
Isso porque os
pecuaristas começaram a perceber que os pastos perdiam qualidade depois de três
anos de uso pelos bois. Ou seja, o capim não crescia tão bem e plantas daninhas
avançavam sobre o local.
"E, então, o que
se fazia? Com a abundância de terras e dinheiro fácil, se abandonava aquelas
áreas, se partia para uma nova área de floresta e começava tudo de novo. Então,
criou-se um estigma – correto para a época – de que a pecuária era uma atividade
danosa e improdutiva ao meio ambiente", afirma Dias Filho.
• Programa Pró-pasto
Foi nesse contexto que
a Embrapa começou a estudar as causas da degradação do solo e a buscar
soluções. Em 1976, a estatal lançou o programa Pró-pasto, com experimentos nos
municípios paraenses de Paragominas e Marabá, além de cidades de Roraima,
Rondônia, Amazonas e Acre. "Foi um projeto imenso", lembra Dias
Filho, que fez parte da equipe.
Por meio do Pró-Pasto,
pesquisadores desenvolveram capins mais produtivos e técnicas de recuperação e
adubação de pastagens, que começaram a ser aplicadas por alguns produtores
rurais a partir da segunda metade dos anos de 1980.
"Começou a haver
uma mudança de mentalidade porque cerca já estava topando com cerca. Então, eu
não podia mais abandonar uma área e partir para outra porque já tinha outro
dono do lado", afirma o pesquisador.
"Além disso,
aumentou a pressão governamental e externa em termos de meio ambiente. Então, o
produtor se sentiu compelido a aumentar a sua produtividade [ou seja, a
produzir o mesmo ou mais em menos terra]".
• Produzir mais em menos terra
Dias Filho considera
que a pecuária começou a passar por uma "profissionalização", que vem
se desenvolvendo gradativamente até hoje, mas com uma diferença.
Se, a partir dos anos
1990, recuperar pastagem passou a ser uma preocupação, a partir dos anos 2000,
aumentou o interesse dos produtores de impedir a degradação do solo.
"E isso por quê?
Porque custa caro errar. Veja: para recuperar uma pastagem em degradação, eu
gasto 3 vezes mais do que para manter uma pastagem saudável. Já para recuperar
uma pastagem totalmente degradada, eu gasto 5 vezes mais", diz.
Para Dias Filho, a
tendência da pecuária na Amazônia é produzir mais em menos terra.
"Há uma pressão
ambiental. Tem gente vigiando o produtor. O mercado está exigente, não só em
qualidade do produto, mas também em origem, se não é oriundo de desmatamento
recente".
Segundo ele, o
pecuarista da Amazônia tem produzido mais por área do que há 20 anos atrás.
"Na Amazônia, o rebanho bovino cresceu 43% mais do que as áreas de
pastagem", pontua, ao citar dados da Embrapa.
• Taxas de desmatamento
Ane Alencar, do Ipam,
pontua que a implementação do Código Florestal, em 2012, foi um grande avanço
no combate ao desmatamento.
A legislação obrigou
os produtores rurais da Amazônia a preservarem 80% da sua propriedade, enquanto
os 20% restantes ficaram liberados para a produção.
Mas ela ressalta que
as mudanças começaram a acontecer antes, no início do primeiro governo de Luiz
Inácio Lula da Silva, em 2003, quando Marina Silva assumiu o Ministério do Meio
Ambiente.
"O governo
começou a olhar para a especulação e começou a tirar terras do mercado ilegal,
a criar unidades de conservação, demarcar terras indígenas", conta.
Segundo ela, esse
contexto explica as quedas da taxa de desmatamento da Amazônia Legal a partir
2005 e, posteriormente, a sua estabilização, de 2012 a 2018.
O desmatamento,
contudo, voltou a subir em 2019. "No primeiro ano do governo [de Jair]
Bolsonaro, houve uma explosão de ocupação e desmatamento em terras públicas. E
isso aconteceu por um enfraquecimento dos órgãos fiscalizadores", diz Ane.
A trégua veio em 2023,
quando a taxa de desmatamento da Amazônia caiu 36,7%. Segundo Ane, a isso
ocorreu por causa de uma retomada dos esforços de fiscalização.
"Como a vasta
maioria do desmatamento na região tem evidências de ilegalidade, quando o risco
de ser pego, penalizado ou mesmo de não conseguir se beneficiar do
desmatamento, o desmatamento tende a cair", reforça Tasso Azevedo,
Coordenador Geral do MapBiomas.
Fonte: g1
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