sexta-feira, 26 de julho de 2024

Poderá o CFM servir à saúde pública?

“Nos últimos 5 anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) serviu como satélite de políticas públicas empreendidas pelo governo Bolsonaro. Tentou através de resoluções coibir os médicos de exercer seu mister de acordo com a legislação vigente.” É assim que o médico Alex Romano, candidato à cadeira de conselheiro federal de medicina no Rio de Janeiro, define a atuação do órgão federal que deveria regular o exercício da medicina.

O que se viu ao longo dos últimos anos, inclusive antes da ascensão de Bolsonaro, foi uma autarquia em pé de guerra com sua própria função institucional e alheio a parâmetros básicos de saúde coletiva.

A poucos dias das eleições para o CFM, que acontecem entre os dias 6 e 7 de agosto, médicos de chapas oposicionistas à atual gestão falaram ao Outra Saúde sobre a necessidade de retomar o órgão das mãos de uma minoria de fanáticos que o teria sequestrado a partir de uma série de interesses privados e suas agendas.

“O CFM tem de participar de instâncias de controle social, ser aberto ao diálogo, e isso tem acontecido muito pouco. Por isso nos organizamos para disputar essa eleição, o que foi saudado por muita gente que vinha ignorando os processos internos do órgão”, afirmou a médica e professora Silvia Uehara, candidata da oposição no Mato Grosso do Sul.

O órgão se tornou um descarado palanque de um conservadorismo fanático e anticientífico, em especial na pandemia, quando bancou as fraudes de Bolsonaro a respeito do tratamento precoce para covid, indicando remédios nocivos ao organismo, e foi omisso na defesa de políticas sanitárias amplamente defendidas pela comunidade médico-científica. Mas não é só isso: o CFM também se afastou das instâncias de elaboração política e participação social.

“Várias comissões do CFM, como de saúde da mulher, nunca tiveram uma reunião agendada. Outras se reuniram pela última vez em 2019. Precisamos mudar isso. O Conselho Federal de Medicina está fora do Conselho Nacional de Saúde, abriu mão dessa participação democrática e do debate ético e científico. Fora do Conselho Nacional de Saúde, ele não participa de comissões importantes de forma assídua, como, por exemplo, da Comissão Nacional de Residência Médica”, criticou Uehara.

•        Polarização inevitável

Como notado pela sociedade, as eleições do órgão ganharam conotação especial e se tornaram mais uma inegável expressão da polarização ideológica que marca o Brasil.

No Rio de Janeiro, onde Alex Romano concorre, tal simbologia é até mais fácil de identificar. Sua chapa tenta derrubar o atual conselheiro Rafael Câmara Parente, secretário de Atenção Primária à Saúde no governo Bolsonaro. Ou seja, uma peça chave na maior crise sanitária do país, que, segundo pesquisadores e entidades como a Abrasco, pelo menos 300 mil mortes poderiam ser evitadas.

Se diante do maior desafio de sua vida o ex-secretário pouco apareceu ao público, ao fim do governo do capitão se revelou um virulento ideólogo da extrema-direita de jaleco. Suas manifestações raivosas e politizadas são frequentes em artigos, a exemplo de um, recém-publicado na Gazeta do Povo, no qual acusa “o PT de acabar com a medicina”, sem apresentar quaisquer argumentos.

Entre outros disparates, afirma que os cubanos que vieram à primeira edição do programa Mais Médicos eram “agentes infiltrados” e os governos petistas teriam incentivado a prática da medicina por pessoas não diplomadas. No entanto, ao acabar com o Mais Médicos e fracassar na implantação do Médicos pelo Brasil, o Ministério da Saúde do qual foi um dos principais líderes nada fez para facilitar a revalidação de diploma de 15 mil profissionais estrangeiros disponíveis no país. Tal inação foi decisiva para a geração de vazios assistenciais que deixaram até metade da população sem acesso efetivo ao SUS. Por fim, disse que a nova edição do programa, com recorde de inscritos e novidades em termos de progressão de carreira, seria inaceitável.

Graça a figuras deste tipo e sua atuação notoriamente sabotadora, o CFM hoje se revela um “perigo à sociedade”, como afirmou ao Outra Saúde o médico ginecologista Olímpio Moraes.

“Desde a época da pandemia, quando estimulou a cloroquina, não colocou freio nas fake news, fez homenagens a ministro da saúde negacionista, deixou mentiras antivacina rolarem soltas… Eles rasgaram todo o código de ética médica. É uma coisa terrível, porque a história do CFM sempre foi uma história de orgulho para a classe médica, de defesa do Código de Educação Médica”, falou Moraes a este boletim.

Posteriormente, e provavelmente de olhos nas eleições, o órgão passou a se inocentar da responsabilidade do avanço do PL 1904, que acabou conhecido como PL do Estupro e foi publicamente execrado. Mas basta visitar as redes sociais de Câmara Parente para ver como o CFM se orgulha de atacar o direito ao aborto legal. Isso se reflete, por exemplo, na perseguição a tal serviço e seus profissionais em São Paulo – cujo prefeito é o bolsonarista Ricardo Nunes.

“O aborto é permitido no Brasil no caso do estupro, mas 95% da população não tem acesso ao serviço. E não temos um CFM que cobra ampliação do serviço com atendimentos dignos, pelo contrário, estimula o não atendimento. O CFM deveria ser interditado, a autarquia deixou de proteger a sociedade, virou um perigo”, atacou Olímpio Moraes, candidato ao conselho em Recife.

Nesse caso, o STF teve que suspender resolução do CFM que limita o acesso ao aborto legal. De todo modo, às vésperas das eleições, os bolsonaristas que fizeram do órgão seu próprio aparelho político, tentam se vender como amigos da ciência e da saúde pública. Nos últimos dias, o órgão tenta divulgar ações mais simpáticas ao público. Uma delas é a solicitação à Anvisa de liberação do fenol para tratamentos de câncer. Outra iniciativa foi o convite ao vice-presidente da república, Geraldo Alckmin, para a 16ª edição da Conferência Mundial de Bioética, Ética Médica e Direito da Saúde, que ocorre entre 24 e 26 de julho em Brasília e promete “debates de altíssimo nível”.

Além disso, alega ter pedido à Polícia Federal investigação a respeito do disparo ilegal de mensagens de campanha nesta semana, destinada a médicos com direito a voto, que receberam mensagens contra as chapas tidas como “esquerdistas” para o pleito de São Paulo. Isso já tinha acontecido na eleição para os conselhos regionais no ano passado, entre outros abusos de poder e cerceamento de opositores, mas nada aconteceu após a vitória de chapas conservadoras.

•        Precarização da profissão e representatividade

Como destacou Uehara, o CFM evitou ao máximo o debate nos últimos anos, ao se isolar de instâncias plurais de elaboração técnica e se afirmar como “espaço seguro” de fanáticos políticos sem respaldo na própria categoria que deveria representar – em especial no serviço público.

“Queremos trabalho seguro e decente, conforme as orientações da Organização Internacional do Trabalho, carreira única de Estado para que os médicos possam trabalhar em menos vínculos, com salário decente, tempo para se atualizar e condições de participar em congressos, que se tornaram muito caros. Esse financiamento pode ser tripartite, com contribuição municipal, estadual e federal, como já acontece, por exemplo, no pagamento das bolsas dos profissionais providos pelo Mais Médicos”, defende.

Conforme recapitula Alex Romano, o órgão deve voltar a se concentrar em sua função essencial, isto é, balizador do exercício da profissão, e não um ente que se atribui funções políticas e jurídicas que cabem a outras instituições, como o próprio Ministério da Saúde.

“O CFM é uma instância superior aos conselhos regionais, onde os processos julgados são revistos. Também normatiza através de resoluções a prática médica no país. Segundo a lei de 3268/57 cabe ao CFM exercer a fiscalização do exercício ético-profissional da medicina. O CFM tem que ter uma agenda que privilegie o Sistema Único de Saúde, onde 70% dos médicos brasileiros trabalham. Precisa representar todos os médicos e não uma parte”, resume.

Silvia Uehara, por sua vez, acrescenta que a questão da representatividade de gênero é outra barreira a romper, mais ainda após as agressões do órgão tomado por homens bolsonaristas à saúde da mulher nos últimos anos – o que se atesta através de diversos indicadores oficiais, como o aumento das mortes maternas.

“São 28 representantes titulares. Dos 28, apenas 8 são mulheres. E pelo próprio levantamento da Demografia Médica do Conselho Federal de Medicina com outras instituições de saúde, em 2035, a gente vai ter mais de 70% da força de trabalho de medicina representada por mulheres. A partir de 2024, há 50,2% de mulheres na força de trabalho”, afirmou.

 

Fonte: Por Gabriel Brito, em Outra Saúde

 

Nenhum comentário: