O que foi o Cerco de Piratininga, o 9 de
julho há 462 anos que permitiu São Paulo existir
A história paulista
recorda em 9 de julho a Revolução Constitucionalista de 1932, mas o 9 de julho
que permitiu que a cidade de São Paulo existisse aconteceu muito antes, em 1562
— 462 anos atrás.
Foi quando ocorreu o
episódio que entraria para a história como o Cerco de Piratininga, uma guerra
indígena contra a incipiente vila que constituía o núcleo da futura maior
cidade brasileira.
O que ocorreu foi uma
guerra entre povos indígenas, mais especificamente entre aqueles que haviam
firmado alianças com os portugueses colonizadores e aqueles que eram contrários
a esses acordos.
De acordo com o
historiador Afonso D'Escragnolle Taunay (1876-1958), indígenas das tribos
guarulhos, guaianás e carijós firmaram uma coligação e lutaram contra a aliança
formada pelo grupo liderado pelo tupiniquim Tibiriçá (? - 1562) e os padres
jesuítas que ocupavam o planalto paulista.
Para o historiador
Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp),
"foi um dos primeiros conflitos abertos envolvendo o uso e a ocupação da
terra e as relações sociais entre interesses conflitantes no planalto paulista:
Igreja Católica, colonos, autoridades coloniais, lideranças indígenas e grupos
indígenas."
Conforme narrou, em
carta, o padre José de Anchieta (1534-1597), o ataque dos indígenas ocorreu, de
forma organizada, na parte da manhã. Fazia frio. O foco foi o ponto onde estava
localizado o colégio dos jesuítas, exatamente onde se encontra hoje a igreja do
Pátio do Colégio. Os nativos estavam "pintados e emplumados",
seguindo a tradição dos mesmos em episódios de guerra.
Eles gritavam palavras
de ordem, em tupi, como "morte aos brancos" ou "morte aos
portugueses". A operação foi liderada por um líder indígena chamado
Jaguaranho (? - 1562), sobrinho de Tibiriçá.
E coube a Tibiriçá o
papel de herói, para a ótica portuguesa, dessa batalha. Nas palavras do
jornalista Roberto Pompeu de Toledo, que narra o episódio em seu livro A
Capital da Solidão, o tupiniquim se tornou o "salvador de São Paulo de
Piratininga, diante do maior ataque que sofreu nos primeiros anos".
"Isso ocorreu num
mês de julho em que fazia muito frio. Os inimigos, numa coligação de índios das
redondezas, alguns dos quais haviam morado na aldeia dos padres e agora a
renegavam, atacaram pela manhã, pintados e emplumados, e fazendo grande alarido",
pontua o jornalista em seu livro.
"Entre eles
vinham inclusive membros da família de Tibiriçá, de modo que a guerra ganhou a
feição de terrível luta fratricida", aponta Toledo.
De acordo com texto de
José de Anchieta, houve encontros, "às flechadas, de irmãos com irmãos,
primos com primos, sobrinhos com tios".
• Tibiriçá e a guerra
Hábil nas
articulações, Tibiriçá já antevia o ataque e formou um pequeno exército,
recrutando integrantes de três aldeias vizinhas para defender a vila e a
comunidade formada então por 12 padres jesuítas.
Foram dois dias em que
a futura cidade de São Paulo ficou cercada. Por fim, as tropas de Tibiriçá
levaram a melhor. Um dos inimigos, prisioneiro, pediu perdão para os padres e
disse que aceitaria ser feito escravo. Tibiriçá não se fez de rogado: com uma
espada, conforme relato de Anchieta, matou-o com um golpe que esfacelou seu
crânio.
O padre jesuíta
enaltece o papel do líder indígena aliado dos portugueses. Coloca-o no papel de
"fundador e conservador da Casa de Piratininga".
Era um momento
tumultuado aquele no planalto paulista. A vila de Santo André da Borda do
Campo, primeira aglomeração europeia na América portuguesa longe do litoral,
havia sido fundada em 1553 graças, principalmente, às alianças garantidas pelo
explorador João Ramalho (1493-1582), que se casou com a filha do cacique
Tibiriçá e iniciou uma verdadeira dinastia de mamelucos.
Mas Santo André vivia
sob constantes ataques dos índios tamoios e, por volta de 1560, a aglomeração
portuguesa que ali existia acabou não resistindo. Homem poderoso daquelas
cercanias, Ramalho acabou se transferindo, junto aos seus familiares, para a
região do Pátio do Colégio. Ali acabou nomeado capitão-mor.
Geograficamente, era
uma região mais protegida. Para historiadores, a Vila de São Paulo de
Piratininga, na verdade, deve sua gênese à transferência do núcleo europeu da
Vila de Santo André da Borda do Campo.
Mas essa nova
configuração fez com que ocorresse uma acomodação das lideranças, tanto com os
padres jesuítas que já haviam estabelecido um colégio para catequizar índios no
planalto paulista, como com as tribos indígenas do entorno.
• Batalhas coloniais
Professor na
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o historiador José Carlos
Vilardaga recorda que esses ataques a núcleos coloniais eram constantes no
período e, portanto, foi graças "à vitória dessa aliança de uma parte dos
indígenas com padres e colonos que a sobrevivência material do núcleo que daria
origem à São Paulo sobreviveu".
"A forma com que
depois ali se tornaria a cidade de São Paulo, de alguma maneira, ocorreu a
partir da vitória desses aliados. Não era nada extraordinário nem fora do
contexto o abandono de vilas no período colonial, tanto na América portuguesa
quanto na espanhola [por conta de animosidades com os nativos]. A permanência
ou não de um núcleo colonial nos primeiros anos de colonização era exatamente a
consequência do sucesso ou insucesso com alianças firmadas com os grupos
indígenas locais", explica Vilardaga, citando o fracasso da vila de Santo
André da Borda do Campo como um exemplo disso.
época de sua fundação,
pelos idos de 1560, foi uma constante", complementa o historiador Luís
Soares de Camargo, diretor do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo.
"Conflitos, escaramuças, ou até graves confrontos ocorriam constantemente
face à chegada e estabelecimento dos portugueses no território de Piratininga
que, até então era ocupado pelos indígenas que viviam no planalto."
"Santo André, a
primeira Vila do Planalto fundada em 1553, sofreu com o problema de segurança e
foi extinta em 1560, sendo os seus moradores transferidos para São Paulo, cuja
criação datava de 1554, mas que foi elevada à Vila naquele mesmo ano",
explica Camargo. "Questões ligadas aos ataques indígenas e, portanto, à
segurança, estavam norteando aquelas ações."
O historiador comenta
que quando a vila de Santo André foi extinta, "o foco das tensões"
também acabou transferido para São Paulo, "então sede do poder político
dos portugueses representado pela Câmara Municipal, e também da esfera religiosa
através dos jesuítas representantes da Igreja Católica."
"Marco visual
dessa esfera de poder era a igreja dos jesuítas no Pátio do Colégio que, não
por outra razão, foi a escolhida em 1562 pelos índios revoltosos para ser
destruída", afirma ele.
Segundo Vilardaga, o
núcleo que daria origem a São Paulo só se firmou de forma mais consolidada a
partir de 1590.
• Protagonismo indígena
Professor no Museu
Paulista da Universidade de São Paulo (USP), o historiador Paulo César Garcez
Marins enfatiza a importância de compreender o episódio de forma a reconhecer o
protagonismo dos indígenas. "Essas narrativas acabaram todas construídas
para, no fundo, fortalecer a ideia de adesão dos indígenas à esfera da invasão
portuguesa", comenta ele. "Estão impregnadas desse ponto de
vista."
Vilardaga frisa que o
ocorrido "foi uma guerra indígena". "Isso é o mais
importante", diz ele. "Mudar o olhar sobre o episódio, que acabou
marcado por uma exaltação do Tibiriçá e do João Ramalho na mitologia paulista,
além da santidade do Anchieta. Houve toda uma construção narrativa a partir do
evento."
O historiador ressalta
que é preciso compreender o Cerco de Piratininga como o ponto de tensão entre
as "redes de relações e alianças" firmadas entre as próprias
populações indígenas da região, com seus "grupos, amizades e articulações".
Os acordos firmados pelos padres e pelos colonos, naquele momento, acaba
"obrigando novas estratégias e formas de os indígenas que já viviam ali se
entenderem nessas redes de relações".
Nesse sentido, a
chegada e a instalação dos portugueses no local acabou, como explica Vilardaga,
"causando ondas de choque e tensionando as relações indígenas". E a
animosidade deles ocorre em um momento em que os povos nativos eram imensa maioria.
"A população branca era muito pequena. Por isso o que houve foi um
conflito indígena, uma guerra entre uma parcialidade tupinquim e outra
parcialidade tupiniquim. Entre aparentados. E o que estava em jogo ali eram as
alianças", contextualiza o professor.
Para o historiador
Camargo, é possível definir como sendo três os grupos "envolvidos na
revolta de 1562": os jesuítas evangelizadores, empenhados na tal conversão
dos chamados "naturais da terra"; os colonizadores portugueses,
"mais interessados na ocupação das terras e na escravidão indígena";
e os indígenas que se colocavam em posição de resistência ante os europeus.
No caso, os indígenas
que não haviam firmado alianças com os brancos, evidentemente.
"Nenhum dos
grupos eram coesos, havendo por certo diferenças internas entre eles",
atenta Camargo. "No caso dos índios, por exemplo, haviam os que aceitaram
a interferência dos portugueses, aliando-se a eles, e outros totalmente
contrários a essa expansão."
O historiador ainda
lembra que o episódio marcou a "união de tribos contrárias, por motivos
religiosos ou civis, aos portugueses". E isso possibilitou a guerra. Para
esses indígenas, era preciso conquistar a vila de São Paulo e a igreja dos jesuítas
— marcos político e simbólico da invasão portuguesa.
Martinez analisa o
episódio como o fator de consolidação dos "interesses da colonização
portuguesa", selando "a sorte das populações indígenas no entorno dos
campos de Piratininga".
"Os anos
posteriores foram a projeção no tempo e no espaço de relações de poder, da
apropriação da terra e do emprego e controle da mão de obra indígena, a morte
dos insubordinados", acrescenta Martinez.
"A herança
maldita, sem dúvida, foi o consenso no âmbito das autoridades reais, militares
e eclesiásticas quanto às formas de tratamento social, a elaboração e
consagração de um discurso sobre os povos indígenas e os mestiços: a
legitimidade da sua submissão, do trabalho forçado, da desagregação comunitária
dos povos nativos , da violência sistemática, da expropriação de terras e da
diluição de identidades étnico-culturais, entre outras."
"Hoje, podemos
compreender o episódio como fecundo definidor de relações e de representações
simbólicas de poder e de autoridades laicas e religiosas na constituição do
domínio colonial e da subjugação das populações nativas", acrescenta o
professor da Unesp.
"Fenômeno que se multiplicou
ao longo do tempo e em distintas localidades, conforme o ritmo e a intensidade
da evangelização e da ocupação territorial colonial na penetração do vasto
interior."
Para Martinez, isto
pode ser observado em outros episódios "consagradores da opressão, da
violência e da exploração econômica de populações e regiões pelo Brasil
afora".
"Veja a história
do bandeirismo, da marcha do café e da marcha para o oeste, da ocupação
predatória da Amazônia, entre outros exemplos que traçaram o curso da tragédia
social verde e amarela", comenta.
• Uma vila em ponto seguro
"O Cerco de
Piratininga foi o grande teste para se verificar a segurança da Vila de São
Paulo e, por conseguinte, a sua viabilização como núcleo permanente da
colonização", pontua Camargo.
"Explica-se: a
questão de segurança foi o principal fator para a escolha do local onde seria
constituída a nova Vila, uma vez que Santo André mostrou-se por demais
vulnerável."
"E aqui uma
curiosidade, pois sempre se costuma dizer que São Paulo nasceu e cresceu sem
planejamento, o que é errado. Ou, pelo menos no seu nascimento, São Paulo foi
muito bem planejada, não nos moldes modernos como temos hoje, mas sim no
contexto daquela época onde se vivia em constante sobressalto com a ameaça dos
índios revoltosos", acrescenta o historiador.
"Sob esse
aspecto, o local era perfeito: uma colina cercada por dois rios, o Tamanduateí
e o Anhangabaú, com pontos dominantes de onde se tinha uma ampla visão da área
ao redor: o Pátio do Colégio, de cujo topo se vislumbrava ampla área à leste,
ou o atual Largo de São Bento, de onde se tinha uma ampla visão da zona norte e
oeste", afirma ele. "Essa localização do núcleo proporcionava mais
segurança que foi complementada com a construção dos 'muros' em volta da
cidade, a exemplo das antigas cidades europeias. Aqui, porém, não eram muros de
pedra e sim de taipa ou simples paliçadas."
Segundo Camargo, tudo
isso contribuiu para a resistência do núcleo frente à batalha daquele 9 de
julho de 462 anos atrás.
"Apesar dessas
defesas terem sido ultrapassadas no ataque e ter ocorrido a invasão da igreja,
logo as forças conseguiram alvejar o líder Jaguaranho, o que causou uma
desestabilização entre os índios revoltosos e a vitória dos portugueses que
foram auxiliados por índios simpatizantes."
"Tal vitória foi
fundamental para a consolidação do núcleo paulistano que, daí por diante,
firmou-se como principal cidade e capital", explica.
"Nesse sentido, o
episódio ganhou relevância na história, pois ao contrário de Santo André, que
não sobreviveu, São Paulo conseguiu através desse ataque uma vitória muito
importante que fortaleceu e mostrou que o núcleo era viável naquele contexto violento.
Para se ter uma ideia dessa posição estratégica e também do ataque de 1562, o
melhor ponto a ser visitado é o próprio Pátio do Colégio e nele o seu jardim ao
fundo. Desse ponto descortina-se uma vista da zona leste da cidade por onde
começou o ataque, bem como a configuração desta área: uma íngreme colina por
onde os índios subiram para atacar a cidade."
Fonte: BBC News Brasil
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