“O Pantanal que eu conheci não existe
mais”, diz jornalista Cláudia Gaigher
Neste ano, o Pantanal
ardeu como nunca: a quantidade de focos de calor no primeiro semestre bateu
todos os recordes desde 1988, quando começou a série histórica de medições do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Mas o que explica todo esse fogo?
Em entrevista ao
podcast Pauta Pública desta semana, a jornalista especializada em meio ambiente
e desenvolvimento social e sustentável Cláudia Gaigher fala sobre a situação no
bioma. Ela explica que, apesar dos resultados da ação dos brigadistas, que conseguiram controlar boa parte dos focos de incêndio, há o risco de
que novos incêndios surjam nos próximos meses.
“O pico da estiagem é
entre julho e agosto, principalmente de agosto até setembro. Então, ainda tem
muita estiagem por vir, essa frente fria já está passando. A gente não pode
dizer que o problema já foi resolvido, pelo contrário”, comenta.
Gaigher conta que,
apesar de o Pantanal ser uma planície alagável, ele depende da água que vem da
Amazônia, dos chamados rios voadores, e das nascentes que estão no Cerrado. Com
esses biomas cada vez mais alterados pela atividade humana, a caixa-d’água que
abastece o Pantanal está secando.
“Se está faltando água
no Pantanal, é porque algo está sendo feito nas cabeceiras, nas nascentes, no
planalto e no Cerrado […] O sistema equilibrado ele já não existe mais. Quando
falamos de crise hídrica, falamos exatamente isso. A maior planície alagável do
planeta está secando”, relata.
Leia os
principais pontos da entrevista:
·
[Andrea DiP] Cláudia,
por que o Pantanal está queimando tanto e tão rápido em 2024?
Para falarmos sobre o
fogo de 2024, precisamos fazer uma retrospectiva. O Pantanal é um bioma que
está no centro da América do Sul e depende do Cerrado e do bioma amazônico. O
Pantanal não produz chuva, sua pluviometria é inferior à da Caatinga. Toda água
que chega ao Pantanal em forma de chuva vem praticamente dos rios voadores da
Amazônia e das zonas de convergência do Atlântico Norte.
Só que o percentual de
chuva ao longo dos anos tem diminuído. A última grande cheia que tivemos no
bioma foi no ano de 2018; de lá pra cá, a redução de chuvas tem alcançado
índices preocupantes.
Ano a ano o Pantanal
recebe menos água. Fora isso, os rios pantaneiros não nascem dentro da região
da planície. Todas as nascentes dos rios que formam o Pantanal estão no
Cerrado, que é a parte alta. O Cerrado é outro bioma brasileiro que tem sido
absurdamente devastado para uso do solo e troca de vegetação, seja para lavoura
ou pastagem.
Em 2020, tivemos a
comprovação da impressão digital humana na alteração do clima e,
principalmente, do índice de chuvas no Pantanal. Justamente por conta da
devastação dos biomas conectados.
Nós temos, hoje, no
Pantanal uma situação de estiagem. Foi o que a própria Agência Nacional de
Águas decretou em abril deste ano: uma crise hídrica no Pantanal.
A cheia do Pantanal é
dividida em dois tipos. Tem a cheia que desce para o Pantanal através do rio
Paraguai, a cheia fluvial, e a cheia pluvial dependente das chuvas. Desde 2019
já não temos chuvas para alimentar o sistema hídrico. Sem essas cheias, não tem
água espalhada nos campos no período de outubro a março, ou outubro a abril,
junto com o período chuvoso.
Com menos chuvas, o
tempo que os campos ficam alagados diminui. Quando os campos estão cheios, a
água limpa a vegetação que acaba morrendo em função da inundação e há um
controle natural da biomassa. Sem a inundação, temos um monte de vegetação como
um rastilho de pólvora.
Paralelamente, no
Pantanal, há um desgaste muito grande dessas pastagens. Todos já ouviram falar
do ditado popular do “boi bombeiro” que come o capim e não deixa essa biomassa.
Porém, isso funciona em parte. Não basta só o boi comer o capim, também é a forma
que você lida com as pastagens.
O Pantanal tem mudado
de dono ao longo das últimas décadas. Quando eu cheguei aqui, 26 anos atrás,
era outra realidade, esse Pantanal não existe mais. Hoje já trocou de mãos, e,
quando vemos um grande número de pessoas que compram as terras, eles arrendam
essas propriedades. Ao arrendar, esses proprietários colocam muito gado nessas
terras para fazer o dinheiro girar, esse gado vai comendo o pasto nativo,
inclusive os brotinhos, desgastando a pastagem.
Sem o período de
alagamento e com o fogo, as espécies que resistem acabam se tornando uma praga.
Esse tipo de vegetação o gado não come. São arbustos enormes que ficam ali como
biomassa, as pastagens estão tomadas por isso.
Juntando com a
alteração climática, temperaturas que estão acima da média, temos uma
tempestade perfeita formada. Porque você tem falta de água, biomassa nos
campos, alta temperatura e vários fatores que comprovam a ignição do fogo.
A Polícia Federal e a
Polícia Militar Ambiental estão usando imagens de satélite para investigar onde
começaram esses incêndios. Até agora, já identificaram várias situações dentro
de 18 propriedades onde esse fogo começou. Eles sabem que, neste ano, 100% dos
pontos de ignição dos incêndios foram provocados por ação humana – não
necessariamente dolosas –, mas, em função daquele conjunto de fatores que eu
disse, se transformaram num grande incêndio.
Diante desse quadro, a
gente precisa falar que o Pantanal desde 2020 já devia estar sendo o centro de
uma ação de implementação de projetos de adaptação e mitigação climática, mas
isso não está sendo feito. Em 2020 cientistas que fazem parte do Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publicaram artigos falando que a redução da
água e da extensão do Pantanal no período de estiagem estão durando mais tempo.
Não dá para dizer que
foi uma surpresa, porque é uma tragédia que foi anunciada aos gestores públicos
e aos proprietários – eu digo proprietário porque 95% do Pantanal são áreas
privadas.
·
[Clarissa Levy]
Cláudia, faz algumas semanas que o Pantanal está nas principais manchetes
devido às queimadas. Eu queria saber de você como está a situação agora. Como
você acha que vai estar daqui a pouco? O que vem depois dessa primeira onda de
fogo?
Entrou uma frente fria
com pouca quantidade de chuva na região de Corumbá. Naquela região, o Pantanal
é dividido em 11 sub-regiões. Costumamos falar que são 11 Pantanais,
ecossistemas completamente diferentes dentro do mesmo bioma.
Onde estava queimando
era a região de Corumbá e uma parte da região de Miranda, outro município aqui
de Mato Grosso do Sul. Quando a frente fria entrou, ajudou muito a reduzir o
número de focos de incêndio. Ao mesmo tempo, neste ano, estamos tendo uma resposta
do governo federal, algo que em 2020 só começou meses após o início do fogo.
São mais de 500 pessoas vinculadas ao governo federal, brigadistas do Prevfogo
e Ibama, dos bombeiros do Distrito Federal e da Força Nacional. Isso junto com
os bombeiros de Mato Grosso do Sul e as equipes de brigadistas do Prevfogo e
Ibama de Mato Grosso do Sul.
Tem muita gente lá
para apagar o fogo, só que as distâncias são gigantes. Também teve o suporte
aéreo – que também é importante –, porque os aviões e os helicópteros lançam
água para resfriar o solo, para que a equipe do solo vá e faça o verdadeiro
combate.
Nesse momento, tem um
outro foco que é a reignição. Falamos reignição por conta do solo que turfa. Em
função do sobe e desce das águas ao longo dos milênios, o Pantanal é um “bolo”,
seu solo tem várias camadas. São várias camadas de matéria orgânica, e fica
pegando fogo embaixo da terra.
Os brigadistas do Prevfogo
e Ibama vão escavando o solo 60, 50 centímetros para chegar nesse fogo de turfa
e conter as brasas que ficam dormentes. Depois fazem o que chamamos aqui de
rescaldo, as equipes continuam. Quando surge um foco [de incêndio], elas são
acionadas e vão em blocos para tentar conter.
Isso não significa que
o perigo passou, pelo contrário. Porque o pico da estiagem é em julho e agosto,
principalmente de agosto até setembro. Então, ainda tem muita estiagem por vir,
e essa frente fria já está passando. A gente não pode dizer que o problema já
foi resolvido, pelo contrário. Agora é a hora de fazer aquilo que deveria ser
feito logo após as últimas chuvas, o que chamamos de prevenção e abertura de
aceiros.
Aceiros são como
grandes estradas, que eles abrem no meio dos campos próximos às casas, sedes e
cercas. Isso segura um pouco a chegada do fogo, um pouco porque o fogo “voa”.
Mas não é só isso. A gente teve a aprovação no Senado, em Brasília, para o
manejo integrado do fogo, algo que discutimos há muitos anos.
Mas o manejo integrado
do fogo já devia ter sido feito há um tempo atrás, em 2021, depois dos
incêndios de 2020. Porque, quando você faz a queima prescrita, com controle,
logo após as últimas chuvas, você diminui essa biomassa que fica acumulada nos
campos. Isso não foi feito pelo governo estadual.
Agora, em 2024,
fizeram em apenas duas fazendas. Porque é muito caro buscar essa situação de
levar o perito, que tem que ser do Corpo de Bombeiros, isolar e fazer a queima.
No último fim de
semana, eu estive no rio Paraguai, no rio Nabileque e no rio Miranda. Eu andei
a pé em cima de uma ilha no rio Paraguai, em um lugar que deveria ter pelo
menos 2 metros de água em cima de mim, eu estava pisando no fundo do rio. O rio
Miranda também está todo cortado, e o rio Nabileque é a mesma coisa. Isso em
julho. Como vai estar em agosto e setembro, com as temperaturas altas?
Agora é o momento de
tentar fazer alguma ação preventiva para evitar que o próximo incêndio, que vai
vir – sabemos que vai – para que não se alastre com a velocidade que se
alastrou esse de 2024.
·
[Clarissa Levy] Além
da dimensão do fogo, a seca também traz uma crise hídrica para a região do
Pantanal. De que maneira essa crise nos recursos hídricos está afetada pela
seca neste ano, e o que a gente pode falar sobre responsabilização humana sobre
esse cenário que temos de falta d’água?
Primeiro precisamos
pensar na conexão. Se está faltando água no Pantanal, é porque algo está sendo
feito nas cabeceiras, nas nascentes, no planalto e no Cerrado. Precisamos ter
um trabalho de restauração das nascentes e cabeceiras, já tem vários projetos
em andamento, mas isso tem que ter a celeridade, porque a velocidade da
devastação é muito maior que a do cuidado.
A segunda coisa é que,
com essas secas extremas que acompanhamos, isso faz com que várias outras
medidas sejam tomadas. Um exemplo disso são os grandes aterros construídos no
Pantanal pelo governo do Mato Grosso do Sul. São aterros de 4 metros de altura construídos
para passar estradas que ligam várias regiões pantaneiras. Esses aterros
estavam sendo construídos sem licença ambiental alguma. No período de seca,
isso ajuda o escoamento de criação de gado, mas há a drenagem e criação de
diques. Imagine uma planície que inunda com várias estradas que são aterros.
Outra questão muito
importante de trazer à tona é que existe um projeto aqui em Mato Grosso do Sul
de expansão econômica. Há anos começou a ser construído um porto, em Porto
Murtinho, município pantaneiro que fica às margens do rio Paraguai, para usar
este rio como hidrovia, para escoar a produção de grãos, minério, seja lá o que
for. Só que o rio Paraguai, ano a ano, está ficando cada vez mais raso. Porque
ele não tem água, nesse momento a gente está a 1 metro de profundidade. Tinha
que ter pelo menos mais 4 metros de profundidade nesse período.
Quando existe o
assoreamento que vai entupindo o leito dos rios, a areia vem da parte alta de
áreas que não são cuidadas, que foram desmatadas ou que foram alteradas. Esse é
outro problema: se a hidrovia está aí, vai ter que dragar o rio, tirar aquela
areia toda. Isso muda todo um sistema.
E tem outra situação
no Pantanal: as pequenas centrais hidrelétricas construídas ao longo dos
últimos anos na parte alta, que chamamos de planalto, de onde esses rios descem
para formar o bioma. Se analisarmos, tem mais de cem pequenas centrais
hidrelétricas nessa bacia, que chamamos de bacia hidrográfica do Alto Paraguai.
O Pantanal é o pulso
de inundação, o sobe e desce das águas. Quando você represa, você muda um
sistema completamente. Paralelamente, existe uma mudança de uso do solo,
principalmente nas regiões do entorno do Pantanal, que antes não tinham
lavouras de grãos e agora têm. Quando não há o cuidado da cabeceira, desce
menos água para os rios. Os rios estão recebendo um aporte de água muito menor.
Segundo o MapBiomas, o
Mato Grosso do Sul foi um dos estados brasileiros que mais alterou suas
paisagens, mais desmatou. Na região de Corumbá, houve uma perda de 61% de
superfície de água. Isso desequilibrou o sistema, porque sem água não vai ter
nada.
É um conjunto de
fatores. Essa crise hídrica se deu pela questão macro, pela mudança do clima no
planeta. No micro, porque o Pantanal também está sendo alterado. É uma situação
grave, porque a gente não sabe se vai ter aquele Pantanal de novo. É difícil dizer
– eu estou aqui há 26 anos –, o Pantanal que eu conheci não existe mais.
E, se pensarmos em uma
cheia, pode ser uma de extremos, como foi a chuva no Rio Grande do Sul, de
repente vir tudo de uma vez, deixando as fazendas embaixo d’água, como ocorreu
em 2011.
O sistema equilibrado
já não existe mais. Quando falamos de crise hídrica, falamos exatamente isso. A
maior planície alagável do planeta está secando.
Fonte: Por Andrea DiP,
Clarissa Levy, Ricardo Terto e Stela Diogo, da Agencia Pública
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