terça-feira, 23 de julho de 2024

Mitos e imagens da fórmula 1

Roland Barthes, em sua aclamada obra Mitologias, decompõe os signos da vida burguesa por meio da descamação metódica das imagens que configuram o imaginário e os dogmas da civilização capitalista: a gastronomia, o esporte, o cinema, a publicidade e outros filões do conforto e do comércio. Em consonância com sua técnica de investigação semiótica, cuja análise faz emergir os valores entranhados e camuflados em sistemas de significado do cotidiano, este texto se propõe à reflexão da malha de significados que sustenta a Fórmula 1. Para isso, são chaves de leitura imprescindíveis para a interpretação desse conglomerado de sentidos duas noções básicas: a adrenalina e a testosterona.

        Adrenalina: velozes, furiosos e luxuosos

São os futuristas italianos quem primeiro assinam as chamadas “poéticas da velocidade”, cujo totem mais querido, sem dúvida, é o automóvel designado às competições esportivas. Não por acaso, a paixão incendiária pelas corridas automotivas é, a princípio, ainda mais combustiva entre os eles. Para estes, a Itália acostumara-se à modorra tediosa dos valores clássicos – o equilíbrio, a constância, a harmonia. Acabara afogada em um atoleiro de glórias próprias, perdida entre escombros da Antiguidade e da Renascença. Asfixiada por esse passado majestoso, vegetava sem ganas pelo futuro. Marinetti, então, faz um salto acrobático. Declara guerra à tradição para saciar sua fome pelo amanhã. Por isso, a atração irresistível pela impetuosidade do automóvel.

Em seu manifesto, Felippo Marinetti, despudoramente, anuncia que “Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia”.  É claro, no entanto, que a obsessão pelo veículo é uma mera derivação do fetiche pela modernidade. Menos conhecido, talvez, seja seu poema “All’automobile di corsa”, em que o carro de corrida interessa menos como metonímia do novo do que como item de desfrute. Em plena confissão do prazer pelo volante, o eu lírico narra que “sob o céu cheio de estrelas (…), de quando em quando, ergo o capacete para sentir suavemente os dedos loucos e aveludados do vento”.

Estes são, aliás, os dois signos cujo brilho se sobressai em meio à constelação de significados da Fórmula 1: tecnologia e regozijo. Complementam-se entre si como anverso e reverso. Justificam-se. Sob esse ângulo, a modernização implica, necessariamente, ergonomia, potência, aceleração. Em razão disso, a cada ano, os engenheiros das equipes propõem-se o desafio de superar o patamar técnico consolidado pela temporada anterior. Sobe-se o sarrafo metódica, gradual e infinitamente, em uma escalada monomaníaca rumo à perfeição inatingível. Sempre em movimento. Para o êxtase dos pilotos; para satisfação dos apetites do público.

Não se pense, porém, serem estas as únicas forças motrizes dos valores e sentidos emaranhados nesse complexo sistema semiótico. Se, por um lado, articula-se o binômio tecnologia-prazer; por outro lado, vigora um segundo par de ideias fundamentais: modernização e perigo. Nessa perspectiva, a cada nova rodada de aprimoramentos por novos extremos de velocidade, os carros impõem, também, maiores riscos. Isso porque, nos circuitos de corrida, o perigo compõe a condição de existência do prazer inebriante – a adrenalina – com o qual se fartam sejam os atletas, sejam os espectadores.

Como consequência, o automobilismo é uma prática desportiva singular, pois almeja, idealmente, a excitação contínua dos sentidos. Em uma partida de futebol ou mesmo em uma disputa de boxe, a depender da dinâmica entre os envolvidos, pode a plateia acusar sonolência. Um jogo morno, sem grandes lances, ou uma luta com monótonos jabs protocolares não são, como se sabe, exceções do esporte. Em contrapartida, até a mais previsível das competições de Fórmula 1 é acompanhada da hiperestimulação perceptiva.

Isso não significa, obviamente, que as corridas sejam, de todo, impermeáveis ao tédio. No entanto, é um demonstrativo valioso da proposta de escândalo sensorial que, pelo menos a princípio, distinguiu a Fórmula 1 de outros desportos. Pelos ouvidos, mete-se a desesperada sensação de urgência trazida pelo assobio dos automóveis. Aos olhos, igualmente, serve-se um banquete apropriado: formas, rastros, cores e volumes em rápida aceleração, à beira de se serem arrastados para fora das curvas pela ação invisível da força centrífuga.

São os futuristas, de novo, quem perfazem os melhores registros do espetáculo cinético e sinestésico das corridas. É o caso, por exemplo, de Le forze della curva, de Túlio Crali, cuja imagem do automóvel a escorrer prolongamentos ou resíduos de si mesmo é o mais puro retrato da ideia de velocidade. Tão sugestivo é rastro visual, que quase se pode ouvir silvo que o segue de perto.  Note-se, ainda, como predomina a atmosfera de tensão, isto é, de risco iminente.

Nessa conjuntura, não é surpreendente que o imaginário que assombra as corridas desportivas seja demasiadamente violento.  Nos poemas de Marinetti, é sempre agressiva, senão beligerante, a adjetivação das máquinas: “Deus veemente de uma raça de aço / carro sedento por espaço / que lateja e estremece de angústia / roendo e mordendo com os dentes estridentes/ monstro japonês formidável / com os olhos de forja / nutrido por chamas e óleos minerais”. Não se veem, pois, traços de uma beleza pacata no espetáculo automobilístico. Trata-se de uma estética de guerra, tumultuosa e combativa, em que estilhaços de homens e veículos podem emergir, explosivamente, a qualquer instante. Essa miscelânia de carne e metal, quando se espalha pelo asfalto, faz ressurgir o chamado locus horrendus – em português, “lugar horrível” –, concepção artística que exerceu poderosa atração sobre Caravaggio e outros estetas do barroco do século XVII, acostumados à representação fascinante da violência e da carnificina.

Uma das mais impressionantes ilustrações desse fenômeno na história recente do esporte deu-se em 2012, quando Grosjean, piloto da Haas, cometeu um desastroso erro de juízo com relação ao espaço disponível para manobra logo após a largada do Grand Prix da Bélgica. Com ele, engalfinharam-se, confusamente, os carros de Fernando Alonso – Ferrari –, Sérgio Perez– Sauber – e Lewis Hamilton – McLaren. Em um choque impetuoso, com automóveis arremessados ao ar, latarias abauladas e destroços que choveram sobre a pista, os quatro corredores precisaram desistir do GP devido aos danos recebidos pelos carros.

Em 2020, o mesmo Grosjean protagonizou outro episódio cinematográfico. Após entrar em contato com o carro de Daniil Kvyat, imediatamente em sequência à largada, o piloto francês foi, bruscamente, de encontro ao muro. Seu veículo partiu-se em dois e, em instantes, converteu-se em uma pira incendiária com revoltas línguas de fogo sob o céu noturno do Bahrein. Grossjean, miraculosamente, emergiu quase intacto das chamas da fornalha, apenas com escoriações e queimaduras no rosto e nas mãos. Os apelos de um evento como este, com combinações míticas entre sangue e fogo, são extremamente potentes sobre o imaginário do público.

Não é preciso, porém, que um verdadeiro massacre seja consumado para saciar os instintos da plateia por emoções selvagens. Na realidade, é a instabilidade do sistema que impressiona o público. Diante da arquibancada, competem vinte pilotos montados sobre máquinas assassinas projetadas para testar o tempo de reação humana ao perigo. Em um piscar de olhos, tudo pode mudar. Nesse sentido, a Fórmula 1 é um ecossistema regido por uma grandeza caótica, a entropia. A cada volta, acentua-se a tendência de elevação do grau de desordem. Desde a saída do grid, com os carros arranjados com precisão sobre posições pré-fixadas, até a bandeirada quadriculada, que dará fim à disputa por meio da validação de um novo ranqueamento, tem-se um vaivém incessante de ultrapassagens. Uma equipe que está em sétimo lugar no circuito pode, repentinamente, ser içada à primeira posição. Tudo depende da conjuntura, afinal os participantes são peças de um sistema intensamente dinâmico.

Como prova disso, as ocasiões de intromissão do safety car na pista implicam a míngua das emoções explosivas associadas à imprevisibilidade. Dá-se que a malha de signos entrançados às ideias de perigo, velocidade e colisão é, de maneira decepcionante, distensionada pela chegada de um instrumento que impõe uma batuta de ordem. Isso porque, enquanto estiver na pista, o carro de segurança obrigará a desaceleração de todos os pilotos, além de restringir, quase integralmente, as possibilidades de ultrapassagem. Sob esse prisma, tem-se a dissipação da velocidade e da adrenalina, de modo a resultar no extermínio semiótico da própria corrida, transformada em um sereno e previsível carrossel.

É, portanto, o cenário altamente volátil que excita imaginações e entusiasmo. Tal fato não constitui, evidentemente, uma exclusividade da Fórmula da 1, e sim compõe um fetiche mais abrangente, ligado à exaltação da incerteza, o qual é desfraldado sobre os vastos horizontes do capitalismo tardio, em cuja paisagem “tudo o que é sólido desmancha no ar”.  De modo análogo aos computadores em que se amontoam as equipes das montadoras em seus paddocks, os telões dos pregões de Wall Street são salpicados pelo trajeto de linhas que taquigrafam a ascensão ou descensão de vários ativos, os quais podem, de súbito, interverter seu comportamento e levar do paraíso à bancarrota as maiores empresas. Em outras palavras, os operadores da bolsa também conhecem, a seu modo, a adrenalina das corridas. Ambos os universos são, em suma, demonstrações do mundo de variabilidade e turbulência sobre o qual discorreu, minuciosamente, Bauman em seu emblemático “Modernidade Líquida”.

Tal alegação, a qual traça uma conexão subterrânea entre fenômenos, a princípio, tão díspares entre si – o mercado e o automobilismo – não é despropositada.    A Fórmula 1, como, aliás, todo o resto no sistema capitalista, é um produto. Isso significa que seu êxito existencial está atrelado à viabilidade de práticas comerciais derivadas do imaginário caldeado tanto pelas corridas quanto pelos pilotos. Nesse âmbito, é curioso que, mais uma vez, despontem diferenças expressivas entre o desporto motorizado e outras modalidades de competição. No futebol, por exemplo, vendem-se, principalmente, camisas, chuteiras e adereços de vestuário, além de ingressos para as partidas. No automobilismo, no entanto, é possível ir muito além.

Nessa perspectiva, convém recordar que a Fórmula 1 não apenas ranqueia os pilotos, mas também ordena a hierarquia das montadoras. Dito de outra forma, o desempenho dos atletas não é o único fato importante. Interessa também a performance do veículo em si. É comum, por isso, que os detratores do campeonato o considerem, não sem alguma razão, uma passarela de graxa e betume por onde desfilam “brinquedos de gente grande”.  Com efeito, o apelo colecionável dos carros é óbvio. A Fórmula 1 é o único torneio cujo objeto desportivo, isto é, o automóvel, está intensamente investido pelo fetichismo da mercadoria. Não há qualquer paralelo possível. Pense-se, por exemplo, em como a bola é, no futebol, não é um item de adoração de grife, como ocorre, em contrapartida, com os automóveis da Ferrari e da Mercedes.

Nesse contexto, descortina-se uma ampla jazida de mercado, estruturada em torno de uma parafernália de itens de coleção, como miniaturas de edições icônicas de carros vitoriosos, artigos de autorama ou mesmo pistas estilizadas com percursos quase inexequíveis, a exemplos dos mirabolantes circuitos da Hot Wheels. Para a aquisição de qualquer um desses produtos, impõe-se ao consumidor um dispêndio financeiro cujo ônus é, sabidamente, superior à compra de uma bola. Não é segredo para ninguém que a Fórmula 1 é um esporte elitista. É esperado, portanto, que seus brinquedos também o sejam. 

Reforça-se, desse modo, a concepção da vivência automotiva como uma experiência de luxo, fato que respalda o imaginário de exclusividade que   participa do universo de valores das corridas. Em outras palavras, a adrenalina custa caro. Envolve não apenas dispêndios para o espírito do atleta, mas, também, um compromisso material expressivo da parte das equipes e do público que financiam o esporte.

        Testosterona: rodas e colhões?

Todavia, em paralelo à atratividade econômica, é indispensável dissecar outro atributo do território lúdico que margeia a Fórmula 1: a influência estabelecida pelo automobilismo sobre o imaginário masculino desde a tenra infância. Sob esse diapasão, não há amostra melhor para a análise do que o canônico desenho animado Speed Racer 1967.  Na trama que engrena a narrativa, Speed é um jovem recém-habilitado, de apenas dezoito anos, que dirige o Mach 5, projetado por Pops Racer, o qual, além de ser um talentoso mecânico, é, como o próprio nome sugere, pai de Speed.

As personagens femininas cumprem funções puramente ornamentais e são entidades de importância bastante lateral. Sua mãe, Moms Racer, raramente participa dos episódios e, quando o faz, tem falas muito limitadas. Trixie, a namorada de Speed, é, evidentemente, uma apoiadora do amado. Contudo, com frequência, sua contribuição ao esquema narrativo a reduz à posição de mero pretexto para algum feito heroico do protagonista, o qual precisa se engajar em uma corajosa atividade de salvamento.

É entre as figuras masculinas que se desenrola a ação. Na pista, todos os corredores são homens – não importa se íntegros e honrados, como Speed, ou se inclinados à vilania, como o Capitão Terror. É nas curvas da estrada que será medida a força de caráter de cada um, a qual será recompensada, superadas as provações, com um lugar no pódio. Entre a largada e a bandeirada final, a rivalidade fraterna entre Speed e o misterioso Corredor X é o fio condutor da maior parte dos episódios.  Logo, em muitos sentidos, os ingredientes narrativos coincidem com aqueles de outros subgêneros épicos especialmente queridos pelo público masculino, como histórias de faroeste ou de ação militar, as quais são construídas em torno de uma iconografia de provas de virilidade.

Sob essa perspectiva, a testosterona é o hormônio, que, ao lado da adrenalina, alicerça o repositório dos símbolos que dão vida à Fórmula 1. Alusões a signos de masculinidade, em decorrência disso, infestam o discurso dos pilotos, dos mecânicos e das equipes. Tome-se para a análise uma amostra razoavelmente recente, de 2019. No primeiro episódio da segunda temporada da série documental da Netflix Drive to survive, que acompanha as reviravoltas do campeonato mundial de automobilismo, o líder da Red Bull Racing, Christian Horner responde sobre as expectativas de favoritismo para aquele ano: “Só quando chega a Melbourne você sabe em que pé está. É quando todos abaixam as calças e você vê o tamanho da concorrência”.

De modo similar, os insultos que os atletas lançam uns contra os outros são, habitualmente, injúrias de emasculação. Em 2018, ao ser retirado da corrida após uma colisão provocada por Esteban Ocon, Max Vertstappen condensou sua ira em uma única palavra proferida contra o adversário durante a coletiva de imprensa que sucedeu ao Grand Prix: “pussy”. Em uma tradução com boa dotação de pragmatismo, o termo propõe a adjetivação de “covarde”. É significativo, entretanto, que seja a genitália feminina a representação metonímica do acovardamento. Em contraposição, os rasgos de valentia dos quais são capazes alguns pilotos são elogiados com o vocábulo “colhões”. Em 2020, Alain Prost, automobilista aposentado francês, louva com essa seleção lexical, o desempenho do jovem talento Charles Leclerc: “That kid has guts!”.

No campo imagético, os emblemas de alguns times são signos notórios de potência viril. No emblema da Escuderia Ferrari, um cavalo arisco empina as patas dianteiras para as alturas. Nas estampas das equipes Red Bull e da antiga Toro Rosso, a impressão de pujança advém da aparência robusta de touros implacáveis. Ora, tanto o cavalo quanto o boi são, no caldeirão simbólico da cultura ocidental, identificados com atributos de atividade reprodutora, musculatura aparente e atitude indomável. Em outras palavras, são animais vinculados a predicados de masculinidade.

No entanto, a testosterona não se infiltra apenas nas frestas sutis do imaginário: manifesta-se, às claras, nos corpos que encenam o espetáculo. Basta assistir a um pit stop para constatar que é masculina a avalanche de pés e mãos, que, com coordenada precisão, atua, cirurgicamente, ao redor do automóvel. Dentro dos carros, somente varões empunham os volantes. É óbvio, portanto, o protagonismo masculino no esporte, seja na pista propriamente dita, seja em suas adjacências, constituídas por boxes e  paddocks.

Na conclusão do evento, quando os vitoriosos sobem ao pódio, o desfecho simbólico da exibição de virilidade é consumado com uma erupção apoteótica de champanhe. É desnecessário dizer que jatos de espuma branca, arremessados de garrafas agitadas com repetição masturbatória por homens desmanchados em prazer, são, é claro, o convite a um exercício intelectual de sêmen-ótica do qual este texto se dispensa. É suficiente pontuar que o ritual que encerra o espetáculo da excitação contínua da testosterona é a transição para os prazeres serenos e relaxantes do álcool.

        À guisa de conclusão: cruzando a linha de chegada

A Fórmula 1, portanto, é um sistema semiológico arvorado sobre duas noções nucleares, as quais mantêm estreitas relações entre si, a adrenalina e a testosterona. Por conseguinte, a imageria, isto é, o acervo de referências mentais que dão estampa, figura e valor ao universo automobilístico, é constituída por signos de perigo e virilidade. Tal paixão pelo risco como prova de masculinidade remonta, em larga medida, às origens vanguardistas de certas estéticas do século XX, em especial o Futurismo. Desde então, nota-se uma fetichização da tecnologia enquanto instrumento de aceleração do ritmo de competição para a execução de manobras mais inebriantes.

Com efeito, o deslumbramento pela velocidade e pela instabilidade é um sintoma mais geral do capitalismo tardio e não se restringe ao nicho dos esportes motorizados. Todavia, no que concerne às pistas de corrida, esse imaginário é fomentado, seja pelos brinquedos e objetos colecionáveis que compõem o universo lúdico da Fórmula 1, seja por desenhos animados e outras narrativas. Por fim, os códigos de representação do prazer do volante estão afixados em um plano de conotações sexuais, como o revela, emblematicamente, o ritual de estouro do champanhe no pódio.

 

Fonte: Por Marcus Barcelos, em A Terra é Redonda

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