quarta-feira, 24 de julho de 2024

Fernando Nogueira da Costa: ‘Socialdemocracia — estágio na transição sistêmica’

Alcançar uma condição de social-democracia em um país subdesenvolvido requer uma abordagem gradual e adaptada às circunstâncias específicas de cada nação. Por isso, surgiu a expressão social-desenvolvimentismo para designar os adeptos de uma adequação dessas experiências europeias ao contexto latino-americano, aliás, bastante diferenciado entre o Brasil e as nações vizinhas, além das demais até o México, vizinho de uma potência hegemônica arrogante, mas em processo de atingir o ranking dos dez maiores PIBs mundiais, como já é o caso brasileiro.

Algumas etapas e considerações úteis nesse processo são as seguintes. O Brasil, sob governos sob a hegemonia negociada de um partido de origem trabalhista com os demais aliados, busca implementar políticas de modo a promover o crescimento econômico inclusivo, redistribuindo os benefícios do desenvolvimento para toda a população, em vez de concentrá-los em uma elite.

Para tanto, tem de priorizar investimentos em educação de qualidade, cuidados de saúde acessíveis e outras políticas sociais capazes de reduzirem a desigualdade e promoverem a mobilidade social. Sem o fortalecimento das instituições democráticas, com o fortalecimento do Estado de Direito, ao contrário do governo neofascista-neoliberal anterior, não garante as instituições democráticas com o respeito aos direitos humanos, à independência do Poder Judiciário e ao combate à corrupção.

A participação cidadã ainda é frágil no Brasil. Cabe então ao atual governo, eleito democraticamente por uma pequena maioria, promover a participação ativa da sociedade civil na tomada de decisões políticas e no monitoramento do próprio governo para garantir transparência e responsabilidade.

As políticas de bem-estar social, exigidas para o alcance da socialdemocracia como uma etapa da transição sistêmica rumo a um novo modo de produção, talvez apelidado de “socialista”, exigem cuidados da seguridade social. Significa implantar sistemas abrangentes de seguridade social de modo a garantir a proteção contra a pobreza, o acesso a cuidados de saúde, educação e previdência social para todos os cidadãos.

A redistribuição de renda é até mais fácil diante da dificílima redistribuição de riqueza, caso se considere a acumulada ao longo da vida ativa de muitos trabalhadores. É necessário o debate público esclarecer e distinguir a “sorte do berço” do esforço individual de acumulação de riqueza para a aposentadoria e a ajuda aos seus herdeiros.

Nesse sentido, adotar políticas fiscais progressivas capazes de tributarem os mais ricos e redistribuírem a renda para financiar serviços públicos e programas sociais deve passar por um debate no Congresso Nacional. A faixa dos bilionários do segmento Private Banking, capazes de serem tributados sem sentir a diferença (“depois de um bilhão de dólares não se pensa em consumismo barato”) deve ser distinguida da classe média do Varejo de Alta Renda.

Para essa construção nacional de uma sociedade mais igualitária, é necessário o diálogo social e negociação coletiva. No caso das relações trabalhistas, é necessário promover o diálogo social entre empregadores, trabalhadores e governo para negociar condições de trabalho justas, salários dignos e proteção social para os trabalhadores.

Embora decadente, por causa das reformas neoliberais do governo golpista (2016-2018) com o corte das verbas dos sindicatos, ainda cabe apoiar a negociação coletiva entre sindicatos e empregadores para garantir direitos trabalhistas e condições de trabalho decentes. O maior desafio diz respeito às novas gerações de microempreendedores “urberizados” e “pejotizados”, pois são superexplorados, seja em extensão de jornadas de trabalho, seja em carência de direitos trabalhistas.

Um problema é ter a visão larga nacional para a redução de disparidades regionais. É necessário implantar políticas de desenvolvimento regional e urbano de modo a reduzir as disparidades econômicas entre áreas urbanas e rurais, promovendo o crescimento inclusivo e a equidade territorial. Novamente, “fácil de falar, difícil de fazer”.

Para investir em infraestrutura urbana, habitação acessível e transporte público para promover o desenvolvimento sustentável das cidades, para melhorar a qualidade de vida dos habitantes urbanos é necessário… dinheiro! Verbas! São disputas na aprovação dos orçamentos da União, dos Estados e dos Municípios.

A “salvação da pátria” é colocada por muitos na cooperação internacional. Serve até para países pequenos, mas não para gigantes como o Brasil.

A assistência ao desenvolvimento busca apoio e cooperação internacional, tanto financeiro quanto técnico, de organizações internacionais, países desenvolvidos e agências de desenvolvimento para fortalecer as capacidades institucionais e promover o progresso social e econômico. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas realmente… é melhor confiar na integração regional.

Para tanto, participar ativamente de blocos regionais e acordos de cooperação para promover o comércio justo, a integração econômica e o desenvolvimento conjunto de maneira a apoio mútuo junto a todas as nações latino-americanas talvez seja “a salvação da lavoura”, isto é, a promoção do comércio continental. Países abaixo da linha do Equador se encontram distantes das Cadeias Globais de Valor (CGV) do Norte rico. Talvez seja mais barato comercializar com a África…

Enfim, a transição para uma condição de social-democracia em um país subdesenvolvido requer um compromisso de longo prazo com políticas progressistas, instituições democráticas fortes e investimentos em desenvolvimento humano e bem-estar social. É um processo gradual exigente de uma abordagem multifacetada e adaptada às necessidades e realidades específicas de cada país.

Através de políticas inclusivas e participativas, é possível alcançar um desenvolvimento econômico e social sustentável de modo a beneficiar toda a população. Não será fácil, tampouco em curto prazo, no mandato de um governo progressista. Exige seguidas reeleições de governos de Frente Ampla com aliados igualmente com essa pretensão social-desenvolvimentista.

A social-democracia nem o social-desenvolvimentismo exige, necessariamente, a estatização completa dos meios de produção, como equivocadamente ocorre em sistemas socialistas mais radicais. Em vez disso, a social-democracia se baseia em um sistema econômico misto, como o chinês, capaz de combinar elementos de mercado com uma ampla rede de proteção social e intervenção estatal para garantir o bem-estar da população.

A maioria dos meios de produção permanece nas mãos de empresas privadas. Operam com base no lucro e na competição de mercado.

O governo desempenha um papel ativo na regulação da economia, implantando políticas para corrigir falhas de mercado, promover a igualdade de oportunidades e proteger os direitos dos trabalhadores e consumidores. Mas ele não elimina a propriedade privada nem tampouco a intervenção estatal obstrui os negócios privados legais.

Em alguns casos, setores considerados estratégicos para o interesse público, como energia, transporte, saúde e educação, costumam ser pelo menos parcialmente estatizados para garantir acesso universal e equitativo a esses serviços. O Estado mantém a participação ou o controle em empresas públicas com prestação de serviços essenciais, mas também podem existir empresas privadas concorrentes nesses setores.

A social-democracia, bem como o social-desenvolvimentismo, promove uma ampla rede de proteção social, que inclui seguro-desemprego, saúde pública, educação gratuita, aposentadoria e outros benefícios sociais financiados pelo Estado. Políticas trabalhistas, como salário mínimo, limites de horas de trabalho, licenças parentais e proteção contra demissões injustas, são estabelecidas para proteger os direitos dos trabalhadores e garantir condições de trabalho dignas.

Quanto à redistribuição de renda, impostos progressivos são aplicados para financiar programas sociais e reduzir a desigualdade de renda, garantindo uma distribuição mais equitativa da riqueza e oportunidades. O governo implanta regulamentações para controlar o sistema financeiro, prevenir abusos e garantir a estabilidade econômica e o acesso ao crédito para indivíduos e empresas.

Embora a social-democracia e o social-desenvolvimentismo possam envolver alguma estatização seletiva de setores estratégicos e uma forte intervenção estatal na economia, não exigem a estatização completa dos meios de produção. Em vez disso, ambos regimes buscam um equilíbrio entre o mercado e o Estado, com o objetivo de garantir o bem-estar da população, promover a igualdade de oportunidades e mitigar as desigualdades sociais e econômicas.

 

•        Le Monde: Reconstruindo a esquerda

Apesar da maioria relativa obtida pela Nova Frente Popular durante as eleições legislativas, o cenário político francês continua marcado por divisões e incerteza. Digamo-lo claramente: os ganhos registados pela esquerda em votos e assentos são, na realidade, muito limitados e refletem um trabalho insuficiente no programa, bem como nas estruturas. Só enfrentando resolutamente estas insuficiências é que os partidos de esquerda conseguirão ultrapassar o próximo período de turbulência e de governos minoritários, e um dia obterão a maioria absoluta que lhes permitirá governar o país de forma sustentável.

O programa adotado pelo NFP poucos dias depois da dissolução teve certamente o imenso mérito, em comparação com os outros, de indicar onde encontrar os recursos para investir no futuro: saúde, formação, investigação, infraestruturas de transportes e energia, etc. Estes investimentos tão necessários aumentarão acentuadamente no futuro e só existem duas formas de os financiar. Ou assumimos a entrada num novo ciclo de crescente socialização da riqueza, impulsionado pelo aumento de impostos sobre os mais afortunados, como propõe o NFP. Ou recusamos qualquer aumento de impostos por ideologia, e depois contamos com financiamento privado, sinónimo de desigualdades de acesso e de eficácia coletiva mais do que duvidosa. Impulsionados por custos privados surpreendentes, os gastos com saúde aproximam-se dos 20% do PIB nos Estados Unidos, para indicadores desastrosos.

Os montantes mencionados pelo NFP poderiam, no entanto, ter sido assustadores: cerca de 100 mil milhões em taxas e novas despesas no prazo de três anos, ou 4% do PIB. A longo prazo, estes montantes não são excessivos: as receitas fiscais aumentaram na Europa Ocidental e do Norte, de menos de 10% do rendimento nacional antes de 1914 para 40-50% desde as décadas de 1980-1990, e foi a ascensão do Estado social (educação, saúde, serviços públicos, proteção social, etc.) que permitiu um crescimento sem precedentes na produtividade e nos padrões de vida, independentemente do que os conservadores de todas as épocas possam ter dito sobre isso.

A verdade é que existem fortes incertezas sobre o calendário e a ordem de prioridades para um governo de esquerda chegar ao poder. Se a exigência de justiça social é forte no país, a mobilização de novos recursos continua a ser um processo frágil do qual os cidadãos podem retirar o seu apoio a qualquer momento. Concretamente, enquanto não for demonstrado de forma incontestável que os bilionários e as multinacionais são finalmente postos a trabalhar, então é impensável pedir esforços adicionais a qualquer outra pessoa. Contudo, o programa do NFP permanece demasiado vago neste ponto crucial. Isto é ainda mais problemático porque os governos de esquerda das últimas décadas, carentes de um programa suficientemente preciso e de uma apropriação coletiva suficientemente forte, sempre se viram cedendo aos lobbies assim que chegaram ao poder, por exemplo, isentando os chamados ativos profissionais e quase todas as maiores fortunas do ISF, com a consequência de as receitas serem ridiculamente baixas em comparação com o que poderiam e deveriam ser. Para evitar a repetição destes erros, será necessário envolver a sociedade civil e os sindicatos na defesa destas receitas e dos investimentos sociais que as acompanham. Nestas questões como noutras, os slogans não podem substituir o trabalho aprofundado e a mobilização coletiva.

Encontramos dificuldades semelhantes com as pensões. Não faz muito sentido adotar como slogan a aposentadoria para todos aos 62 ou mesmo aos 60 anos, quando todos sabem que também existe uma condição de duração da contribuição para obter uma pensão integral no sistema francês. Um slogan como “42 anuidades para todos” tornaria mais fácil a compreensão do país e diria claramente que as pessoas com ensino superior não sairão antes dos 65 ou 67 anos, ao mesmo tempo que insistiria na injustiça inaceitável dos 64 anos da reforma de Macron, que obriga, por exemplo, quem começou aos 20 anos a contribuir durante 44 anos.

Poderíamos multiplicar os exemplos. É bom anunciar a eliminação do Parcoursup, mas teria sido ainda melhor descrever com precisão o sistema alternativo mais justo e transparente que lhe sucederá. É bom denunciar a mídia Bolloré, mas seria melhor comprometer-se com uma lei ambiciosa para democratizar a mídia e desafiar todo o poder dos acionistas.

Mencionemos também a proposta que visa atribuir um terço dos assentos aos trabalhadores eleitos nos conselhos de administração das empresas. Esta é a reforma mais profunda e autenticamente social-democrata do programa NFP, mas beneficiaria se fosse inserida num quadro mais amplo. Para permitir a redistribuição do poder económico, seria necessário subir até 50% dos assentos nas grandes empresas, limitando ao mesmo tempo os direitos de voto dos maiores acionistas e comprometendo-se com uma redistribuição real dos ativos. Em vez de chafurdar num radicalismo retórico superficial, é altura de a esquerda voltar a descrever o sistema económico alternativo a que aspira, reconhecendo ao mesmo tempo que as coisas serão feitas por etapas.

Em todas estas questões, só o trabalho coletivo permitirá avançar, o que exige a criação de uma verdadeira federação democrática de esquerda capaz de organizar a deliberação e resolver disputas. Estamos longe disso: ao longo dos últimos anos, a LFI nunca deixou de querer impor a sua hegemonia autoritária à esquerda, como o PS de outrora, mas pior, dada a recusa de qualquer procedimento de votação por parte dos dirigentes rebeldes. Mas o eleitorado de esquerda não se deixa enganar: sabe bem que o exercício do poder exige acima de tudo humildade, deliberação e trabalho coletivo. É hora de responder a esta aspiração.

 

Fonte: A Terra é Redonda/O Cafezinho

 

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