Cúpula do Mercosul: Lula mantém liderança,
enquanto Milei fica mal visto no cenário externo, observam analistas
A 64ª cúpula de Chefes
de Estado do Mercosul teve início na segunda-feira (8), em Assunção, no
Paraguai, sem a presença do presidente de um dos membros mais importantes do
bloco: a Argentina.
O presidente
argentino, Javier Milei, decidiu não comparecer à cúpula, enviando como
representante a chanceler Diana Mondino. No lugar da cúpula, Milei optou por
voltar sua atenção para a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC)
2024, evento organizado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em
Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Em entrevista ao
podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam o que a ausência de
Milei representa para a cúpula do Mercosul e o fato do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva ser minoria no evento, uma vez que dentre os chefes de Estado presentes,
apenas ele e seu homólogo boliviano, Luís Arce, são de esquerda.
Eduardo Galvão,
professor de relações institucionais do IBMEC-DF e diretor de Public Affairs da
consultoria Burson Brasil, afirma que a decisão de Milei de não participar da
cúpula "pode ser entendida como uma manobra estratégica e com várias
motivações possíveis".
"O Milei tem uma
postura ultraliberal e ele frequentemente critica o Mercosul por ser um bloco
protecionista e que, na visão dele, impediria o livre comércio e a abertura
econômica que ele tanto defende [...] Além disso, ao evitar essa reunião, Milei
também se distancia de outros possíveis embates com outros líderes do bloco,
como, por exemplo, o próprio presidente Lula, que tem visões políticas que são
diametralmente opostas."
Galvão diz que a
decisão de Milei reflete uma "combinação de desaprovação
estratégica", evitação de conflitos ideológicos e um foco nas prioridades
internas do país". Segundo ele, a ida à CPAC é parte dessa estratégia de
Milei, uma vez que a conferência em Balneário Camboriú "conversa muito
mais com a sua agenda e com as suas ideias".
"Ele, inclusive,
faz isso de uma forma bastante deselegante [...] do ponto de vista dos costumes
diplomáticos, a vinda do Milei ao Brasil, sem avisar o presidente Lula e sem
encontrar ele, é bastante inusitada. Isso pode ser visto como uma quebra de
protocolo. Na diplomacia, existe uma série de normas e de práticas
estabelecidas para manter o respeito, para manter a cortesia entre os líderes e
entre as nações. Tradicionalmente, quando um chefe de Estado ou um chefe de
governo visita outro país, especialmente um país vizinho, parceiro de um bloco
econômico, como é o Mercosul, é de praxe informar e, se possível, agendar um
encontro com o líder anfitrião do país que o está recebendo."
Ele acrescenta que
gestos como o de Milei podem ter repercussões negativas, uma vez que "a
diplomacia é construída em uma base de respeito mútuo, de comunicação aberta, e
quebrar essas normas pode levar a mal-entendidos, pode levar a complicações nas
relações diplomáticas".
"Mesmo que Milei
esteja tentando projetar uma imagem de independência, de firmeza, a falta de
comunicação e o não cumprimento desses protocolos diplomáticos podem ser
prejudiciais a longo prazo. Esse tipo de atitude definitivamente pode ser
interpretado como um sinal de desrespeito e pode, sim, complicar as relações
bilaterais."
Galvão afirma que a
postura de Milei não é isolada e reflete o comportamento de políticos de
ideologia ultrarradicais que têm aversão ao diálogo com líderes de outros
espectros políticos.
"É super mal
visto [esse comportamento] no cenário internacional um tipo de atitude como
essa. E o que temos de efeito prático é um distanciamento que, a meu ver, não
beneficia ninguém, pelo contrário, prejudica os dois lados da interlocução,
independente de que espectro da política eles estejam situados."
·
A Argentina pode sair do Mercosul?
Galvão enfatiza que o
Mercosul, historicamente, tem sido uma plataforma importante para a integração
econômica e para a integração política na América do Sul, e que a Argentina
sempre teve um papel central no bloco. Porém, a chegada de Milei ao poder levantou
dúvidas sobre a possível saída da Argentina do agrupamento.
Segundo Galvão, essa
seria uma decisão "bastante drástica", já que "a permanência da
Argentina no Mercosul traz vários benefícios econômicos, políticos e sociais
que são importantes para a Argentina nesse momento".
"Ao permanecer no
Mercosul, a Argentina continua a se beneficiar das tarifas reduzidas, do acesso
facilitado aos mercados dos outros países membros e isso é particularmente
importante para setores como o setor agrícola, o setor automotivo, que dependem
muito das exportações para esses mercados. A participação da Argentina no
Mercosul permite que a Argentina se beneficie de cadeias de suprimento, de um
mercado ampliado, isso pode levar a economias de escala, pode aumentar a
competitividade das indústrias argentinas."
Ademais, ele destaca
que o Mercosul não é apenas um bloco econômico, é também um fórum político, de
projetos conjuntos de infraestrutura como rodovias, ferrovias, projetos de
integração energética como gasodutos. "Todos esses projetos são facilitados
justamente pelo fato de pertencer ao bloco do Mercosul", explica.
·
Lula está isolado no bloco?
Dentre os atuais
membros do Mercosul apenas os governos do Brasil e da Bolívia são de esquerda.
Questionado se esse fato, somado à ausência de Milei, pode isolar Lula no
bloco, Galvão descarta essa possibilidade e diz que "Lula ainda exerce uma
liderança bastante significativa no Mercosul por várias razões".
"O Brasil é a
maior economia do bloco, isso automaticamente dá ao presidente brasileiro uma
influência muito grande nas decisões e nas direções que são tomadas pelo grupo.
A posição econômica bastante robusta que o Brasil tem ali dentro permite que o
presidente tenha um peso substancial nas negociações e nos acordos comerciais.
Além disso, Lula também tem uma vasta experiência política, vasta experiência
diplomática, está no seu terceiro mandato e é reconhecido internacionalmente
justamente pelas suas habilidades de negociação e de mediação."
Ele afirma ainda que a
trajetória de Lula na política "tem sido marcada por esforços para
fortalecer a integração regional", e "promover o desenvolvimento
econômico e social, não só no Brasil, mas também nos países do Mercosul".
"Então isso torna
Lula um interlocutor respeitado, capaz de construir pontes entre diferentes
visões políticas, diferentes visões econômicas."
·
Rejeição ao Mercosul é retórica política
Cairo Junqueira,
professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de
Sergipe (UFS) e pesquisador do Observatório de Regionalismo (ODR), afirma que a
postura de Milei não reflete os interesses da Argentina, o que está explícito
na declaração da chanceler Diana Mondino, que ressaltou que o bloco "é um
dos maiores parceiros comerciais" do país.
"A gente tem que
fazer análise dividindo discurso e prática. Milei tem um discurso muito
enfático e um plano de governo que vai criticar e vai ser muito cético e
pessimista em relação, por exemplo, ao papel de determinadas organizações
internacionais. Isso não é uma característica somente do Milei, [...] é uma
característica do [Jair] Bolsonaro na época que ele foi presidente no Brasil
[...] É um movimento político, ideológico e também que ele também vai agir na
base do discurso [...] Só que esse discurso difere muito de uma prática
política que é exatamente isso, é o interesse da Argentina dentro do
Mercosul."
Ele sublinha que uma
hipotética saída da Argentina do Mercosul seria ruim para o país e para o bloco
e não condiz com o interesse de setores empresariais.
"Dentro da
Argentina tem setores econômicos, comerciais, industriais que dependem muito do
comércio intrabloco com o Mercosul e vão ter uma posição muito contrária ao que
Milei defende."
Junqueira afirma que a
diferença entre discurso e prática na gestão Milei pode ser vista no fato de
que os três maiores parceiros comerciais do país são Brasil, China e EUA, sendo
que os dois primeiros já foram alvo da retórica radical de Milei.
"Quando ele
[Milei] disse que não [...] faria comércio com a China porque ele não faria
comércio com comunistas, isso é discurso, porque [...] a Argentina depende
muito mais da China do que a China depende da Argentina em termos de tamanhos
econômicos. Então, por vezes, isso é muito mais uma retórica e, na prática, os
interesses comerciais nesse sentido acabam tendo uma outra dinâmica, nesse
caso, de continuidade do país no próprio bloco [Mercosul]."
·
Quais são os pontos altos da cúpula do
Mercosul?
Questionado sobre
quais seriam os pontos mais importantes da cúpula do Mercosul, Junqueira
menciona primeiro a própria ausência de Milei, que ele aponta como prejudicial
para a América do Sul como um todo.
"O Mercosul
depende de boas relações entre Brasil e Argentina para continuar sendo o bloco
que é. A ausência de Milei em torno dessas faíscas diplomáticas entre Brasil e
Argentina é um ponto importante e, de certo modo, ruim para a região em si. Não
somente no Mercosul, mas para a região de um modo geral."
O segundo ponto
importante, segundo Junqueira, é "a formalização final de entrada da
Bolívia no Mercosul", que ele aponta demonstrar que o bloco ainda tem
importância, é viável e precisa aumentar a participação na região.
"A Bolívia é um
ator central. Eu vejo que é um país central aqui na região e de muita
importância, inclusive, para o Brasil. [...] A Bolívia está muito mais próxima
do oceano Pacífico. Então, em termos de escoamento de produção, de venda e
comercialização de produtos, a Bolívia também vai ser importante para o Brasil
nesse sentido."
Ele cita como exemplo
da importância da entrada da Bolívia para o bloco a balança comercial do país.
"Quando a gente
pega a balança comercial da Bolívia, a gente tem muita produção de minérios. E
quando eu falo minério, eu estou falando de ouro, estou falando do debate que
se tem em torno do lítio, que é extremamente importante para fazer baterias de
celular, de eletrônicos. Ou seja, é um ponto importante também, e eu vejo de
forma muito benéfica a entrada da Bolívia, em termos comerciais, mas também em
termos de aproximação política", conclui o especialista.
¨ Lula ataca "nacionalismo arcaico e isolacionista"
Ao discursar na Cúpula
do Mercosul, no Paraguai, nesta
segunda-feira (08/07), o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva criticou o que chamou de
"nacionalismo arcaico e isolacionista".
"No mundo
globalizado, não faz sentido recorrer ao nacionalismo arcaico e isolacionista.
Tampouco há justificativa para resgatar as experiências ultraliberais que
apenas agravaram as desigualdades em nossa região", disse, em uma clara
alusão ao governo do presidente argentino, Javier
Milei, o único dos líderes do Mercosul que não compareceu à
reunião. Esta a primeira vez que um presidente da Argentina não participa
do evento.
Lula lembrou que esta
é a 19ª Cúpula do Mercosul de que participa como chefe de Estado. Para ele,
"nunca nos deparamos com tantos desafios, seja no âmbito regional, seja
a nível global".
"Nos últimos
anos, permitimos que conflitos e disputas, muitas vezes alheios à região, se
sobreponham à nossa vocação de paz e cooperação. Voltamos a ser uma região
balcanizada e dividida, mais voltada para fora do que para si própria",
afirmou.
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Apelo por fortalecimento da democracia na
região
O petista fez um apelo
em prol do fortalecimento da democracia na região após a tentativa de golpe de Estado contra o governo de Luis Arce , na Bolívia, no último dia 26 de junho.
Durante seu discurso,
o presidente brasileiro destacou que "não há atalhos para a
democracia" e elogiou a posição do Mercosul em defesa do Estado
de direito.
"Mas é preciso
permanecer vigilantes. Falsos democratas tentam solapar as instituições e
colocá-las a serviço de interesses reacionários", alertou Lula em seu
discurso.
O presidente lembrou
que, assim como a Bolívia, o Brasil também sofreu uma tentativa frustrada de
golpe no início de seu terceiro mandato, em 8 de janeiro de 2023, quando
apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro atacaram as sedes dos Três Poderes
em Brasília.
Mais uma vez Lula
criticou as desigualdades vividas na região e disse que democracia e
desenvolvimento "andam de mãos dadas".
·
"Entrada da Bolívia é
estratégica"
Além disso, Lula
recordou os progressos que o bloco tem feito em questões comerciais e convidou
os demais países-membros a "pensar grande" e a não se limitar a
"propostas simplistas" que o enfraquecem institucionalmente.
"Precisamos de
uma integração regional profunda, baseada no trabalho qualificado e na produção
de ciência, tecnologia e inovação para geração de emprego e renda",
comentou.
Lula também destacou
em seu discurso a entrada da Bolívia como membro pleno do bloco e descreveu-a
como "estratégica" devido ao seu importante papel no setor
energético.
O presidente
brasileiro também frisou a necessidade de avançar no comércio exterior e
destacou os progressos feitos durante a presidência paraguaia do bloco para um
acordo com os Emirados Árabes Unidos.
Já em relação ao
acordo que está pendente com a União Europeia, disse que está parado porque "os europeus ainda não
conseguiram resolver as suas próprias contradições internas".
Além de Lula, a cúpula
do Mercosul, que tem como anfitrião o paraguaio Santiago Peña, conta com a
participação dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou; da Bolívia, Luis
Arce; e do Panamá, José Raúl Mulino, este último como convidado.
Fonte: Sputnik
Brasil/Deutsche Welle
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