Como a tecnologia pode contribuir para a
equidade em saúde
Diante da era da
policrise – termo adotado por pensadores para definir as diversas crises
globais simultâneas, como financeira, climática, política e social –, os
avanços científicos e tecnológicos esbarram em uma contradição: o risco de que
as novas soluções em saúde não cheguem para todos os que precisam, contribuindo
para a desigualdade de acesso. O fato tem feito com que tomadores de decisão
discutam cada vez mais como a tecnologia e a inovação precisam andar de mãos
dadas com a promoção da equidade em saúde.
O assunto foi o tema
central do 9º Fórum Latino-Americano de Qualidade e Segurança na Saúde,
realizado entre os dias 9 e 11 de julho, em São Paulo. O encontro reuniu
especialistas de diversos países para discutir os desafios e as demandas que
têm feito parte da rotina das lideranças no setor. A iniciativa é uma
realização conjunta entre o Einstein e o Institute for Healthcare Improvement
(IHI), organização norte-americana sem fins lucrativos que atua no
aprimoramento da saúde há mais de 30 anos.
“Tão importante quanto
falar de qualidade, segurança e de alta complexidade é falar sobre saúde onde
falta alimento, moradia e saneamento básico”, destacou Sidney Klajner,
presidente do Einstein, durante painel que abriu o evento. “A busca por
equidade é um enorme desafio. E falar de equidade para organizações que buscam
saúde deixou de ser um objetivo e passou a ser uma obrigação.”
Klajner afirmou ainda
que a tecnologia não deve ser encarada como um fim, mas como um meio para
promover a equidade de acesso a uma saúde de qualidade. Segundo ele, tornar as inovações
de saúde mais acessíveis para a população dependerá de esforços
multissetoriais, além de soluções que auxiliem na distribuição de recursos de
maneira mais eficiente.
Para Kedar Mate,
presidente do IHI, que também participou do painel, o olhar em relação à
tecnologia deve ir além da sua aplicação no cuidado, justamente para criar
condições que permitam que a população tenha melhor acesso à saúde. “Precisamos
chegar mais próximo das pessoas. Não vamos mais pedir para que elas venham a
São Paulo e outras grandes cidades, vamos chegar nas comunidades. A expectativa
dos nossos pacientes é de que a saúde chegue aonde vivem, e isso é possível com
o uso da tecnologia.”
·
Meta quíntupla
A equidade é a quinta
das cinco metas propostas pelo IHI para promover a qualidade e a segurança nos
serviços de saúde de todo o mundo. Em 2007, o IHI já havia estabelecido três
objetivos: otimizar a experiência do paciente, melhorar a saúde da população e
reduzir o custo per capita dos cuidados com a saúde. Ao longo dos anos, esse
sistema evoluiu e incorporou a promoção do bem-estar dos profissionais de saúde
como a quarta meta. Após a pandemia, a equidade passou a integrar o modelo como
a quinta meta.
Segundo Miguel
Cendoroglo Neto, diretor médico do Einstein, o sistema de saúde é muito
fragmentado e os objetivos ajudam a orientar os esforços. “Você tem a indústria
indo em uma direção e os prestadores indo para outra, competindo entre si. O
modelo do IHI nasceu de uma proposta de direcionamento em comum. Antes se
pensava que a redução do custo per capita e a experiência com o cuidado, a
qualidade e a segurança eram coisas opostas, e esse sistema veio para mostrar
que, se não tivermos desperdícios, reduzimos o custo da saúde e conseguimos
fazer mais com o dinheiro disponível”, afirma.
Para Paula Tuma,
diretora de qualidade e segurança do Einstein, realizar eventos desse tipo são
importantes para compartilhar a mentalidade de inovação com o setor. “No
Einstein, a liderança é entusiasta da tecnologia e da inovação, mas sabemos que
essa não é a realidade de todas as organizações. Chamar a atenção para a
importância disso dentro da comunidade de saúde é parte da nossa
responsabilidade como líderes em saúde”, aponta.
Para ela, a discussão
sobre tecnologia e equidade é fundamental porque o mundo está em um novo
momento. “Passamos a usar a tecnologia para evitar erros, para trazer mais
dados para o médico. [Nesse sentido], não somos nós que trabalhamos a favor da
tecnologia, a tecnologia é que precisa trabalhar para nós para entregarmos
processos melhores.”
·
Tecnologia para
equidade em saúde
A vice-presidente do
IHI para América Latina, Jafet Arrieta, também esteve presente no encontro e
destacou que a aplicação de novas tecnologias de saúde tem que ter como
preocupação levar a medicina para dentro das comunidades. “A ideia de estar
próximo das comunidades é muito importante. Ter os especialistas envolvendo as
famílias e a comunidade no desenho e na produção dessas novas tecnologias é
fundamental.”
Neste contexto, Klajner lembrou dois projetos do Einstein que já fazem
uso do potencial da inteligência artificial para promover a assistência básica
em áreas remotas, onde a presença física do médico especialista nem sempre é
uma realidade. O primeiro é o SAMPa (Smart
Assistant for Monitoring Prenatal Health Care), que nasceu como uma resposta ao
desafio da alta mortalidade materna em Manaus. Atualmente a capital do Amazonas
tem uma taxa 5 vezes superior ao limite ideal estabelecido pela Organização
Mundial de Saúde (OMS).
Desenvolvido pelo
Einstein em 2023 com apoio da Fundação Bill e Melinda Gates, o SAMPa utiliza o
modelo de linguagem larga (LLM, na sigla em inglês), mesma lógica do ChatGPT,
para auxiliar tanto os médicos de família quanto as pacientes na condução de um
pré-natal mais seguro, ajudando a identificar potenciais gestações de risco. A
ferramenta pode transcrever o áudio das consultas, sugerir perguntas ao
profissional e fornecer materiais de apoio para as gestantes.
O segundo projeto é
fruto do recém-inaugurado Centro de Inovação do Einstein em Manaus. O objetivo
é combater a leishmaniose cutânea, doença com alta taxa de prevalência local e
cujo diagnóstico não é tão simples para médicos não especialistas. “Criamos um
aplicativo que permite que o médico generalista faça o diagnóstico precoce da
doença, que é endêmica na região Norte do país. Ao identificar um padrão na
imagem, capturada pelo próprio smartphone do profissional de saúde, a IA ajuda
no diagnóstico e encaminhamento para o setor correto de tratamento”, explica
Klajner.
·
Olhar para a saúde
mental
Além das questões de
acesso a inovações, tecnologias e segurança na jornada, a saúde mental também
foi um dos temas tratados nos debates principais do fórum. O desafio se
apresenta não apenas nos consultórios médicos como nos bastidores das clínicas
e hospitais, já que as taxas de ansiedade, depressão e burnout são alarmantes
também entre os profissionais de saúde. A depressão já é a principal causa de incapacidade no mundo, segundo a OMS, e há evidências que demonstram um possível
detrimento da saúde física em pessoas solitárias.
“O Brasil é
considerado o país com maior prevalência de transtornos de ansiedade do mundo”,
afirmou Dulce Brito, gerente médica de Bem-Estar e Saúde Mental do Einstein,
durante painel sobre o tema. “Somos também, nas Américas, o país número 1 em
casos de depressão. E isso diz um pouco da importância da crise global que
vivemos e de discutirmos esse tema.”
A preocupação é ainda
tão ou mais urgente com as crianças e adolescentes, aponta Steven Muething,
diretor de Qualidade do Cincinnati Children’s Hospital Medical Center, que
esteve presente no fórum para falar de sua experiência clínica. “Falando como
pai e como pediatra, algo mudou dramaticamente na nossa sociedade, porque as
crianças não estão bem, elas estão sofrendo muito. Nós não sabemos todas as
razões, mas sabemos que isso começou antes da pandemia, e de lá para cá o
cenário vem piorando.”
Ele salienta que a
tentativa de resolver o problema atual com as mesmas soluções de dez anos atrás
é imprudente, já que as necessidades são outras. “Se continuarmos com os mesmos
métodos, não vamos resolver o problema”, acredita ele, que abordou ainda os
desafios de estruturar um sistema de cuidado de saúde mental diante de uma
demanda por cuidados que só aumenta enquanto o número de profissionais
especializados se mantém estável.
A influência dos
determinantes sociais em um cenário de saúde mental fragilizada também foi
ressaltada pelo psiquiatra forense Amar Shah, da East London NHS Foundation
(ELFT), que integra a rede de cuidados de saúde mental do sistema público de
saúde britânica. “Essa epidemia não está crescendo igualmente. Estamos vendo um
aumento maior de demandas de saúde mental entre crianças e adolescentes, além
de existir uma relação entre a privação e a saúde mental, então provavelmente
você vai desenvolver uma condição mental pior se viver em um local que não
atende suas necessidades básicas.”
Para o especialista,
um dos caminhos para lidar com o problema é entender como os novos recursos
tecnológicos, como a telemedicina, podem auxiliar a suprir essa demanda. “Nossa
primeira estratégia é realmente fazer o máximo que podemos com o que temos, maximizando
a nossa capacidade de acesso e melhorando a qualidade. Mas como parte disso,
queremos olhar também para a tecnologia, porque ela tem o potencial de nos
permitir um suporte flexível, com horários mais convenientes e consultas
virtuais que podem ajudar pessoas que não teriam acesso e cuidados de outra
forma”, concluiu.
·
Segurança baseada em
dados
A tecnologia também
surge como uma aliada cada vez mais indispensável para aprimorar a segurança do
paciente e a qualidade do cuidado prestado nas instituições de saúde. Recursos
como Inteligência Artificial, Machine Learning, Big Data e Internet das Coisas
(IoT, na sigla em inglês) já são utilizados para otimizar a leitura de exames
de imagem, melhorar processos e identificar padrões em momentos sensíveis da
jornada do paciente, como predizer a chance de internação de uma pessoa que
procura o Pronto Atendimento.
Para a área de
segurança do paciente, a análise de dados e a construção e o fortalecimento de
uma “cultura de segurança” são ferramentas importantes, como salientou Paula
Tuma ao destacar os sete objetivos da OMS nesse aspecto. “O sexto objetivo fala sobre garantir um fluxo constante de
informações e conhecimento para mitigar os riscos. Somos incentivados a ser
direcionados por dados, a aprender com esses dados e a trabalhar em modelos de
melhoria de forma colaborativa, engajando também pacientes e famílias, para a
construção dessa cultura de segurança”, afirmou a especialista durante o seu
painel.
Heidi Wald, diretora
de qualidade e segurança do Intermountain Health – um sistema de saúde
norte-americano sem fins lucrativos –, dividiu sua experiência sobre a fusão da
instituição com outra organização de saúde em 2022, e o desafio para integrar
as metas e sistemas de controle de qualidade e segurança. “Temos um senso de
disciplina e centralização muito forte em relação às funções na organização.
Esse modelo operacional é muito importante para o trabalho de segurança do
paciente, porque esse é um objetivo que envolve desde a linha de frente até os
executivos da organização, todos precisam falar a mesma linguagem de
segurança”, explicou.
O erro de diagnóstico
é outra grande preocupação no campo da segurança na medicina, já que afeta até
12 milhões de americanos por ano, de acordo com Hardeep Singh, pesquisador e
chefe do programa de política de saúde, qualidade e informática na Baylor College
of Medicine. O cientista aponta que a jornada de segurança do paciente é
multidisciplinar, e que os dados têm um papel indispensável na redução dos
eventos adversos, pois permitem identificar a causa raiz do problema.
“Temos dados e bons
sistemas de tecnologia. Criamos um banco de dados onde reunimos todas as
informações e documentos relacionados a erros diagnósticos nos Estados Unidos.
Então há várias formas das organizações identificarem esses erros e trabalhar a
partir daí”, diz Singh.
·
Empatia como
estratégia para melhores resultados
Um dos pilares para se
alcançar bons resultados de qualidade e segurança do paciente, garantir que o
acesso seja viabilizado e que os recursos sejam utilizados de maneira
sustentável, é ter um time de alta performance. Mas é preciso que os times
também possuam uma qualidade indispensável: a empatia com o paciente, que
geralmente está passando por um momento de grande vulnerabilidade.
“Às vezes podemos
perder o foco quando estamos olhando para os nossos desafios. Embora a
eficiência seja importante no cuidado da saúde, temos que voltar ao propósito
da conexão humana e das razões pelas quais cuidamos de pessoas”, disse Robert
Klaber, diretor de Estratégia, Pesquisa e Inovação do Imperial College
Healthcare NHS Trust, também do sistema público de saúde britânico, em um dos
painéis.
Usando como exemplo o
trabalho do pesquisador Michael West, Klaber apresentou quais características
devem existir em um time bem-sucedido em saúde: “Após décadas de pesquisa
empírica, West chegou nesses quatro comportamentos: ser atencioso,
compreensível, empático e prestativo. Esse é o time que traz melhores
resultados.”
Fonte: Futuro da Saúde
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