sexta-feira, 19 de julho de 2024

Como a tecnologia pode contribuir para a equidade em saúde

Diante da era da policrise – termo adotado por pensadores para definir as diversas crises globais simultâneas, como financeira, climática, política e social –, os avanços científicos e tecnológicos esbarram em uma contradição: o risco de que as novas soluções em saúde não cheguem para todos os que precisam, contribuindo para a desigualdade de acesso. O fato tem feito com que tomadores de decisão discutam cada vez mais como a tecnologia e a inovação precisam andar de mãos dadas com a promoção da equidade em saúde.

O assunto foi o tema central do 9º Fórum Latino-Americano de Qualidade e Segurança na Saúde, realizado entre os dias 9 e 11 de julho, em São Paulo. O encontro reuniu especialistas de diversos países para discutir os desafios e as demandas que têm feito parte da rotina das lideranças no setor. A iniciativa é uma realização conjunta entre o Einstein e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), organização norte-americana sem fins lucrativos que atua no aprimoramento da saúde há mais de 30 anos.

“Tão importante quanto falar de qualidade, segurança e de alta complexidade é falar sobre saúde onde falta alimento, moradia e saneamento básico”, destacou Sidney Klajner, presidente do Einstein, durante painel que abriu o evento. “A busca por equidade é um enorme desafio. E falar de equidade para organizações que buscam saúde deixou de ser um objetivo e passou a ser uma obrigação.”

Klajner afirmou ainda que a tecnologia não deve ser encarada como um fim, mas como um meio para promover a equidade de acesso a uma saúde de qualidade. Segundo ele, tornar as inovações de saúde mais acessíveis para a população dependerá de esforços multissetoriais, além de soluções que auxiliem na distribuição de recursos de maneira mais eficiente.

Para Kedar Mate, presidente do IHI, que também participou do painel, o olhar em relação à tecnologia deve ir além da sua aplicação no cuidado, justamente para criar condições que permitam que a população tenha melhor acesso à saúde. “Precisamos chegar mais próximo das pessoas. Não vamos mais pedir para que elas venham a São Paulo e outras grandes cidades, vamos chegar nas comunidades. A expectativa dos nossos pacientes é de que a saúde chegue aonde vivem, e isso é possível com o uso da tecnologia.”

·        Meta quíntupla

A equidade é a quinta das cinco metas propostas pelo IHI para promover a qualidade e a segurança nos serviços de saúde de todo o mundo. Em 2007, o IHI já havia estabelecido três objetivos: otimizar a experiência do paciente, melhorar a saúde da população e reduzir o custo per capita dos cuidados com a saúde. Ao longo dos anos, esse sistema evoluiu e incorporou a promoção do bem-estar dos profissionais de saúde como a quarta meta. Após a pandemia, a equidade passou a integrar o modelo como a quinta meta.

Segundo Miguel Cendoroglo Neto, diretor médico do Einstein, o sistema de saúde é muito fragmentado e os objetivos ajudam a orientar os esforços. “Você tem a indústria indo em uma direção e os prestadores indo para outra, competindo entre si. O modelo do IHI nasceu de uma proposta de direcionamento em comum. Antes se pensava que a redução do custo per capita e a experiência com o cuidado, a qualidade e a segurança eram coisas opostas, e esse sistema veio para mostrar que, se não tivermos desperdícios, reduzimos o custo da saúde e conseguimos fazer mais com o dinheiro disponível”, afirma.

Para Paula Tuma, diretora de qualidade e segurança do Einstein, realizar eventos desse tipo são importantes para compartilhar a mentalidade de inovação com o setor. “No Einstein, a liderança é entusiasta da tecnologia e da inovação, mas sabemos que essa não é a realidade de todas as organizações. Chamar a atenção para a importância disso dentro da comunidade de saúde é parte da nossa responsabilidade como líderes em saúde”, aponta.

Para ela, a discussão sobre tecnologia e equidade é fundamental porque o mundo está em um novo momento. “Passamos a usar a tecnologia para evitar erros, para trazer mais dados para o médico. [Nesse sentido], não somos nós que trabalhamos a favor da tecnologia, a tecnologia é que precisa trabalhar para nós para entregarmos processos melhores.”

·        Tecnologia para equidade em saúde

A vice-presidente do IHI para América Latina, Jafet Arrieta, também esteve presente no encontro e destacou que a aplicação de novas tecnologias de saúde tem que ter como preocupação levar a medicina para dentro das comunidades. “A ideia de estar próximo das comunidades é muito importante. Ter os especialistas envolvendo as famílias e a comunidade no desenho e na produção dessas novas tecnologias é fundamental.”

Neste contexto, Klajner lembrou dois projetos do Einstein que já fazem uso do potencial da inteligência artificial para promover a assistência básica em áreas remotas, onde a presença física do médico especialista nem sempre é uma realidade. O primeiro é o SAMPa (Smart Assistant for Monitoring Prenatal Health Care), que nasceu como uma resposta ao desafio da alta mortalidade materna em Manaus. Atualmente a capital do Amazonas tem uma taxa 5 vezes superior ao limite ideal estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Desenvolvido pelo Einstein em 2023 com apoio da Fundação Bill e Melinda Gates, o SAMPa utiliza o modelo de linguagem larga (LLM, na sigla em inglês), mesma lógica do ChatGPT, para auxiliar tanto os médicos de família quanto as pacientes na condução de um pré-natal mais seguro, ajudando a identificar potenciais gestações de risco. A ferramenta pode transcrever o áudio das consultas, sugerir perguntas ao profissional e fornecer materiais de apoio para as gestantes.

O segundo projeto é fruto do recém-inaugurado Centro de Inovação do Einstein em Manaus. O objetivo é combater a leishmaniose cutânea, doença com alta taxa de prevalência local e cujo diagnóstico não é tão simples para médicos não especialistas. “Criamos um aplicativo que permite que o médico generalista faça o diagnóstico precoce da doença, que é endêmica na região Norte do país. Ao identificar um padrão na imagem, capturada pelo próprio smartphone do profissional de saúde, a IA ajuda no diagnóstico e encaminhamento para o setor correto de tratamento”, explica Klajner.

·        Olhar para a saúde mental

Além das questões de acesso a inovações, tecnologias e segurança na jornada, a saúde mental também foi um dos temas tratados nos debates principais do fórum. O desafio se apresenta não apenas nos consultórios médicos como nos bastidores das clínicas e hospitais, já que as taxas de ansiedade, depressão e burnout são alarmantes também entre os profissionais de saúde. A depressão já é a principal causa de incapacidade no mundo, segundo a OMS, e há evidências que demonstram um possível detrimento da saúde física em pessoas solitárias.

“O Brasil é considerado o país com maior prevalência de transtornos de ansiedade do mundo”, afirmou Dulce Brito, gerente médica de Bem-Estar e Saúde Mental do Einstein, durante painel sobre o tema. “Somos também, nas Américas, o país número 1 em casos de depressão. E isso diz um pouco da importância da crise global que vivemos e de discutirmos esse tema.”

A preocupação é ainda tão ou mais urgente com as crianças e adolescentes, aponta Steven Muething, diretor de Qualidade do Cincinnati Children’s Hospital Medical Center, que esteve presente no fórum para falar de sua experiência clínica. “Falando como pai e como pediatra, algo mudou dramaticamente na nossa sociedade, porque as crianças não estão bem, elas estão sofrendo muito. Nós não sabemos todas as razões, mas sabemos que isso começou antes da pandemia, e de lá para cá o cenário vem piorando.”

Ele salienta que a tentativa de resolver o problema atual com as mesmas soluções de dez anos atrás é imprudente, já que as necessidades são outras. “Se continuarmos com os mesmos métodos, não vamos resolver o problema”, acredita ele, que abordou ainda os desafios de estruturar um sistema de cuidado de saúde mental diante de uma demanda por cuidados que só aumenta enquanto o número de profissionais especializados se mantém estável.

A influência dos determinantes sociais em um cenário de saúde mental fragilizada também foi ressaltada pelo psiquiatra forense Amar Shah, da East London NHS Foundation (ELFT), que integra a rede de cuidados de saúde mental do sistema público de saúde britânica. “Essa epidemia não está crescendo igualmente. Estamos vendo um aumento maior de demandas de saúde mental entre crianças e adolescentes, além de existir uma relação entre a privação e a saúde mental, então provavelmente você vai desenvolver uma condição mental pior se viver em um local que não atende suas necessidades básicas.”

Para o especialista, um dos caminhos para lidar com o problema é entender como os novos recursos tecnológicos, como a telemedicina, podem auxiliar a suprir essa demanda. “Nossa primeira estratégia é realmente fazer o máximo que podemos com o que temos, maximizando a nossa capacidade de acesso e melhorando a qualidade. Mas como parte disso, queremos olhar também para a tecnologia, porque ela tem o potencial de nos permitir um suporte flexível, com horários mais convenientes e consultas virtuais que podem ajudar pessoas que não teriam acesso e cuidados de outra forma”, concluiu.

·        Segurança baseada em dados

A tecnologia também surge como uma aliada cada vez mais indispensável para aprimorar a segurança do paciente e a qualidade do cuidado prestado nas instituições de saúde. Recursos como Inteligência Artificial, Machine Learning, Big Data e Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês) já são utilizados para otimizar a leitura de exames de imagem, melhorar processos e identificar padrões em momentos sensíveis da jornada do paciente, como predizer a chance de internação de uma pessoa que procura o Pronto Atendimento.

Para a área de segurança do paciente, a análise de dados e a construção e o fortalecimento de uma “cultura de segurança” são ferramentas importantes, como salientou Paula Tuma ao destacar os sete objetivos da OMS nesse aspecto. “O sexto objetivo fala sobre garantir um fluxo constante de informações e conhecimento para mitigar os riscos. Somos incentivados a ser direcionados por dados, a aprender com esses dados e a trabalhar em modelos de melhoria de forma colaborativa, engajando também pacientes e famílias, para a construção dessa cultura de segurança”, afirmou a especialista durante o seu painel.

Heidi Wald, diretora de qualidade e segurança do Intermountain Health – um sistema de saúde norte-americano sem fins lucrativos –, dividiu sua experiência sobre a fusão da instituição com outra organização de saúde em 2022, e o desafio para integrar as metas e sistemas de controle de qualidade e segurança. “Temos um senso de disciplina e centralização muito forte em relação às funções na organização. Esse modelo operacional é muito importante para o trabalho de segurança do paciente, porque esse é um objetivo que envolve desde a linha de frente até os executivos da organização, todos precisam falar a mesma linguagem de segurança”, explicou.

O erro de diagnóstico é outra grande preocupação no campo da segurança na medicina, já que afeta até 12 milhões de americanos por ano, de acordo com Hardeep Singh, pesquisador e chefe do programa de política de saúde, qualidade e informática na Baylor College of Medicine. O cientista aponta que a jornada de segurança do paciente é multidisciplinar, e que os dados têm um papel indispensável na redução dos eventos adversos, pois permitem identificar a causa raiz do problema.

“Temos dados e bons sistemas de tecnologia. Criamos um banco de dados onde reunimos todas as informações e documentos relacionados a erros diagnósticos nos Estados Unidos. Então há várias formas das organizações identificarem esses erros e trabalhar a partir daí”, diz Singh.

·        Empatia como estratégia para melhores resultados

Um dos pilares para se alcançar bons resultados de qualidade e segurança do paciente, garantir que o acesso seja viabilizado e que os recursos sejam utilizados de maneira sustentável, é ter um time de alta performance. Mas é preciso que os times também possuam uma qualidade indispensável: a empatia com o paciente, que geralmente está passando por um momento de grande vulnerabilidade.

“Às vezes podemos perder o foco quando estamos olhando para os nossos desafios. Embora a eficiência seja importante no cuidado da saúde, temos que voltar ao propósito da conexão humana e das razões pelas quais cuidamos de pessoas”, disse Robert Klaber, diretor de Estratégia, Pesquisa e Inovação do Imperial College Healthcare NHS Trust, também do sistema público de saúde britânico, em um dos painéis.

Usando como exemplo o trabalho do pesquisador Michael West, Klaber apresentou quais características devem existir em um time bem-sucedido em saúde: “Após décadas de pesquisa empírica, West chegou nesses quatro comportamentos: ser atencioso, compreensível, empático e prestativo. Esse é o time que traz melhores resultados.”

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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