Como dívida do Rio Grande do Sul virou bola
de neve e desafia reconstrução do Estado
As enchentes sem
precedentes que destruíram o Rio Grande do Sul trouxeram nova urgência para um
velho problema: o alto endividamento do Estado.
Diante dos gastos
necessários para sua reconstrução, o governo de Eduardo Leite (PSDB) tenta
renegociar a dívida de mais de R$ 96 bilhões com a União, principal credor do
Estado desde os anos 1990.
Após as inundações, a
União suspendeu por três anos o pagamento da dívida gaúcha e anistiou os juros
nesse período, mas isso é considerado insuficiente pela gestão Leite.
Já a seccional gaúcha
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tenta conseguir a extinção da dívida no
Supremo Tribunal Federal (STF).
O pedido foi
apresentado após a catástrofe climática dentro de uma ação antiga, de 2012, que
questiona a legalidade dos juros cobrados pela União e sustenta que, na
prática, a dívida já estaria paga há anos.
O relator do caso, o
ministro Luiz Fux, tenta mediar uma solução negociada, mas a primeira reunião,
em junho, acabou sem acordo.
Em paralelo, o
presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PL-MG) apresentou um projeto em que
propõe um refinanciamento que beneficiaria o Rio Grande do Sul e outros Estados
com dívidas elevadas, inclusive Minas Gerais, sua base eleitoral.
O governo estima que
as dívidas somem mais de R$ 700 bilhões, ao todo.
O texto costurado por
Pacheco prevê o congelamento do valor principal das dívidas, sem descontos, e
parcelamento em até 30 anos, abatimento e reversão de juros em investimentos e
entrega de ativos, como créditos judiciais, débitos de contribuintes e participações
acionárias em empresas, ao governo federal.
"Este é o maior
problema federativo, o que gera uma perda de capacidade de investimento e dos
Estados", disse Pacheco ao apresentar a proposta.
Para se ter uma ideia
do tamanho do problema no caso gaúcho, estima-se que o governo gaúcho
precisaria do equivalente a quase dois anos de sua arrecadação para quitar suas
dívidas — algo impossível na prática, já que precisa bancar serviços públicos,
como hospitais, escolas e segurança.
A situação gaúcha só
não é considerada mais grave que a do Rio de Janeiro, em que a proporção
dívida-arrecadação é ainda pior. Minas Gerais e São Paulo também estão muito
endividados.
Por enquanto, a
suspensão do pagamento da dívida por três anos deve aliviar o caixa do Estado
em R$ 11,7 bilhões, até abril de 2027, segundo o governo gaúcho, e o
congelamento dos juros deve significar um perdão de cerca de R$ 12 bilhões.
Na visão de alguns
economistas, a medida é paliativa, e a catástrofe climática justificaria o
perdão da dívida. Outros entendem que isso não seria correto, porque o resto do
país teria de arcar com débitos gaúchos.
Para Darcy Francisco
Carvalho dos Santos, auditor de finanças públicas aposentado da Secretaria da
Fazenda do Rio Grande do Sul e autor de livros sobre a dívida gaúcha, não é
certo dizer que o débito com a União está pago, conforme sustenta a OAB. Ainda assim,
ele passou a defender o perdão.
"Depois dessa
catástrofe, o Estado ficou destruído. Acho que não tem como pagar a dívida
mais", afirma.
Também economista
gaúcho, Arno Augustin tem outra visão. Como secretário de Fazenda do Rio Grande
do Sul no governo de Olívio Dutra (1999–2002) e secretário do Tesouro Nacional
nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (de 2007 a 2014), ele
já esteve tanto do lado devedor como do lado credor dessa dívida.
Na sua avaliação, não
é possível a União perdoar dívidas estaduais, porque isso teria um impacto nas
contas federais, elevando o endividamento da União.
Para Augustin, o
Estado já teve um alívio com a suspensão do pagamento e a anistia dos juros. Um
perdão completo do débito seria dar uma "vantagem indevida" ao Rio
Grande do Sul frente a outros Estados.
"Estados do
Sudeste e do Sul são mais endividados. O Nordeste é muito pouco endividado.
Então, um perdão da dívida favoreceria uma parte dos brasileiros",
ressalta.
Mas como o Rio Grande
do Sul se tornou um dos Estados com maior dificuldade financeira?
A explicação remonta a
décadas de contas no vermelho, empréstimos caros contraídos no mercado
financeiro, socorro da União, desentendimentos e inadimplência autorizada pelo
STF.
A dívida, porém,
continuou a existir e se tornou uma dor de cabeça a mais na reconstrução do
Estado.
• Um problema de décadas
A origem da dívida do
Rio Grande do Sul é comum a vários Estados, como mostram economistas como Fabio
Giambiagi, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e
Francisco Lopreato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em artigos
sobre o tema.
Desde ao menos os anos
1950, governos recorriam a empréstimos para bancar investimentos em
infraestrutura e salários de servidores, quando as receitas não eram
suficientes — o que ocorria com frequência.
Os Estados com as
maiores economias — São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul
— tinham a maior capacidade de se endividar e, como reflexo desse passado, são
os que têm as maiores dívidas até hoje.
No início, esses
empréstimos costumavam ser de longo prazo, com juros baixos. Mas, nos anos 1970
e 1980, os governos passaram a aumentar as captações com títulos no mercado
financeiro, um financiamento de curto prazo com juros altos.
Estados maiores também
costumavam ter seus bancos públicos e, quando as condições de financiamento no
mercado privado apertavam, recorriam a essas instituições para rolar suas
dívidas. Isso desembocou não só em altos endividamentos, como prejuízos e crises
bancárias.
Augustin não considera
um problema os Estados terem se endividado no passado, porque os recursos foram
importantes para fazer investimentos e desenvolver suas economias.
No Rio Grande do Sul,
por exemplo, foram usados na construção de rodovias, expansão da rede elétrica
e novas escolas.
O problema, diz
Augustin, estava no modelo de financiamento, com títulos no mercado financeiro.
Isso se tornou insustentável nos anos 1990, em meio à crise econômica, levando
a sucessivos socorros parciais da União aos Estados, mas que não resolviam o problema.
Após o Plano Real, que
encerrou o ciclo de hiperinflação, o Banco Central manteve a taxa básica de
juros, a Selic, em patamar elevado para evitar nova disparada de preços, o que
aumentou ainda mais o custo das dívidas estaduais.
Foi nesse contexto que
avançaram as negociações para a União assumir dívidas de vários Estados,
explica Francisco Lopreato.
"As dívidas
estaduais, principalmente dos quatro maiores (SP, RJ, MG e RS) estouraram após
o Plano Real. O acordo com a União era inevitável, porque os Estados perderam
capacidade de administrar sua dívida internamente", lembra o economista da
Unicamp.
• O acordo de 1998
Quando o acordo com o
Rio Grande do Sul foi firmado no final de 1998, a dívida com a União ficou em
R$ 10,2 bilhões (que, em valores atuais, corrigidos pelo IPCA, ultrapassam R$
48 bilhões).
Segundo dados da
Secretaria da Fazenda gaúcha, a maioria do montante inicial correspondia a
títulos emitidos pelo Estado e assumidos pelo Executivo Federal (R$ 7,1
bilhões) e ao socorro ao Banrisul, o banco estadual gaúcho (R$ 2,4 bilhões).
O contrato previa
prazo de pagamento de 30 anos. A correção da inflação seria feita pelo IGP-DI,
a juros de 6% ao ano.
Além disso, o Estado
não poderia comprometer mais de 13% da sua receita líquida com o pagamento da
dívida, para garantir que teria como pagar suas despesas.
Carvalho dos Santos
diz que essas condições geraram novos problemas.
O IGP-DI era, até
então, o índice de preços mais tradicional do país. Mas depois se mostrou uma
opção ruim para os Estados, já que sofre impacto das variações cambiais e
oscilou muito nos anos seguintes.
Outra questão, nota
Santos, é que, na prática, as parcelas da dívida superavam o limite de 13% da
receita.
Com isso, o Rio Grande
do Sul pagava apenas parte do que devia, e o restante ia se acumulando, com
novas correções de inflação e juros.
"Deveria ter sido
feito um acordo de pagamento de prazo mais longo, para que as parcelas fossem
menores", opina Carvalho dos Santos.
Essas questões levaram
o governo gaúcho, na época comandado por Tarso Genro (2011-2014), junto a
outros Estados e à Prefeitura de São Paulo, a pressionar pela renegociação das
dívidas.
Em 2014, o Congresso
aprovou uma lei que estabeleceu que a dívida seria corrigida pelo IPCA, mais 4%
de juros.
Previa também uma
revisão do valor devido desde janeiro de 2013. Na época, o governo gaúcho
estimava que as novas regras trariam economia de ao menos R$ 15 bilhões.
"Era justo mudar
porque a União estava pagando juros menores ao mercado. Se a dívida que União
rolava antes tinha uma taxa bem maior e passou a ser menor, é razoável que se
repasse essas vantagens para os Estados. Foi isso que fizemos", diz Arno
Augustin, que participou das negociações para troca no governo Dilma.
• Governo gaúcho para de pagar dívida
Na prática, porém, o
governo gaúcho continuou em dificuldade, e sua capacidade de arcar sua dívida
piorou com o forte desequilíbrio das contas estaduais.
O governo do
emedebista Ivo Sartori (2015-2018) foi marcado, já em seu primeiro ano, por
atrasos no pagamento de salários de servidores, fornecedores e nas parcelas da
dívida.
Carvalho dos Santos
aponta que, de um lado, a recessão da economia brasileira, iniciada no final de
2014, dificultava o aumento das receitas. De outro, Sartori herdou forte
aumento de gastos do governo anterior.
A gestão de Tarso
Genro foi marcada por reajustes para servidores, previstos até 2018, já no governo
seguinte. Os aumentos foram aprovados na Assembleia Legislativa gaúcha, com
apoio do partido de Sartori.
Com isso, o
comprometimento da receita do Estado com gastos com pessoal (servidores ativos
e aposentados) saltou de 60,4% para 72,2% entre 2010 e 2018.
Secretário da Fazenda
na gestão Tarso Genro, o economista Odir Tonollier defende os aumentos:
"Alguns reajustes que se acumularam no nosso governo foi porque os
anteriores não deram. Não dar reajuste tem limite também, porque, daqui a
pouco, os salários ficam tão baixos que o Estado fecha".
Ele ressalta também
que sua gestão manteve em dia tanto o pagamento dos salários como da dívida.
Por meio da assessoria
de Sartori, a BBC News Brasil tentou entrevistar o ex-governador ou seus
ex-secretários da Fazenda, mas não obteve retorno.
Para Francisco
Lopreato, os momentos em que o Rio Grande do Sul e outros Estados foram bons ou
maus pagadores têm mais a ver com as conjunturas econômicas do país do que com
a gestão dos governos.
Ele diz que, após a
negociação feita nos anos 1990, houve anos de maior crescimento econômico nos
primeiros governos Lula que impulsionaram as arrecadações estaduais,
favorecendo um ajuste fiscal e o pagamento da dívida.
Mas a crise de 2015 e
2016 gerou um desarranjo das contas estaduais, o que levou os Estados a
questionar a dívida no STF.
A gestão Sartori
conseguiu liminares para suspender o pagamento em 2016 e depois, novamente, em
2017, o que levou o Rio Grande do Sul a não honrar suas parcelas com a União
até o início de 2022, quando, ao final do primeiro governo de Eduardo Leite, o
Estado aderiu ao Regime de Recuperação Fiscal.
Esse regime, criado em
2017, no governo de Michel Temer, permite aos Estado renegociar o pagamento das
dívidas com a União, desde que concordem com privatizações e regras mais
rígidas de gastos.
Defensor das gestões
petistas, Augustin avalia que o maior agravante foi o tempo em que o Estado não
pagou a dívida com a União nos governos de Sartori e Leite.
Já Carvalho dos Santos
diz que Sartori não teve como horar os débitos por causa do aumentos dos gastos
herdados de Tarso Genro.
Já a gestão Leite, por
meio da Secretaria da Fazenda, disse que a liminar obtida no STF "visava o
equilíbrio fiscal do Rio Grande do Sul".
"Na época, o
Estado não tinha capacidade financeira para pagar em dia os salários dos
servidores e fornecedores, ameaçando a prestação de serviços públicos
essenciais", disse em nota.
"A medida
proporcionou o fôlego fiscal necessário para organizar as contas públicas,
evitando bloqueios de repasses da União e a inclusão do Estado em cadastros de
inadimplência."
A secretaria
argumentou ainda que, "mesmo que o Estado continuasse a pagar a dívida
mensalmente, o saldo devedor teria continuado a crescer de forma explosiva
devido aos encargos da dívida".
Após aderir ao Regime
de Recuperação Fiscal, a gestão Leite manteve, junto com outros Estados,
tentativas de renegociar as condições do débito com a União, mesmo antes da
destruição causada pelas enchentes.
O Rio Grande do Sul
defende uma revisão retroativa da correção da dívida, que "reduziria o
saldo devedor do Estado em cerca de 15%, um crédito que seria usado para abater
o saldo ou compensar as próximas prestações".
Além disso, pleiteia
que o saldo devedor passe a ser corrigido apenas pelo centro da meta anual de
inflação, estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional, e que está hoje em 3%.
Como a inflação
costuma ficar acima do centro da meta, a dívida tenderia a ter correção abaixo
do IPCA, caso a proposta seja aceita, e não haveria mais incidência de juros.
A reportagem procurou
o Ministério da Fazenda sobre as demandas gaúchas, mas não obteve retorno.
Para o economista
Francisco Lopreato, é inevitável que a União aceite algum tipo de renegociação
das dívidas estaduais e diz que os acordos atuais restringem muito a capacidade
de investimento desses governos.
"Com o Rio Grande
do Sul nessa draga, o Rio de Janeiro nem se fala, Minas também, temos os
Estados mais importantes, fora São Paulo, com dificuldades grandes
investimento", constata.
"O Brasil não
apresenta taxas altas de crescimento desde os anos 1980. Talvez, uma
possibilidade [para mudar isso], é abrir espaço para os Estados reduzirem a
dívida e poderem investir."
Fonte: BBC News Brasil
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