Celso de Mello: Abordagens policiais
discriminatórias são inconstitucionais
Infelizmente, temos
uma Polícia que tem agido , como o demonstram episódios recentes tornados
públicos, baseada em um absurdo e inconstitucional “racial profiling”, QUE NEGA
a determinados estratos sociais, compostos por pessoas negras (pretas e pardas)
, pobres e periféricas (lamentavelmente invisíveis aos olhos do Estado) , e
precisamente por serem vulneráveis, um tratamento respeitoso e equânime sob o
império da lei !
A utilização do
perfilamento racial (“Racial Profiling”) por agentes estatais, notamente por
integrantes dos órgãos de repressão criminal , representa inaceitável prática
discriminatória , arbitrária e abusiva quando seleciona suspeitos unicamente em
razão de sua etnicidade, origem regional ou procedência nacional !
Precisa (e correta) a
brilhante decisão da 6a. Turma do STJ no ponto em que repeliu , por ilicitude
(tanto originária quanto derivada) , a coleta e a produção de prova penal
resultante , unica e exclusivamente, da “impressão subjetiva da polícia sobre a
aparência ou atitude suspeita do indivíduo.”
O CPP, ao disciplinar
as buscas pessoais (revistas, “frisking”) e domiciliares, não se contenta
apenas – e tão somente – com meras impressões subjetivas sobre a aparência da
pessoa posta sob suspeita , repelindo essa conduta do agente policial , por ser
ilícita e abusiva, desqualificando-a , por isso mesmo, como critério de
legitimação de tais medidas extraordinárias , tanto que o ordenamento
processual penal exige , para esses meios de válida obtenção de prova , a
existência de “fundadas razões” (art. 240, $ 1o., busca domiciliar) ou de
“fundada suspeita”(art. 244, busca pessoal) !
Daí a acertada decisão
do STJ, no julgamento do RHC n. 158.580/BA, relator Ministro Rogerio Schietti
Cruz, Sexta Turma, julg. em 19/4/2022, DJe de 25/4/2022.) , que assim se
pronunciou em primorosíssimo acórdão , de que extraio o seguinte e elucidativo
fragmento :
“3. Não satisfazem a
exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g.
denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não
demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente,
no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada
em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou
aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa,
não preenche o standard probatório de fundada suspeita exigido pelo art. 244 do
CPP.
4. O fato de haverem sido encontrados
objetos ilícitos independentemente da quantidade após a revista não convalida a
ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento fundada suspeita de posse
de corpo de delito seja aferido com base no que se tinha antes da diligência.
Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida,
droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se
admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista
do indivíduo, justifique a medida.”
O caso que gerou esse
notável julgamento pelo E. Superior Tribunal de Justiça foi assim descrito por
essa Alta Corte judiciária :
“15. Na espécie, a
guarnição policial “deparou com um indivíduo desconhecido em atitude suspeita”
e, ao abordá-lo e revistar sua mochila, encontrou porções de maconha e cocaína
em seu interior, do que resultou a prisão em flagrante do recorrente. Não foi
apresentada nenhuma justificativa concreta para a revista no recorrente além da
vaga menção a uma suposta atitude suspeita, algo insuficiente para tal medida
invasiva, conforme a jurisprudência deste Superior Tribunal, do Supremo
Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.”
A justa causa que
legitima e autoriza a realização, por agentes da repressão criminal, das
medidas extraordinárias da busca pessoal (revista) e da busca domiciliar
somente se desenha e resta configurada quando apoiada em “elementos sólidos,
objetivos e concretos”, afastada, em consequência, por destituída de suporte
legal , a invocação tanto de meras impressões subjetivas do agente policial ou
de sua invocada experiência profissional quanto de seu alegado tirocínio
policial !
Não se pode
desconhecer que a atividade de persecução criminal está regida e estritamente
disciplinada pelo que prescrevem a Constituição e as leis da República !
É por tal razão que as
medidas de busca e apreensão pessoal e domiciliar devem respeitar , em sua
determinação e execução, os contornos rigidamente definidos pelo Código de
Processo Penal , pois, quando desconsiderados seus pressupostos e limites, o
excesso em sua implementação poderá importar – tal como advertiu o STJ – em
“restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à
privacidade e à liberdade” da pessoa a tais medidas submetida !
Esse mesmo
entendimento vem de ser corroborado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento
plenário do HC 208.240/SP , em 11/04/2024, no qual , ao repelir a prática de
“abordagens discriminatórias” feitas pela Polícia , firmou tese no sentido de
que se mostra incompatível com o sistema jurídico o “perfilamento racial:
“A busca pessoal
independente de mandado judicial DEVE ESTAR FUNDADA em elementos indiciários
objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou
papéis que constituam corpo de delito, NÃO SENDO LÍCITA a realização da medida
COM BASE na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física.”
(destaque meu).
É por tal motivo que
se torna de fundamental importância , cada vez mais, o efetivo controle externo
da atividade policial pelo Ministério Público !
Essa relevante função
institucional do Ministério Público, impregnada de natureza constitucional,
confere ao “Parquet” , entre outras significativas atribuições de fiscalização
e controle da atividade dos organismos policiais, a condição eminente de verdadeiro
“Defensor do Povo”, à semelhança do que prevê , em seu artigo 54, quanto a esse
outro órgão de Estado, inspirado na figura do “Ombudsman” sueco, a vigente
Constituição Espanhola de 1978 !
A atividade policial
há de necessariamente respeitar os cânones da ordem democrática e de observar,
estritamente, os postulados do Estado de Direito , cujos fundamentos de
legitimação repousam , precipuamente, na “rule of law”, vale dizer, na
soberania e no império da lei !
Quem age à margem do
ordenamento jurídico demonstra, com esse gesto indigno de suprema infidelidade
à majestade e à autoridade da Constituição, desprezo manifesto pelas
instituições da República !
A lei é a fórmula da
ordem e nela repousa o fundamento de nossas liberdades ! O respeito aos
comandos da lei traduz a mais significativa garantia de que os direitos e
liberdades da pessoa serão efetivamente assegurados pelos agentes e autoridades
do Estado !
Para Cícero, o grande
Advogado, tribuno , Cônsul e Senador da República Romana, devemos todos ser
“servos da lei“, para que livres possamos ser (“Servi legum sumus ut liberi
esse possimus”) ! “
Mostra-se relevante ,
neste ponto, ter sempre presente a antiga advertência, que ainda guarda
permanente atualidade, de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, ilustre Professor das
Arcadas e eminente Juiz do Supremo Tribunal Federal (“O Processo Criminal
Brasileiro”, vol. I/10-14 e 212-222, 4a ed., 1959, Freitas Bastos), no sentido
de que a persecução penal, que se rege por estritos padrões normativos, traduz
atividade necessariamente subordinada a limitações de ordem jurídica, tanto de
natureza legal quanto de ordem constitucional, que restringem o poder do
Estado, a significar, desse modo, tal como enfatiza aquele Mestre da Faculdade
de Direito do Largo de São Francisco, que o processo penal só pode ser
concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da
liberdade jurídica do investigado ou do réu.
É por essa razão que a
investigação criminal e o processo penal condenatório não constituem nem podem
converter-se em instrumentos de arbítrio do Estado. Ao contrário, eles
representam poderosos meios de contenção e de delimitação dos poderes de que
dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Não exagero ao ressaltar a
decisiva importância do processo penal no contexto das liberdades públicas,
pois – insista-se – o Estado, ao delinear um círculo de proteção em torno da
pessoa do réu (e também do investigado) faz da persecução penal um instrumento
destinado a inibir a opressão estatal e a neutralizar o abuso de poder
eventualmente perpetrado por agentes e autoridades estatais.
Daí a corretíssima
observação do eminente e saudoso Professor ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e
Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 33/35, item n. 1.4, 2a
ed., 2004, RT), no sentido de que o processo penal há de ser analisado em sua precípua
condição de “instrumento de preservação da liberdade jurídica do acusado em
geral”, tal como entende, também em autorizado magistério, o saudoso Professor
HÉLIO TORNAGHI (“Instituições de Processo Penal”, vol. 1/75, 2a ed., 1977,
Saraiva), cuja lição bem destaca a função tutelar do processo penal:
“A lei processual
protege os que são acusados da prática de infrações penais, impondo normas que
devem ser seguidas nos processos contra eles instaurados e impedindo que eles
sejam entregues ao arbítrio das autoridades processantes.”
Essa mesma percepção a
propósito da vocação protetiva do processo penal, considerado o regime
constitucional das liberdades fundamentais que vigora em nosso País, é também
perfilhada por autorizadíssimo (e contemporâneo) magistério doutrinário, que
salienta a significativa importância do processo judicial como “garantia dos
acusados” (VICENTE GRECO FILHO, “Manual de Processo Penal”, p. 61/63, item n.
8.3, 11a ed., 2015, Saraiva; GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ, “Processo Penal”, p.
37/94, 4a ed., 2016, RT; JAQUES DE CAMARGO PENTEADO, “Duplo Grau de Jurisdição
no Processo Penal – Garantismo e Efetividade”, p. 17/21, 2006, RT; ROGERIO
SCHIETTI MACHADO CRUZ, “Garantias Processuais nos Recursos Criminais”, 2a ed.,
2013, Atlas; GERALDO PRADO, “Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional
das Leis Processuais Penais”, p. 41/51 e 241/243, 3a ed., 2005, Lumen Juris;
ANDRÉ NICOLITT, “Manual de Processo Penal”, p. 111/173, 6a ed., 2016, RT; AURY
LOPES JR., “Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional”, p. 171/255,
9a ed., 2012, Saraiva, v.g.).
Essa é a razão básica
que me permite insistir na afirmação de que a persecução penal – cuja
instauração é justificada pela prática de ato supostamente criminoso – não se
projeta nem se exterioriza como manifestação de absolutismo estatal. De
exercício indeclinável, a “persecutio criminis” sofre os condicionamentos que
lhe impõe o ordenamento jurídico.
A tutela da liberdade,
nesse contexto, representa insuperável limitação constitucional ao poder
persecutório do Estado, mesmo porque – ninguém o ignora – o processo penal
qualifica-se como instrumento de salvaguarda dos direitos e garantias
fundamentais daquele que é submetido, por iniciativa do Estado, a atos de
persecução penal cuja prática somente se legitima dentro de um círculo
intransponível e predeterminado pelas restrições fixadas pela própria
Constituição da República, tal como tem entendido a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, de que destaco o seguinte julgado :
“O PROCESSO PENAL COMO
INSTRUMENTO DE SALVAGUARDA DAS LIBERDADES INDIVIDUAIS
– A submissão de uma
pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade
conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o
resguardo à intangibilidade do ‘jus libertatis’ titularizado pelo réu.
A persecução penal
rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões
normativos que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações
significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser
concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da
liberdade do réu.
O processo penal
condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes,
um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os
órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em
torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado, até que sobrevenha
irrecorrível sentença condenatória –, o processo penal revela-se instrumento
que
inibe a opressão
judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão
acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado,
que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de
questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos
probatórios produzidos pelo Ministério Público.
A própria exigência de
processo judicial representa poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e
de restrição ao poder de coerção do Estado.
A cláusula ‘nulla
poena sine judicio’ exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula
de salvaguarda da liberdade individual.”
(HC 73.338/RJ, Relator Min. CELSO DE MELLO)
Nesse contexto, é de
registrar-se – e acentuar-se – o decisivo papel que desempenha, no âmbito do
processo penal condenatório, a garantia constitucional do devido processo
legal, cuja fiel observância condiciona a legitimidade jurídica dos atos e
resoluções emanados do Estado e, em particular, das decisões de seu Poder
Judiciário.
Em conclusão : os
agentes policiais , o Ministério Público e os magistrados NÃO PODEM DISCRIMINAR
qualquer pessoa em razão da cor de sua pele ou de sua procedência étnico-racial
ou de sua origem regional ou nacional ou de sua confissão religiosa ou de sua
orientação sexual ou de sua identidade de gênero, entre outros fatores que
tendem à desigualação , sendo certo que se mostra inválida e totalmente
imprestável a prova criminal colhida em abordagens discriminatórias (aquelas em
que a cor da pele, p.ex., constitui o único fator que arbitrariamente
justificou a busca pessoal ou domiciliar) efetuada por órgãos e agentes
estatais , motivo pelo qual essa prova , por se achar contaminada pelo
gravíssimo vício jurídico da ilicitude, não pode nem deve ser admitida (ou
sequer considerada) no inquérito policial ou no processo judicial !”
Fonte: Jornal GGN
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