As várias dimensões das fake news e a
relação com os modelos de produção jornalística
A dimensão mais
evidente das fake news é a da mentira deliberada. Aquela notícia produzida com
a nítida intenção de enganar um público, gerar prejuízo a alguém ou a alguma
instituição, espalhar um conteúdo que a pessoa que compartilha sabe que é
mentira. Mas a face mais sórdida da “notícia falsa” é apenas a tradução mais
imediata, evidente e mal intencionada de um fenômeno que tem muitas nuances e
desenvolve a cada evento formas novas de ser propagada e de operar no contexto
amplo do fenômeno social e de comunicação. Para espanto de quem faz e estuda
jornalismo, para além da mentira deliberada, muito conteúdo, especialmente
on-line, que pode caber no espectro das fake news está relacionado a métodos e
construções estéticas e de linguagem associadas à produção jornalística.
A complexidade das
fake news já tem sido mapeada por muita gente que vem pesquisando o fenômeno e
as diversas novas possibilidades de se propagar inverdades. Em inglês, o que
usamos como o conceito guarda-chuva das fake news é dividido em duas expressões:
a desinformação (disinformation) e a má informação (misinformation). Por aqui
também refletimos sobre as diferenças entre a mentira deliberada e a falta de
informação, a apuração incompleta, a apuração mal feita, a ausência de
apuração. Mas, habitualmente, vemos as pessoas debatendo fora dos círculos
especializados, nos meios profissionais de comunicação e nas redes, sobre as
fake news. Muitas vezes apenas numa corrida em atribuir o conteúdo alheio ou
que está distante das suas convicções como fake news. Como um selo, mais do que
como um termo que implica em uma construção complexa e de muitas nuances.
Mas o que isso tem a
ver com estruturas e premissas do jornalismo além do fato de ser ou ser chamada
de “notícia falsa”? Com deliberada intenção de enganar ou não, a primeira
condição é pensar o quanto as fake news se parecem na forma e na linguagem com uma
notícia jornalística clássica. Aquela que por décadas gerações foram
acostumadas a identificar como notícia. Se falamos hoje em educação midiática,
precisamos começar por duas compreensões. Por um lado, entender como está
articulado e estruturado (ainda que isso se transforme permanentemente) o novo
ecossistema comunicativo (pra usar uma expressão do antropólogo e filósofo
colombiano Jesús Martín-Barbero). Falo de uma comunicação em rede,
predominantemente digital, mas sobretudo multiplataforma, que reúne novas e
velhas mídias. Onde o espalhamento de informações e produções ganha uma
capacidade jamais experimentada e ainda estudada. Por outro lado, a educação
midiática também pressupõe compreender como fomos educados para ler notícias. E
como essa estrutura que ainda está nas nossas cabeças e também na prática
jornalística está também na estrutura de textos, vídeos, áudios, depoimentos,
análises, posturas de pessoas que estão nas redes produzindo desinformação que
se torna crível porque se parece com o que pensamos ser o formato da notícia.
• Jornalismo, crises e oportunidades
Com a crise das
instituições de notícias e as oportunidades (sim, crises e oportunidades é o
que mais tem nesse novo ecossistema comunicativo) proporcionadas para novos
veículos e novas linguagens, todo mundo em tese e na prática é produtor de
conteúdo. Mas a produção e o espalhamento de conteúdos que consideramos falsos,
com falhas propositais de apuração ou equívocos de checagem não deliberados,
mas que geram desinformação, parecem ganhar maior dimensão e alcance quanto
mais se parecem com informações jornalísticas. Nesse aspecto falo do modelo de
relato direto, objetivo, que destaca um fato, recorre a uma fonte ou mais
fontes para estabelecer um regime de verdade, proporcionar uma apuração ou uma
evidência de causa e consequência para um acontecimento. Essa relação ocorre na
perspectiva formal e está relacionada à reputação e a credibilidade do método
que o jornalismo construiu. Por mais que se fale sobre o desinteresse das
pessoas em ler informações jornalística. E também está, por outro lado, relacionado
aos modelos engessados produzidos nas últimas décadas por um jornalismo formal,
encaixotado, de declarações oficiais. Para o bem ou para o mal, o que pensamos
que é o jornalismo tem educado também os produtores de fake news em diversas
dimensões.
Vamos avançar um pouco
mais nessa relação com os modelos que o jornalismo se acostumou a produzir e
entregar. Em muitos momentos me detive em pesquisas sobre a presença do
jornalista como potencial para produzir relatos mais críticos, complexos e
apurados do que é percebido com a ausência de repórteres na cobertura de
eventos. Estudei essa presença especialmente relacionada à cobertura de
conflitos armados e pude perceber o exercício desse potencial em relatos de
correspondentes de guerra e em análises de coberturas específicas. Ao refletir
sobre fake news, convido a pensarmos sobre a presença de narradores em
produções com informações falsas ou que produzem desinformação, mas que buscam
se assemelhar a notícias em seu formato. E a potência de credibilidade,
especialmente em produções audiovisuais, que essas presenças têm no novo
contexto da produção em redes.
A presença dos
jornalistas nos relatos ao vivo e nas coberturas construiu também parte da
credibilidade na narrativa jornalística. Assim como a presença de narradores
nas produções de fake news de alguma forma ecoa parte da credibilidade
proporcionada pelo jornalismo a partir da história da presença de jornalistas
conduzindo narrativas onde eles eram as testemunhas mais importantes. Sejam
eles correspondentes de guerra ou presenças no testemunho de outros eventos
locais ou internacionais. Especialmente nas produções em vídeo, a presença de
quem produz o conteúdo também é destacada como uma testemunha, que pode ser a
denúncia de uma ação incorreta que alguém cometeu ou a confirmação de um evento
histórico. Essa presença se torna ela própria uma comprovação do que teria
acontecido. Além do seu testemunho, o jornalista sempre transmitiu (e ainda o
faz) os resultados de um método de apuração, confrontação de diferentes
comprovações, documentos, declarações, entrevistas, indicações e dúvidas
colhidas ao longo do acompanhamento que fez de um tema.
• O caso da tragédia climática do RS
Penso agora nos vídeos
que circulavam durante as semanas de enchentes no Rio Grande do Sul que
espalharam informações sobre impedimentos para entrega de ajuda aos atingidos.
Alguns deles mostravam um narrador-testemunha denunciando o impedimento diante
de um caminhão em uma rodovia entre Santa Catarina e o Rio Grande do Sul. Mais
do que isso, o vídeo afirmava que este não era um episódio isolado, mas que
vários caminhões de donativos estavam sendo impedidos de passar e estavam
recebendo multas nas balanças de instaladas para fiscalizar cargas. A “notícia”
como formato e resultado que proporciona sínteses, avaliações, denúncia e
conclusão se parece com o da notícia que os veículos jornalísticos sempre
produziram.
A presença do narrador
e a informação direta e objetiva, que parece ser produzida a partir de uma
apuração realizada com fontes, proporciona um resultado de espalhamento da
informação, que se utiliza do modelo jornalístico que educou a sociedade quando
se pensa em credibilidade e reputação. Talvez o modelo considerado
jornalístico, que inclui também a presença do narrador-testemunha, tenha mais
peso do que a marca de empresas jornalísticas que hoje são atacadas e apontadas
com desconfiança pelo leitor/espectador/usuários das redes. No caso da fake
news mencionada, não há o processo de apuração, credibilidade, nem do veículo
nem do repórter, exposição de contradições, diversidade de fontes ou documentos
que comprovem. O vídeo se utiliza dessa linguagem sem garantir o processo de
fato. É uma fantasmagoria que se repete como farsa, dificultando a ajuda
humanitária às pessoas vítimas da tragédia climática.
Mas é interessante
pensar, ainda nesse exercício de aproximar as fake news do método e da
linguagem do jornalismo, outras nuances neste exemplo que reforçam minha
questão inicial sobre as diferenças entre a mentira deliberada e os tipos de
notícias que desinformam. Sem entrar em comprovações de má fé neste caso (e que
sempre podem estar associadas aos demais elementos que evoco), também está
neste exemplo um outro aspecto das notícias falsas. A pretensão de sintetizar e
dar uma dimensão ampla a uma informação que pode, por exemplo, ser esporádica.
A notícia questionada como “falsa” também pode ser pensada em um ambiente onde
um fato que possa ter acontecimento, como o impedimento de caminhões de
mantimentos numa rodovia, é reportado como frequente, de amplo alcance, geral
ou permanente. No caso do vídeo do caminhão de donativos, havia várias
perguntas a serem feitas e que um jornalista ou uma jornalista precisaria
realizar para decidir como abordar e reverberar uma possível constatação e até
denúncia. Se havia de fato caminhão sendo parado e impedido de prosseguir e
entregar mantimentos para os atingidos pelas enchentes. Se eram parados por
obrigatoriedade de alguma lei ou regra que justificasse o fato. Se a parada era
um mau uso da legislação e provocava atrasos sem justificativa diante da
urgência da operação de transferência de mantimentos. Se havia mais caminhões
sendo parados nas mesmas condições e para o mesmo destino. Se as autoridades
estavam cientes do fato e haviam tomado providencias, preventivas ou para lidar
com as consequências. E ainda se havia ação deliberada de parar caminhões para
que a ajuda não chegasse ao estado vizinho. O vídeo não seguiu nenhum desses
métodos de apuração. Respondeu a todas essas perguntas a partir de uma
presença, de um possível acontecimento de um caminhão que teria sido parado
para fiscalização, atribuindo este possível fato a uma atitude deliberada de
agentes públicos para impedir a ajuda da sociedade civil. Logo o espalhamento
da produção em vídeo que contava a credibilidade de um narrador-testemunha no
local da denúncia produziu uma onda de acusações que se somavam ao discurso
sobre a ausência e desimportância da presença do Estado no socorro às vítimas.
Também pode-se pensar
na ação deliberada de provocar um efeito. Mas o que me detém nesta análise é
pensar em duas dimensões: o quanto a produção de conteúdo que dissemina
desinformação se assemelha ao que conhecemos como linguagem e discurso
jornalísticos e o quanto as fake news carregam também fatos que aconteceram mas
que são tratados de forma a dar lugar à desinformação. E mesmo assim podemos
chamar essas produções de fake news. Se considerarmos que os caminhões foram
realmente parados e que os atingidos pelas enchentes tiveram atraso no
recebimento de doações, ainda assim podemos analisar o quanto, a partir da
informação factual verdadeira, é possível criar inverdades, super
dimensionamentos, generalizações, acusações, discursos políticos e contribuir para
um ambiente de desinformação. E esse modelo, que mistura um pretenso formato
jornalístico ou baseado na imagem do jornalista, é utilizado para produção de
conteúdo hoje para reforçar crenças que as pessoas já formaram sobre temas e
instituições.
• Processo produtivo e desinformação
O quanto desse
processo está relacionado ao jornalismo, à linguagem que já desenvolvemos e
como educamos midiaticamente a sociedade até hoje em relação à produção
jornalística? E também o quanto não falamos e precisamos falar sobre os
processos necessários para que uma informação seja digna de ser transmitida e
propagada pelas pessoas? A propagação, pensando no conceito utilizado por Henry
Jenkins, é uma dimensão que pode ser analisada também junto com a ideia de
refletir sobre as aproximações com a linguagem jornalística nas produções de
fake news. O modelo de notícia é utilizado nas produções de fake news num
ambiente que propaga com muito mais velocidade e menos critérios do que o
ambiente em que a linguagem jornalística foi criada e se ampara. A checagem das
informações e a diversidade de fontes não acompanha a velocidade da propagação
da informação contemporânea em rede.
Mas possivelmente
nossas falhas sejam ainda nosso possível potencial. Costumo repetir a frase de
que “processo é produto” para justificar o quanto o processo de produção da
comunicação, das instituições, da informação jornalística precisa aparecer cada
vez mais parar produzir credibilidade, engajamento e reforçar reputações. A
relação entre estruturas jornalísticas de fake news e formatos jornalísticos
clássicos nos mostram o quanto engessamos as produções jornalísticas e como
podemos estar livres para pensar novos formatos sem sentir que estamos
ameaçando de fato o jornalismo. Talvez nos ajude mais, investir em pensar e
demonstrar o processo e os critérios que definem e regem a produção de
informação e o trabalho jornalístico. O que significa apurar uma informação,
colocar os fatos em perspectiva, oferecer uma dimensão singular e proporcionar
a capacidade compreender o contexto, ter critérios na escolha de fontes, na
diversidade de comprovações, na capacidade de dimensionar o alcance de um fato.
E ainda debater a construção do olhar crítico, o quanto impacta a presença do
narrador e sua dimensão testemunhar para a produção de uma notícia.
Este texto é mais um
momento de reflexão de que as dimensões das fake news são diversas e que,
associadas à vontade deliberada de mentir sobre um tema e de reforçar os
próprios interesses e visões de mundo dos produtores desses conteúdos, ainda há
relações evidentes com o modo de produção jornalístico. Seja relacionado a
formatos, pressupostos de atuação e conceitos éticos, ou seja, espelhando
métodos que a pesquisa jornalística já critica há décadas. E também relações
entre as fake news o mau uso das melhores qualidades da produção jornalística
propaga. Talvez a gente amplie as ferramentas para equilibrar a disputa se
discutirmos mais o processo, os modelos de produção jornalística e sobre os
critérios que ainda são válidos e fundamentais à produção de informação.
Processo, afinal, é produto.
Fonte: Por Vanessa
Pedro, no Observatório da Imprensa
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