terça-feira, 2 de julho de 2024

Após “PL do Estupro”, políticos bolsonaristas têm novos projetos que ameaçam aborto legal

Poucos dias depois de o Congresso Nacional ter recuado na urgência da votação do Projeto de Lei 1.904 de 2024 – que equipara a interrupção da gestação com mais de 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de violência sexual –, parlamentares bolsonaristas colocaram em tramitação outros dois projetos de lei que ameaçam o direito ao aborto legal em casos de estupro. 

O deputado Marcos Pollon (PL-MS) também fez um requerimento para apensar (anexar) outro projeto (1920/2024) ao PL 1904. A proposta de Pollon mira na criminalização dos médicos que fizerem interrupção da gravidez acima de 22 semanas, com penas de cinco a 18 anos de reclusão.

Em 19 de junho, um dia depois de o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ter adiado o debate sobre o chamado “PL do Estupro”, um grupo de 35 deputados apresentou o Projeto de Lei 2.499/2024. O texto obriga unidades de saúde a notificar a polícia em casos de interrupção da gravidez decorrente de estupro. Uma portaria do governo de Jair Bolsonaro (PL) que estabelecia essa mesma obrigação foi derrubada pelo Ministério da Saúde no começo do governo Lula (PT). 

“É uma proposta com viés policialesco, que mais prejudica e afasta as vítimas do serviços de saúde, do que de fato as protege”, avalia Clara Wardi, que é assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) e se dedica ao monitoramento do Legislativo sobre políticas que envolvam direitos sexuais, reprodutivos e violência contra as mulheres. 

“Isso pode gerar medo e constrangimento às pessoas que recorrem ao serviço de saúde porque ameaça a privacidade da vítima e o sigilo entre médico e paciente. É importante que esses dados fiquem restritos aos serviços de saúde, que acolhem e amparam essas pessoas, e que isso só vá às autoridades de segurança por escolha da vítima”, explica Wardi.  

Esse novo projeto de lei determina também que as unidades de saúde sejam obrigadas a preservar fragmentos do feto e entregá-los às autoridades policiais e judiciárias. Wardi diz que isso é uma “forma de tentar criar provas contra as pessoas que estão acessando o serviço e pôr em dúvida a credibilidade das pessoas que estão notificando o estupro”.

<><> Por que isso importa?

  • Projetos de lei apresentados por políticos bolsonaristas podem impedir direito ao aborto legal, infringir sigilo médico de pacientes e afastar vítimas de abuso sexual do atendimento em saúde.
  • Levantamento inédito mostra que quase cem projetos de lei de políticos de direita e extrema direita podem impedir direito ao aborto legal no Brasil.

Alguns dos deputados que assinam a proposta também são autores do “PL do Estupro”: Filipe Martins (PL-TO), Carla Zambelli (PL-SP), Delegado Ramagem (PL-RJ) e Mario Frias (PL-SP). Entre os signatários ainda há outros nomes conhecidos da extrema direita bolsonarista, como o ex-ministro da Saúde do governo Bolsonaro General Pazuello (PL-RJ) e a deputada evangélica Clarissa Tércio (PP-PE). Em 2020, Tércio protagonizou a tentativa de invasão de um hospital, no Recife, por um grupo de políticos pastores. Eles tentavam interromper o aborto legal de uma menina de 10 anos estuprada pelo próprio tio.

Tércio também é autora do PL 1.096/2024, que aguarda parecer da Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados. Ele modifica o Código Penal brasileiro para proibir a assistolia fetal, uma técnica utilizada para a interrupção segura da gravidez recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Nós vínhamos monitorando esse projeto como um dos mais ameaçadores em tramitação no Congresso, mas, por uma questão política, de força da bancada evangélica, o PL 1.409 acabou sendo pautado antes”, diz Clara Wardi, do Cfemea. 

  • Senador apontado na crise de saúde Yanomami apresentou projeto que impede aborto legal

No Senado, o bolsonarista Mecias de Jesus (Republicanos-RR) apresentou o PL 2.524/2024, no dia 21 de junho. O texto altera o Código Civil para reconhecer “direitos do nascituro [feto]” e estabelecer a “presunção absoluta de viabilidade fetal a partir da 22a semana de gravidez”. Atualmente a lei não determina um limite de idade gestacional para o aborto legal, que é previsto em casos de violência sexual, risco de vida da gestante e anencefalia do feto. 

O senador Mecias foi apontado entre os responsáveis pela crise sanitária que causou a morte de 570 crianças Yanomami. Segundo relatório da ONG Transparência Brasil, ele teria sido o responsável pela indicação ao cargo do ex-coordenador do Distrito de Saúde Indígena (Dsei) Yanomami Rômulo Pinheiro de Freitas. A má gestão da saúde indígena, que incluiu falta de remédios e precariedade no transporte aéreo, está relacionada à mortalidade dos indígenas.

Mecias também está entre os signatários do requerimento que propôs a discussão “assistolia fetal” na interrupção da gravidez no Senado. O debate foi criticado por envolver uma encenação exdrúxula antiaborto por uma contadora de histórias no plenário do Senado. A performance, além de desinformar sobre a técnica, encenou um feto chorando, algo que não ocorre na prática alvo do requerimento. 

O projeto de lei de Mecias de Jesus diz ainda que o feto com mais de 22 semanas terá “direito inviolável ao nascimento”, que pode ser interrompido apenas se for “comprovado risco grave à vida da gestante em decorrência da manutenção da gravidez”, situação na qual “se procederá à tentativa de antecipação do parto e de manutenção da vida extrauterina da pessoa recém-nascida”.

  • Quase 100 propostas legislativas que ameaçam o aborto estão tramitando no Congresso

Enquanto a forte repercussão contrária ao “PL do Estupro”, com protestos em várias capitais do Brasil, fez os parlamentares recuarem, outras ameaças ao aborto legal seguem avançando no Congresso Nacional. Um monitoramento do Cfemea, ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade, mostra que há 98 propostas legislativas que querem dificultar ou proibir o direito no Brasil. Destas, ao menos oito estão “prontos para a pauta”, ou seja, podem ir a plenário a qualquer momento. 

A maioria das propostas é assinada por parlamentares do Partido Liberal, de Bolsonaro. “Classificamos em quatro macrotemas: os que aumentam a pena por aborto, os ultrapunitivistas, como ‘PL do Estupro’; os que querem criar barreiras ao aborto legal, solicitando documentos, criando notificações compulsórias contra práticas como assistolia fetal a partir da 22a semana, como é o caso do “PL do Estupro”; os que estabelecem direitos civis ao feto, como o chamado “Estatuto do Nascituro”; e também os que visam passar desinformação sobre o aborto legal, como os que criam o ‘Dia do Nascituro’ ou projetos que querem colocar informação antiaborto nos testes de gravidez de farmácias ou criar palestras sobre supostos riscos em escolas, por exemplo”, explica Clara Wardi, do Cfemea. “Essa última categoria de projetos mobiliza menos o debate político, mas é de grande risco porque estão usando dinheiro público para o enfraquecimento do direito ao aborto legal no Brasil.”

O bloco ultraconservador do Congresso tem a bancada evangélica como uma das suas principais forças. Eles puxaram o debate sobre o “PL do Estupro”, que é assinado por uma de suas lideranças, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). Mas o raio-x das propostas, feito pelo Cfemea, revela que evangélicos, católicos e espíritas convergem politicamente quando o assunto é aborto.

Por exemplo, a deputada Cris Tonnieto (PL-RJ), que é católica e ligada à entidade ultraconservadora Opus Dei, ganha em quantidade de propostas antiaborto: ela assina 16. Um desses, o PL 580/2020, está pronto para ser pautado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). 

Essa proposta prevê a aplicação do Código Penal a crimes cometidos no exterior por pessoas brasileiras ou domiciliadas no Brasil. Na prática, o PL dificulta o acesso ao aborto em outros países. Um trecho diz “ocorre como o exemplificado, em um grau ainda maior, o crime de aborto, que em alguns países, como a Colômbia, não é mais tipificado ou, se é, está facilitado. Como ficou conhecido por meio de matérias e artigos divulgados pela imprensa, grupos têm se instalado no Brasil e inclusive financiando a ida de brasileiras ao exterior para a prática ignominiosa do assassinato intrauterino”. 

Há ainda outros três PLs de autoria de Tonietto que tiveram tramitação entre março e junho deste ano – 566/2019; 1.753/2022 e 4.150/2019. Todos tentam imputar direitos civis ao nascituro, ou seja, ao feto. Atualmente, o artigo 2° do Código Civil brasileiro reconhece que a  “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. 

Um dos principais parlamentares antiaborto do Congresso, o senador espírita e pré-candidato a prefeito de Fortaleza, Eduardo Girão (Novo-CE), apresentou dois PLs sobre o tema este ano: 11/2024 e 1.125/2024. Eles querem instituir o “Programa de Conscientização contra o Aborto em âmbito nacional” e “tornar obrigatória a apresentação de boletim de ocorrência e exame de corpo de delito positivo para realização de aborto decorrente de estupro”, respectivamente.

 

¨      Oposição empareda governistas com pautas ideológicas em ano de eleições municipais

A oposição no Congresso Nacional tem se aproveitado do interesse do presidente Arthur Lira (PP-AL) em eleger um aliado como sucessor e da proximidade das eleições municipais para pressionar pelo avanço de pautas de costumes no Legislativo.

A estratégia tem deixado parlamentares governistas "amarrados". O receio de desgastes na corrida eleitoral deste ano tem levado deputados e senadores mais progressistas a evitar polêmicas e a silenciar em embates sobre a chamada pauta ideológica.

É o caso das discussões sobre droga, aborto e questões ligadas à segurança pública, como as "saidinhas" de presos.

Já o projeto que restringiu as saidinhas foi aprovado na Câmara e enviado à sanção sem que a base governista se colocasse contrária à proposta.

Apenas o PSOL orientou pela derrubada do texto e fez isso somente depois que o resultado havia sido proclamado. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou dispositivos do texto, mas o Congresso derrubou o veto (leia mais abaixo).

Partidos de centro-esquerda têm pré-candidatos a prefeituras em grandes capitais nas eleições deste ano e tentam evitar armadilhas da direita no Congresso, que joga com o perfil conservador do eleitorado brasileiro.

<><> Votações simbólicas para escapar de 'saias justas'

Nos últimos meses, a Câmara, por exemplo, foi palco de acordos de líderes para fugir de votações nominais — quando há registro do voto do deputado — em temas considerados polêmicos, o que ajudou siglas governistas a desviar de “saias justas” ou derrotas esmagadoras.

Foram os casos das votações da taxação de compras internacionais abaixo de US$ 50 e da urgência à proposta que pune mulheres que realizam um procedimento legal de interrupção de gravidez após a 22ª semana de gestação.

Isso não foi possível em fevereiro e março, por exemplo. Na ocasião, governistas foram emparedados na votação do projeto que restringia as saídas temporárias de presos.

A orientação do Planalto era contrária à proposta, mas diversos parlamentares alinhados ao governo registraram voto favorável ao texto — tanto nas análises da Câmara e do Senado quanto na votação do veto de Lula à parte do projeto.

Pré-candidata à Prefeitura de Porto Alegre (RS), a deputada Maria do Rosário (PT) foi uma das parlamentares que, por questões eleitorais, decidiu contrariar o Planalto e votar pela derrubada do veto presidencial. Segundo ela, o voto ajuda a evitar "ataques da extrema-direita" e a abrir diálogo com a população.

Às vésperas do início da campanha eleitoral, as lideranças do governo no Congresso têm sinalizado que vão privilegiar as pautas econômicas no parlamento e querem focar na regulamentação da reforma tributária, em tramitação em grupos de trabalho da Câmara.

  • 'Escola sem Partido' e maioridade penal

No Brasil, maioridade penal é de 18 anos, mas crianças podem ser responsabilizadas a partir dos 12, com internações em entidades como a Fundação Casa, em São Paulo — Foto: Fundação Casa/ BBC

Enquanto isso, a oposição tem conseguido até mesmo "ressuscitar" temas adormecidos e derrotados no Congresso na gestão de Jair Bolsonaro (PL).

Foi o que ocorreu com a proposta que pune mulheres que realizam procedimento de aborto legal. E é o que deve ocorrer com outras duas pautas frequentes no imaginário de parlamentares reacionários: a redução da maioridade penal e a proposta que restringe as manifestações de professores em salas de aula — conhecida como Escola Sem Partido.

As articulações têm ocorrido especialmente no âmbito da Câmara dos Deputados. Mesmo que incipientes, deputados pretendem levar os temas à discussão em comissões para movimentar o debate público e aumentar números em redes sociais.

No primeiro caso, parlamentares da chamada "bancada da bala" querem forçar a discussão de propostas que reduzem a maioridade penal de 18 para 16 anos.

O assunto chegou a avançar na Câmara em 2015, quando uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi aprovada para reduzir a maioridade nos casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte.

O texto foi para o Senado e foi ignorado. Em 2019, primeiro ano de governo Bolsonaro, a PEC ficou paralisada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa. Sem análise, acabou arquivada três anos depois.

Agora, a CCJ da Câmara ensaia movimento oposto. O colegiado resgatou um projeto, de 2003, que convoca um plebiscito para que a população decida se é a favor ou contra a redução da maioridade penal.

O plebiscito é uma consulta à população anterior à discussão de propostas legislativas. O resultado da votação define qual o projeto deverá ser discutido pelo Congresso. Para ser convocado, além da aprovação no Senado, o plebiscito precisa ser aprovado pela Câmara.

A proposta já recebeu relatório favorável do Dr. Jaziel (PL-CE) e deve entrar na pauta do colegiado no retorno do recesso parlamentar, que começa oficialmente em 18 de julho.

Também deve receber destaque após o recesso o Escola Sem Partido. Em 2018, uma comissão especial criada para analisar a proposta foi encerrada sem sequer votar o projeto. Sem registros significativos de movimentação na Câmara desde 2019, o projeto foi encaminhado a novas comissões neste ano.

O primeiro de quatro colegiados será a Comissão de Previdência e Família, que já designou o deputado Dr. Allan Garcês (PP-MA) como relator.

O presidente da comissão, deputado Pastor Eurico (PL-PE), afirma que o colegiado dará "prioridade a esse projeto".

"Esse projeto vai ser de muita polêmica. Já sabemos disso. Estamos esperando só o relator entregar", disse Eurico, projetando que a discussão da proposta deverá ocorrer no segundo semestre — em meio às campanhas municipais.

  • 'Congresso extremamente conservador', diz Gleisi

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PR), reconhece que a ala progressista do Congresso tem enfrentado dificuldades no debate com parlamentares conservadores.

"Temos que fazer o debate político e esclarecer as pessoas e fortalecer o campo mais progressista. Não tem sido fácil. É um Congresso extremamente conservador. E a gente passa por essas situações", disse Gleisi.

"São cerca de 140 deputados do campo progressista. É a realidade que nós temos. Não dá para lidar contra ela. Então, acho que precisa do debate político, da sociedade, e também a gente tenta fazer as articulações lá dentro", completou a petista.

 

Fonte: Por Mariama Correia, da Agencia Pública/g1

 

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