A vida nas primeiras cidades áridas do
Brasil
João Eulalio, 82 anos,
obedece a uma rotina rigorosa. Desde a juventude, levanta todos os dias às
4h30, sem recorrer a galo ou despertador, e começa a trabalhar sua roça.
“Consigo contar nos dedos as vezes em que não levantei a essa hora”, diz.
Eulalio planta feijão, cebola, amendoim, mandioca e pastoreia caprinos. Na
Comunidade Quilombola Curral da Pedra, em Abaré (BA), comenta-se que ele é “tão
trabalhador que nem casou”. Mora até hoje com a irmã, de 74 anos, na casa de
taipa onde passaram a infância e onde o pai também foi criado.
Curral da Pedra é uma
das centenas de quilombos localizados no PeBa, como é conhecido o território
entre o Sul de Pernambuco e o Norte da Bahia. Em Abaré, cidade de 17,6 mil
habitantes, estruturas centenárias de taipa e alvenaria dividem espaço com
bodes, ovelhas, carneiros e pequenas roças.
“Antes a terra aqui
era muito boa. Tudo que plantava, brotava. Eu sigo fazendo como meus pais me
ensinaram, mas agora a terra está estranha, não brota como antes”, diz Eulalio,
enquanto manuseia uma enxada. “A qualidade do que plantamos, e que se torna comida
nos nossos pratos, está pior. A quantidade de colheita está menor. Eu não sei o
que está acontecendo.”
Eulalio pode não
saber, mas o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Centro
Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) sabem. Em
novembro do ano passado, os dois institutos detectaram pela primeira vez a
existência de clima árido no Brasil. A área afetada por esse fenômeno inédito é
concentrada principalmente no sertão baiano e perpassa, de forma integral ou
parcial, o território de doze cidades.
O Brasil, como ensinam
os livros escolares, comporta seis tipos de clima: equatorial, tropical,
tropical de altitude, tropical atlântico, subtropical e semiárido. Clima árido,
como o do deserto do Saara, nunca existiu no país. Há uma razão para isso: a umidade
produzida pela Amazônia forma um corredor que se prolonga até a Caatinga,
“molhando” mesmo as regiões mais secas do Nordeste. Devido ao desmatamento
acelerado da floresta, no entanto, a transferência de massa úmida tem sido cada
vez menor. As chuvas, que já eram poucas, tornaram-se ainda mais raras nas
cidades do semiárido. Os pesquisadores se referem a esse processo como
desertificação. Sem receber água por longos períodos de tempo, o solo está se
degradando a ponto de dificultar o crescimento de plantas típicas da Caatinga.
Com isso, sofrem os animais e a agricultura humana.
A aridez detectada
pelos pesquisadores se espalha por uma área de 5.592,6 km² – aproximadamente
quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Abaré, onde João Eulalio vive,
já tem 34% de seu território degradado de forma crítica pela desertificação. É
o maior percentual dentre os municípios atingidos. A lista é seguida por
Chorrochó (23,6%), Macururé (14,5%), Juazeiro (10,9%), Sobradinho (10,89%) e
Rodelas (10,67%). Aproximadamente 34% das terras baianas apresentam um nível de
degradação entre crítico e moderado.
Para que os
pesquisadores não sejam induzidos a falsas conclusões – como, por exemplo,
confundir o processo de desertificação com uma seca excepcionalmente forte –, o
levantamento compara imagens de satélites produzidas em intervalos de trinta
anos. Assim é possível diferenciar as mudanças consistentes ao longo do tempo e
as episódicas. Essa metodologia começou a ser aplicada nos anos 1960. Desde
2005, contudo, o governo federal não produzia um estudo com base nelas. Foi
para superar essa defasagem que o Ministério do Meio Ambiente encomendou a nova
análise.
A paisagem dos
municípios desertificados não é como alguns podem imaginar: uma mundaréu de
areia, com alguns poucos coqueiros e, aqui e ali, um oásis. São, em vez disso,
pequenas cidades interioranas onde a vida segue de forma mais ou menos normal.
Ainda há vegetação, mamíferos pastando e hortas com vegetais. Pessoas mais
sensíveis sentem ressecamento nos lábios e nas mãos, como em Brasília nos
momentos mais duros da seca anual.
“O processo de
aridenização não acontece da noite para o dia. É um processo contínuo, lento,
que dura décadas”, explica Ana Paula Cunha, uma das pesquisadoras do Cemaden
que assinam o estudo. Os primeiros sinais da aridez são invisíveis ao olho
humano, porque acontecem debaixo do solo. Terras outrora férteis passam a
render colheitas menores, devido à falta de água.
O que mais preocupa os
especialistas é o impacto que isso pode ter sobre a produção de alimentos. Os
municípios que apresentam os maiores índices de aridez são exportadores de
frutas – coco, manga, melancia, uva. A colheita abastece supermercados europeus
e movimenta a economia baiana, garantindo a subsistência de milhares de
famílias. Além dos quilombolas, habitam o Peba grupos indígenas, assentados e
comunidades de fundos de pasto (uma organização característica do interior da
Bahia, que consiste em diferentes famílias cuidando de um pasto comum para
criação de caprinos e ovinos).
“Nós podemos sofrer do
ponto de vista econômico e da segurança alimentar, além de lidar com ondas de
processos migratórios da zona rural para os centros urbanos”, diz Alexandre
Pires, diretor do Departamento de Combate à Desertificação do ministério. Em parte
por causa dessa preocupação, ele e os demais pesquisadores frisam que clima
árido não é sinônimo de deserto. A ressalva é importante, dizem, para não
causar alarde e, com isso, prejudicar ainda mais a produção local. A pecha de
“deserto”, além de promover um marketing ruim para os agricultores, poderia
acarretar mal-entendidos. “Mesmo dentro do ministério ouvi uma pessoa dizer:
‘Já que há uma região que está virando deserto, podemos instalar estruturas
gigantescas de energia solar lá’”, exemplifica Pires. “Isso seria uma aberração
sem tamanho.”
Desertos são ambientes
formados de maneira espontânea por condições naturais ao longo de centenas ou
milhares de anos. Já as terras desertificadas, que estão se expandindo pelo
semiárido brasileiro, são produto do clima e da ação humana. Além da perda de
umidade proveniente da Amazônia, a região do PeBa tem se degradado por causa do
modelo de agricultura irrigada aplicado ali. Segundo os pesquisadores, a
fruticultura usa muita água, o que acaba por “lavar” o solo e remover sua
matéria orgânica. A terra vai progressivamente perdendo nutrientes e se
tornando improdutiva.
Fora os 5 mil km² onde
foi detectado clima árido, há outros 28 mil km² de terras suscetíveis à
desertificação no Brasil. Trata-se de um problema de grande magnitude, que
afeta diferentes instâncias de poder (estados, municípios, União), mas que
ainda não motivou políticas públicas à altura. A Casa Civil e o Ministério do
Meio Ambiente estipularam, no começo do ano, um orçamento de apenas 5 milhões
de reais para políticas de combate à desertificação. Como o cobertor é curto e
o Congresso pressiona as contas do governo, o valor foi reduzido mais tarde
para 4 milhões de reais. É o equivalente a dois meses de gastos da Secretaria
de Agricultura e Meio Ambiente de Nova Iguaçu (RJ).
Uma das iniciativas
custeadas com esse parco orçamento foi o 2º Plano de Ação Brasileiro de Combate
à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, evento organizado pelo
governo federal em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE) e a Fundação Apolônio Salles de Desenvolvimento Educacional (Fadurpe),
instituição que fomenta pesquisas científicas. O encontro foi realizado nos
dias 8 e 9 de abril em Paulo Afonso, cidade localizada no extremo Norte da
Bahia, na fronteira com Pernambuco.
A piauí acompanhou o
evento. Compareceram representantes do poder público, empresários, lideranças
de movimentos sociais e integrantes de ONGs ambientalistas. Parecia tudo menos
um encontro formal. “Um passo para frente e já não estamos no mesmo lugar”, entoaram
os presentes a certa altura. De mãos dadas, formavam uma ciranda na quadra
poliesportiva de uma escola técnica. Indígenas cumprimentavam secretários
municipais de infraestrutura, acadêmicos abraçavam agricultores, assentados
cumprimentavam empresários.
Apresentações feitas,
os participantes caminharam até um salão onde John Elton Cunha, professor e
pesquisador do Observatório da Caatinga e Desertificação da Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG), apresentou um panorama técnico e social da
desertificação. Depois do almoço, os cerca de setenta convidados foram
divididos em cinco grupos. Cada um incluía ao menos um representante do poder
público, um integrante de movimento social e um representante da iniciativa
privada. Com essa formação diversa, os grupos tinham a missão de discutir
iniciativas a curto, médio e longo prazo que fossem benéficas para todos. Para
isso, foram municiados com cartolina e canetinhas. Desses rabiscos coloridos
resultaram, mais tarde, relatórios técnicos detalhados, com tabelas e gráficos,
orçamentos e propostas, que foram entregues aos representantes do Ministério do
Meio Ambiente.
“É preciso um pouco
mais de ousadia e ambição por parte do governo para, de fato, a gente ter ações
que contenham a desertificação nesses próximos vinte anos”, afirma Pires, ao
explicar a dinâmica pouco ortodoxa do encontro. Antes de ser nomeado pela ministra
Marina Silva, Pires coordenou a ONG Centro Sabiá e fez parte da coordenação
executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), duas organizações que são
pioneiras no combate à desertificação no Brasil. Por isso, diz estar acostumado
com “cirandas”. “Parece besteira, mas ajuda a quebrar o gelo e, principalmente,
a evitar confusão.”
Os relatórios estão
sendo avaliados e devem subsidiar outro evento, esse mais formal: a Conferência
das Partes (COP-16) da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação.
Trata-se de uma reunião organizada pela ONU, da qual participam 192 países,
entre eles o Brasil. A próxima edição está marcada para dezembro, na Arábia
Saudita. “Precisamos fazer uma ponte com outros países para tratar de questões
técnicas do solo, mas também de índices sociais, como os efeitos disso no PIB.
É um desafio nacional”, diz Cunha. “O clima mudando, muda a produção agrícola.
Mudando a produção agrícola, mudam as cidades e a economia do país”, ele
prossegue, enquanto desliza o dedo sobre um mapa de calor que mostra a
degradação ambiental do sertão.
“Me mostraram o mapa
e, de repente, vi nossa comunidade no estado crítico, vermelho. Me desesperei
porque, meu Deus, é muito pior do que a gente imaginava”, diz a cacica Cicera
Pankará, de 42 anos, cujo território fica no município de Itacuruba (PE), na divisa
com a Bahia. “A gente vem tentando, vem fazendo um trabalho de conscientização
tanto com o nosso povo como com os povos que estão próximos à gente, e aí vê
uma coisa dessas. É triste demais.”
A cacica conta que,
antes de conhecer o mapa de calor, já sentia que a rotina de sua aldeia havia
mudado. “Quem estava acostumado a trabalhar num determinado horário, agora vai
duas horas mais cedo para evitar a quentura do Sol.” Há cerca de quatro anos,
Cicera, percebendo que plantas típicas da Caatinga estavam sumindo da paisagem,
promoveu um projeto de reflorestamento. “Estávamos com problema em encontrar
até nossas plantas medicinais. Algumas espécies as novas gerações nunca tinham
visto”, relembra, fazendo pausas para baforar um cachimbo. “Estávamos com
dificuldade de encontrar a jurema. A jurema!” A acacia jurema, como foi
batizada pelos cientistas, é um tipo de planta comum no Nordeste brasileiro. Há
diferentes espécies dela, algumas das quais produzem efeitos psicoativos em
quem as consome. Na cosmologia de muitos grupos indígenas, a jurema tem poderes
espirituais. “É dela que a gente tira a nossa força, que a gente faz a cura que
nos fortalece tanto espiritualmente como fisicamente. E ela também resolve
muitas doenças”, diz Cicera, que, no cachimbo, queimava uma jurema. O
reflorestamento da região recebeu ajuda de ONGs e universidades públicas.
Lourivaldo Cruz da
Silva, de 54 anos, dá relato semelhante. Segundo ele, indígena da etnia Tuxá e
técnico agrícola, plantas que um dia foram abundantes no semiárido hoje são
difíceis de achar. É o caso de espécies como juazeiro, facheiro, aroeira,
umburana, quixabeira, pau-ferro, marmeleiro e umbuzeiro.
A gastronomia da
região teve de se adaptar. O doce de cafofa, um dos mais populares na região do
PeBa, vem sumindo aos poucos da culinária local. Seu principal ingrediente é a
“batata” do umbuzeiro, que fica na raiz da árvore e serve como um reservatório
de água. Como há poucos umbuzeiros disponíveis, a receita ficou prejudicada.
“Doce de cafofa era o meu doce favorito, mas só de pensar que já me lambuzei
nele fico com raiva de mim”, diz Silva, amargurado. Ele é coordenador de meio
ambiente na Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente de Rodelas. O
sumiço das plantas consta nos relatórios que sua aldeia envia à Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Segundo o Relatório
Anual do Desmatamento no Brasil, produzido pelo Mapbiomas, a Caatinga foi o
segundo bioma mais desmatado em 2022. Com 18,4% dos alertas de desmatamento e
6,8% da área total devastada (140.637 hectares), só ficou atrás da Amazônia. O
dado ganha contornos mais tristes quando se considera que a Caatinga é o único
bioma exclusivamente brasileiro. “Se você olha o planeta e segue a mesma
latitude da Caatinga, você só encontra desertos. Mas no Brasil a gente tem as
duas bombas bióticas – no caso, a Mata Atlântica e a Amazônia – que levam
umidade para a Caatinga”, explica Ana Claudia Costa Destefani, secretária
executiva da Rede para Restauração da Caatinga. “Por isso somos o único
semiárido do mundo que não é nômade.”
De acordo com o IBGE,
o Brasil tem 844.453 km² de Caatinga, o que equivale a 9,9% do território
nacional. A área suscetível à desertificação, contudo, não está só nesse bioma.
O relatório produzido pelo Inpe e o Cemaden aponta uma tendência de aumento da
aridez em todo o país, sendo a região Sul a única exceção. A explicação para
isso está no aquecimento global. Como as temperaturas estão cada vez mais
altas, a evaporação da água tem sido mais volumosa no país. Vários biomas,
consequentemente, estão se desidratando.
A chuva, no entanto,
não desaparece. Em vez disso, tem sido direcionada para o Sul e parte do
Sudeste. Esse é o quadro da crise climática no Brasil: enquanto algumas regiões
se desertificam, outras têm de suportar temporais cada vez mais intensos. “Os
modelos do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] preveem
que, enquanto o restante do país ficará mais seco, o Sul ficará ainda mais
úmido. Isso já é um consenso entre cientistas”, afirma Javier Tomassella,
pesquisador do Inpe que coordenou o estudo.
Um grupo de cientistas
do Imperial College London atestou que a enxurrada que atingiu o Rio Grande do
Sul este ano foi agravada pela ação humana. Os modelos estatísticos apontaram
que o volume anormal de chuva foi causado pelo El Niño, mas intensificado pelo
aumento de 2ºC na temperatura do planeta desde os tempos pré-industriais. “Esse
é o padrão no futuro: maior frequência de chuvas no Sul do Brasil e mais seca
no Nordeste”, afirmou Lincoln Muniz Alves, pesquisador do Inpe que assinou o
artigo científico ao lado de outros doze pesquisadores da Inglaterra, da
Holanda e dos Estados Unidos.
Entre abril e julho,
dos 497 municípios do Rio Grande do Sul, 475 foram atingidos pelas fortes
chuvas, que deixaram ao menos 182 mortos e 580 mil desalojados. As tempestades
também estão se tornando mais comuns e poderosas no litoral sudestino,
sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro. De um dia para o outro, em fevereiro
do ano passado, desabaram 682 milímetros de chuva sobre São Sebastião (SP) –
volume que, de acordo com os institutos de meteorologia, foi o maior da
história num intervalo de 24 horas. O recorde anterior havia sido batido em
2002, em Petrópolis, com 534 milímetros.
“Aqui, onde você pisa,
brota água. Água sai do céu e da terra. Era para ser bom, com tanta gente
precisando de água, mas para a gente é assustador”, diz, pisando com força no
chão, o fotógrafo Robson Caetano Santos, de 29 anos. Ele mora na Vila Sahy, uma
comunidade pertencente ao município de São Sebastião onde moram mais de
setecentas famílias, segundo estimativa da associação de moradores. A maior
parte das residências foi construída em áreas irregulares, o que acarreta
desabamentos em dias de chuvas torrenciais.
“Pense em lugares onde
há terremoto, furacão, tsunami. Os caras dos Estados Unidos e do Japão soltam
anúncios para as pessoas se prepararem, têm bunkers”, diz Maxwell Souza,
tenente da Defesa Civil. “Um americano vê um tornado e não pensa ‘ah, vou lá
brincar’. É a mesma coisa com as crianças brincando na chuva: elas têm que
entender que chuva, aqui, é catástrofe.”
São Sebastião é a
imagem invertida de Abaré. Na ausência de chuva, João Eulalio teme que a terra
eventualmente se torne incultivável. Seria o fim de uma longa linhagem de
produtores daquela região da Caatinga. Os jovens, ele diz, não se interessam
mais pelo trabalho na roça. Preferem viver nos centros urbanos do PeBa,
ocupando cargos no funcionalismo público ou em pequenas empresas que vendem
acessórios para celular. “E quem conhece dessa terra não está mais aqui”,
lamenta Eulalio, referindo-se aos antepassados.
“Eu não sei rezar
muito bem, mas nesses dias me peguei rezando para essa terra voltar a ser o que
era”, diz o veterano. “Espero que alguém, em algum lugar, me ouça.”
Fonte: Revista Piauí
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