A amizade de estrelas do atletismo que
desafiou o nazismo
Em 1936, um gesto
instintivo de esportividade entrou para o folclore olímpico. Mas, para o atleta
Luz Long (1913-1943), campeão alemão de salto em distância, ele traria fortes
consequências.
Quando Jesse Owens
(1913-1980) superou a marca dos oito metros para garantir a medalha de ouro nos
Jogos Olímpicos de Berlim, na Alemanha, seu principal adversário – Long –
saltou até a caixa de areia, para abraçá-lo e dar os parabéns.
Mais tarde, em
surpreendente contradição à noção distorcida de supremacia ariana da Alemanha
nazista e décadas antes do movimento dos direitos civis trazer mudanças
radicais para os Estados Unidos, os dois atletas deram uma volta ao estádio
juntos. O atleta negro e o colega branco correram de braços dados.
Mas nem todos
aplaudiram. No alto das bancadas, o líder alemão Adolf Hitler (1889-1945)
assistia com desaprovação.
Quando chegaram ao
pódio, Long ofereceu a obrigatória saudação nazista, enquanto Owens saudava a
bandeira dos Estados Unidos – um país que ainda não estava pronto para
aceitá-lo totalmente como um de seus cidadãos.
Ambos nascidos em
1913, Owens e Long estavam no auge da forma física quando se encontraram em
Berlim. Mas as similaridades terminavam ali. A jornada de cada um deles até os
Jogos Olímpicos, desde o princípio, foi totalmente oposta.
Owens foi um ícone do
século 20 e sua história foi contada inúmeras vezes. Ele era neto de pessoas
escravizadas e o mais jovem dos dez filhos de uma família de arrendatários de
terras do Alabama, nos Estados Unidos.
Quando era criança,
ele colheu algodão junto com seus irmãos. Mas suas capacidades atléticas
ficaram claras assim que a família se mudou para Cleveland, no Estado americano
de Ohio.
Owens entrou na escola
com nove anos de idade. Ele era conhecido como JC – abreviação do seu nome
real, James Cleveland. Mas seu professor entendeu errado e o registrou como
Jesse. O apelido ficou.
Owens ganhou uma bolsa
de atleta para cursar a Universidade Estadual de Ohio. Lá, sob a tutela do
técnico Larry Schnyder, ele se tornou um dos maiores velocistas que o mundo já
conheceu.
Em um encontro de
atletismo na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, em 1935, Owens
quebrou três recordes mundiais e igualou um quarto, em um intervalo de uma
hora. Sua marca de 8,13 metros no salto em distância permaneceria sem ser
superada por 25 anos.
Ao contrário do seu
rival, Long teve uma criação privilegiada na Alemanha. Ele nasceu em uma
família de classe média na cidade de Leipzig.
Seu pai, Karl, era
dono de uma farmácia no centro da cidade, enquanto sua mãe, Johanna, era
professora de inglês formada. Ela vinha de uma respeitada família acadêmica,
que inclui o cientista Justus von Liebig (1803-1873), conhecido como um dos
fundadores da química orgânica.
Seu nome completo era
Carl Ludwig Hermann Long. Luz Long cresceu com seus quatro irmãos na zona
rural, fora da cidade. Eles organizavam campeonatos familiares de atletismo no
grande jardim da casa.
Long entrou para o
Leipzig Sport Club em 1928. Lá, seu técnico Georg Richter o ajudou a
desenvolver uma técnica de navegar no ar usando sua força para saltar – ao
contrário de Owens, que aproveitou sua velocidade para correr.
A parceria de Long com
Richter teve sucesso. O atleta quebrou o recorde alemão de salto em distância
em 1933 e foi campeão nacional com apenas 20 anos de idade.
E, apenas dois meses
antes dos Jogos Olímpicos de Berlim, Long estabeleceu um novo recorde europeu
de salto em distância, de 7,82 m, durante a disputa que levou ao seu terceiro
título nacional alemão.
Enquanto construíam
sua trajetória nas pistas, Owens e Long enfrentavam o cenário político
existente fora delas.
Nos Estados Unidos,
crescia a pressão para boicotar os Jogos de Berlim, em vista das histórias
sobre o tratamento do povo judeu na Alemanha com o novo regime nazista.
Inicialmente, Owens
apoiou as mobilizações pelo boicote aos Jogos. Ele declarou à Associação
Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor que "se houver qualquer minoria
na Alemanha sendo discriminada, os Estados Unidos devem se retirar".
Mas ele acabou
concordando em competir, depois dos apelos do seu técnico e das garantias
recebidas do Comitê Olímpico Americano, que enviou uma delegação para a
Alemanha, a fim de avaliar as condições e discutir a política dos anfitriões em
relação à participação de atletas judeus nos Jogos.
• 'Sem consciência racial'
Enquanto isso, a
pressão política do Estado alemão sobre os atletas do país aumentava.
"Os atletas eram
representantes do Reich Alemão, dentro e fora das pistas, não pessoas
individuais", afirma a única neta de Luz Long, Julia Kellner-Long.
A ascensão de Long à
equipe nacional veio em 1933, o mesmo ano em que Hitler foi nomeado chanceler
da Alemanha.
Na improvável hipótese
de que Long não soubesse o que era esperado dele, um pôster no campo de
treinamento deixava tudo muito claro: "Atletas do campo e das pistas,
pensem nos Jogos Olímpicos de 1936. Não podemos desapontar nosso líder Adolf
Hitler."
Hitler estava presente
no Estádio Olímpico de Berlim quando Owens e Long competiram em uma das maiores
finais do salto em distância da história das Olimpíadas modernas.
Após uma intensa
disputa, Long igualou a marca de Owens, de 7,87 metros, na sua penúltima
tentativa, para delírio da torcida local.
Mas Owens conseguiu o
seu melhor quando mais precisava. Ele respondeu saltando 7,94 metros, passando
à frente de Long mais uma vez.
Long falhou na sua
última tentativa. Mas seu desempenho trouxe a medalha de prata – a primeira
medalha olímpica da Alemanha no salto em distância.
Com o ouro já
garantido, Owens fez ainda mais história com seu salto final de 8,06 metros,
estabelecendo um recorde olímpico que duraria 24 anos.
Foi quando Long
colocou sua própria desilusão de lado e, instintivamente, saltou para a caixa
de areia para felicitar o vencedor.
Fixo naquele momento,
sozinho naquele abraço, enquanto uma multidão de mais de 100 mil pessoas
assistia à cena, Owens confidenciou para o adversário: "Você me forçou a
dar o meu melhor."
Naquela final, Owens e
Long quebraram o recorde olímpico anterior cinco vezes.
"É quase como um
conto de fadas – saltar tão longe neste tempo", declarou Long em
entrevista ao jornal da sua cidade natal, o Neue Leipziger Zeitung.
"Não pude evitar.
Eu corri até ele. Fui o primeiro a dar os parabéns e abraçá-lo." Mas a
reação impulsiva de Long chamou a atenção das autoridades alemãs.
Logo depois dos Jogos
Olímpicos, sua mãe, Johanna, anotou no seu diário um alerta feito por Rudolf
Hess (1894-1987), então vice-líder do partido nazista alemão.
Segundo ela, Long
havia "recebido uma ordem da mais alta autoridade" de nunca mais
abraçar uma pessoa negra. Ele foi marcado como "sem consciência
racial" pelo regime nazista.
O abraço claramente
enfureceu os nazistas. Eles costumavam usar imagens poderosas para promover sua
ideologia e receavam que a amizade entre Owens e Long pudesse prejudicar sua
propaganda.
E, neste ponto, eles
estavam certos. Quase 90 anos depois, a amizade de Owen e Long é um dos
episódios mais lembrados da história dos Jogos Olímpicos.
"Aquele gesto de
gentileza e igualdade tocou os corações de muitas pessoas", afirma
Kellner-Long.
"Juntos, Luz e
Jesse usufruíram de uma amizade única naquele dia, demonstrando ao mundo que,
no esporte e na vida, amizade e respeito são o mais importante,
independentemente dos antecedentes ou da cor da pele."
O neto de Owens,
Stuart Rankin, também se impressiona com o significado daquele gesto.
"Costumo dizer
que, de todas as conquistas do meu avô nos Jogos Olímpicos de 1936, sua
improvável amizade com Luz Long é o que me dá mais orgulho e mais me
impressiona", segundo ele.
"Eles terem
formado aquela amizade, naquelas condições, naquelas circunstâncias, naquele
estádio, em frente a Hitler, foi simplesmente fenomenal."
Aquela seria a única
vez em que Owens e Long competiriam entre si.
Após a vitória no
salto em distância e já tendo vencido os 100 metros, Owens seguiu para
acrescentar os 200 metros e o revezamento 4x100 metros, levando para casa
quatro medalhas de ouro da capital da Alemanha.
Mas ele enfureceu as
autoridades ao se recusar a competir em um encontro na Suécia logo após os
Jogos Olímpicos. Ele voltou para casa, aproveitando a fama recém-adquirida e
uma série de oportunidades comerciais.
Sua decisão faria com
que Owens fosse proibido de competir pela União Americana de Atletismo, o que
acabou encerrando sua carreira esportiva.
Owens foi recebido
como herói em uma cerimônia especial de boas vindas em Nova York, nos Estados
Unidos. Mas um incidente ocorrido em uma festa em sua homenagem no hotel
Waldorf Astoria demonstrou que nada havia mudado.
Na chegada ao hotel,
um porteiro retirou Owens do lobby e o levou para uma entrada lateral, que era
destinada aos fornecedores e pessoas negras. A entrada de serviço foi um duro
lembrete da divisão e do preconceito racial enraizados no coração da sociedade
americana.
Long deixou Berlim
como medalhista de prata olímpico, campeão nacional e dono do recorde europeu
de salto em distância. Ele ampliaria sua marca para 7,90 metros no ano
seguinte, um recorde que permaneceria até 1956.
Mas ele não conseguiu
escapar das suspeitas e investigações.
"O abraço de Luz
na caixa de areia teve consequências", segundo Kellner-Long. "Ele foi
monitorado mais de perto pelas autoridades, o que o forçou a pisar com mais
cuidado e manter um perfil mais discreto."
Long não voltaria a
competir após o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ele se concentrou
na sua carreira de advogado.
Seu irmão mais novo,
Heinrich, morreu em combate. Long ficou devastado.
Ele se casou com
Gisela em 1941 e o casal teve um filho em novembro do mesmo ano – o pai de sua
neta, Julia. Ele recebeu o nome de Kai Heinrich, em homenagem ao irmão de Long.
Long já havia então
sido convocado pelos militares. Inicialmente, suas tarefas estavam fora da
linha de combate.
Mas, em 1943, ele foi
enviado para a Sicília, na Itália, com o 10º Regimento de Paraquedistas. Um mês
depois, ele enviaria sua última carta para a esposa. Na época, ela estava no
final da gravidez do segundo filho do casal, Wolfgang Matthias.
"Na carta, Luz
descreveu o acampamento em tendas, em uma bela campina florida rodeada por
montanhas", conta Kellner-Long. "Um ambiente de paz. Foi a sua última
comunicação com a família."
"No dia seguinte,
30 de maio de 1943, Wolfgang nasceu. Infelizmente, Luz nunca o conheceu."
As forças aliadas
desembarcaram na Sicília no dia 10 de julho de 1943, como parte de uma operação
de liberação da Itália. E, quatro dias, depois, Long foi atingido por
estilhaços na perna, enquanto as forças alemãs se retiravam, e sangrou até a
morte.
Em 30 de julho, Gisela
recebeu a notificação de que seu marido havia desaparecido em combate e
considerado morto.
Os detalhes só foram
confirmados sete anos depois, quando seu túmulo foi encontrado na seção alemã
de honra do cemitério militar americano em Gela, na Itália.
Owens preferiu não se
alistar para o serviço militar durante a guerra, nem foi convocado. Mas, como
foi banido das competições oficiais de atletismo e com as ofertas comerciais
rapidamente desaparecendo, ele precisou encontrar formas menos ortodoxas de sustentar
sua família.
Ele desafiava
corredores locais, dando uma vantagem de 9 ou 18 metros na largada. Ainda
assim, ele os ultrapassava com facilidade e ganhava prêmios em dinheiro.
Quando não havia
adversários humanos, Owens corria contra motocicletas, carros e cavalos.
"As pessoas dizem
que era humilhante para um campeão olímpico correr contra um cavalo",
dizia Owens, "mas o que eu poderia fazer? Eu tinha quatro medalhas de
ouro, mas você não pode comer quatro medalhas de ouro."
Depois de alternar
diversos trabalhos humildes, a situação começou a melhorar para Owens nos anos
1950, quando ele conseguiu emprego como palestrante motivacional.
Ele fundou sua própria
empresa de relações públicas e se tornou uma figura procurada, viajando pelo
mundo como embaixador esportivo.
• O encontro das famílias
Durante uma viagem à
Alemanha, em 1951, com a equipe de basquete do Harlem Globetrotters, Owens
procurou a família de Long. Ele conheceu Kai Heinrich e o levou para o jogo de
basquete em Hamburgo, como convidado de honra.
Em 1964, Kai fez parte
de um documentário, intitulado Jesse Owens Retorna a Berlim. Nele, os dois
recriaram a foto de Owens e Long reclinados ao lado da pista do Estádio
Olímpico.
"Kai admirava
muito Jesse – seu carisma, sua modéstia, seu dom natural e seu sucesso como
atleta", relembra Kellner-Long.
Owens recebeu a
Medalha Presidencial da Liberdade em 1976. Ele morreria quatro anos depois, aos
66 anos de idade, de câncer do pulmão.
Em 1990, foi concedida
a ele postumamente a Medalha de Ouro do Congresso dos Estados Unidos. E, em
2016, o presidente americano Barack Obama convidou os parentes de Owens para
uma recepção na Casa Branca – a mesma que foi negada a ele e aos demais membros
negros da equipe olímpica americana de 1936, após os Jogos de Berlim.
A esposa de Jesse
Owens, Ruth, deu continuidade ao seu legado, dirigindo a Fundação Jesse Owens.
Ela passou o bastão para suas filhas Gloria, Marlene e Beverly – e, mais
recentemente, para seus cinco netos.
As famílias Long e
Owens permaneceram em contato ao longo dos anos. Julia Kellner-Long e uma das
netas de Owens, Gina, acenderam a chama olímpica em uma cerimônia especial no
Estádio Olímpico de Berlim, em 2004.
E, com Marlene Dortch,
outra neta de Owens, ela apresentou as medalhas do salto em distância durante o
Campeonato Mundial de Atletismo de 2009, também em Berlim.
Kellner-Long e Stuart
Rankin se tornariam amigos próximos depois de um encontro casual em Munique, na
Alemanha, em 2012. Recentemente, eles trabalharam juntos em um documentário
sobre seus avôs.
"A relação entre
as famílias significa muito para mim e tenho orgulho da nossa ligação",
declarou Kellner-Long.
"Julia e eu
brincamos com frequência, pensando nos nossos dois avôs olhando para baixo e
sorrindo, muito felizes pelas famílias ainda estarem ligadas, apesar dos
anos", acrescenta Rankin.
A amizade entre as
famílias Owens e Long, mantida com carinho pelos dois lados na vida real, não
impediu que essa conexão valiosa ganhasse vida própria na internet.
Um mito frequentemente
repetido envolve uma carta emocionada que Long teria escrito para Owens, das
"areias secas e sangue úmido" do norte da África. A carta pede que
Owens retorne à Alemanha se Long não conseguisse voltar para casa, para encontrar
seu filho.
Uma das linhas diz:
"Diga a ele, Jesse, como era o tempo em que não estávamos separados pela
guerra, conte a ele como tudo pode ser entre os homens nesta terra."
Extremamente
comovente, mas quase com certeza inverídico. Long nunca serviu no norte da
África, nenhuma das famílias nunca viu essa carta e ambas questionam a
probabilidade e a logística dela ter sido escrita e enviada.
Mas Kellner-Long
compreende a poderosa mensagem que a sua história continua a trazer para as
pessoas.
"Ela oferece
esperança e inspiração para as pessoas de todo o mundo", afirma ela.
"Em tempos em que o racismo e a exclusão infelizmente ainda prevalecem,
esta história é mais relevante do que nunca."
"Acho que o
exemplo de espírito esportivo demonstrado por Luz deve ser preservado e
estimulado para sempre", segundo Rankin.
"Meu avô
certamente nunca teria previsto sua relação com Luz, mas o acontecimento
forneceu uma perspectiva de esperança ao meu avô e, certamente, para mim, de
que as tendências de toda uma nação não significam que todos os cidadãos
daquela nação sejam iguais."
"A resistência e
o caráter de Luz são quase indescritíveis, mas eles demonstram como você ainda
consegue encontrar o bem no mais improvável dos lugares."
Fonte: BBC Sport
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