quarta-feira, 3 de julho de 2024

A ordem neoliberal está ruindo. O que virá depois depende de nós

Um movimento político se torna uma ordem política quando suas premissas começam a parecer inevitáveis. Na década de 1950, os republicanos se curvaram à realidade política e apoiaram os programas de bem-estar social do New Deal; na década de 1990, os democratas abraçaram o ímpeto desregulamentador de Ronald Reagan.

Mas, como argumenta o historiador Gary Gerstle em seu novo livro, The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era (“Ascensão e queda da ordem neoliberal: A América e o mundo na era do livre mercado” em tradução livre, ainda sem edição no Brasil), nenhuma ordem política está imune ao poder desestabilizador das crises econômicas.

Para Gerstle, a estagflação da década de 1970 minou a ordem do New Deal, tal como a Grande Depressão ajudou a trazê-la à existência. E hoje, nas sombras da Grande Recessão de 2008-2009, com a inflação galopante e a pandemia ainda assolando o mundo, a ordem neoliberal parece capengar. O que, então, poderá vir a seguir?

Jen Pan fez esta e muitas outras perguntas a Gerstle em um episódio recente do The Jacobin Show, uma série do YouTube e podcast da Jacobin Magazine. Nesse bate papo, Pan e Gerstle discutem como Donald Trump e Bernie Sanders são sintomas de direita e de esquerda do colapso neoliberal, como a Nova Esquerda ajudou involuntariamente a ascensão do neoliberalismo e por que ele pensa que “o capitalismo [não] está no comando” neste momento tumultuado.

LEIA A ENTREVISTA:

·        Você quer dizer algo muito específico quando fala sobre uma ordem política. O que distingue uma ordem política de, digamos, um movimento político ou uma ideologia política? E quais têm sido algumas das principais ordens políticas nos EUA?

GG - Uma ordem política é uma constelação de instituições apoiadas por um partido político, envolvendo redes de decisores políticos e pessoas que procuram definir a boa vida na América. É uma estrutura política que permite a um movimento ganhar autoridade e poder durante um longo período de tempo.

Quando Steve Fraser e eu escrevemos sobre a ordem do New Deal, que surgiu nas décadas de 1930 e 1940 e teve sua derrocada nas décadas de 1960 e 1970, argumentamos que um teste fundamental para uma ordem política é se ela pode obrigar o partido antagonista, neste caso, o Partido Republicano, a jogar segundo as regras do Partido Democrata.

Em outras palavras, certas crenças centrais se tornam tão profundamente estabelecidas, tão hegemônicas, que definem o campo de jogo. E assim, quando um presidente republicano foi eleito pela primeira vez em vinte anos, em 1952, a grande questão era: ele desmantelaria o New Deal? Não o fez; ele preservou seus pilares fundamentais, incluindo os direitos laborais, a Segurança Social e um imposto de rendimentos progressivo que ultrapassou os 90 por cento.

O que é que obriga um partido da oposição a seguir as regras do partido dominante? A resposta é uma ordem política. Nem todos na América têm de falar essa língua – mas se quisermos ser eleitos, se quisermos ter influência política dentro da estrutura política dominante nos Estados Unidos, temos de falá-la.

·        “O fato de as vozes outrora relegadas estritamente à periferia serem agora consideradas dominantes é um sinal de que a autoridade que uma ordem política teve outrora está a está desintegrando.”

GG - A ordem neoliberal surgiu com o Partido Republicano nas décadas de 1970 e 1980. Se tornou uma ordem, na minha avaliação, quando Bill Clinton, na década de 1990, trouxe o Partido Democrata a bordo. É indiscutível que Clinton fez mais do que o próprio [Ronald] Reagan para facilitar os princípios da ordem neoliberal: o compromisso com a desregulamentação, a celebração da globalização e a ideia de que deveria haver mercados livres em todos os lados. Isto indica que o movimento político do neoliberalismo se estabeleceu como uma ordem, com a capacidade de definir o terreno da política americana.

Estamos vivendo o que defendo ser o fim da ordem neoliberal. Isso não significa que as ideias do neoliberalismo desaparecerão. Afinal, a Segurança Social ainda existe, mas a ordem do New Deal não. Haverá elementos do pensamento neoliberal que continuarão a caracterizar a vida americana durante um longo período de tempo.

Mas a ordem neoliberal já não tem a capacidade de obrigar a aquiescência, de impor o apoio, de definir os parâmetros da política americana. A Jacobin não teria a influência que tem se tivesse surgido em 1995 ou 1996. Bernie Sanders foi um ator completamente irrelevante na política americana na década de 1990 e na primeira década do século XXI, e, de repente, suas ideias importam muito. Trump é também um registo do declínio da ordem neoliberal. Era inimaginável tê-lo como presidente na década de 1990.

O fato de as vozes outrora relegadas estritamente à periferia serem agora consideradas dominantes é um sinal de que a autoridade que uma ordem política teve outrora está a está desintegrando.

·        Quero insistir nesta questão de passar da periferia para o centro, porque isso também faz parte da história do neoliberalismo. Quais foram as condições políticas e econômicas que permitiram que as ideias de pessoas como Milton Friedman passassem da periferia para o centro?

GG - Sou fascinado por aqueles momentos em que ideias consideradas relegadas à periferia se libertam para sempre e subitamente se tornam muito importantes no discurso político dominante. Na política americana dos séculos XX e XXI, essas ideias geralmente escapam da periferia e entram na corrente dominante devido a uma grande crise econômica.

Se voltarmos à década de 1930, foi a Grande Depressão que permitiu aos pensadores e aos políticos do New Deal se tornarem dominantes. A recessão da década de 1970 não foi tão extrema como a Grande Depressão, mas o sofrimento econômico foi real e intenso; um mundo que até então funcionava bastante bem dava sinais, em termos econômicos, de se desintegrar.

·        Situo as origens das novas ordens econômicas nestes momentos de crise econômica.

GG - O conjunto de ferramentas keynesianas que tanto fez para gerir o capitalismo – para mantê-lo em funcionamento e levar em consideração o bem público – já não funcionava. Algo que não deveria acontecer aconteceu: “estagflação”. (Não se supunha que a inflação subisse ao mesmo tempo que o desemprego aumentava; supunha-se que funcionavam em uma proporção inversa entre si.) Uma crise que não tinha solução fácil envolveu o mundo industrializado. Foi este momento de crise econômica que permitiu que ideias que tinham sido bem articuladas, mas que ainda eram marginais, ganhassem voz.

A crise da ordem neoliberal surgiu na sequência da Grande Recessão de 2008-2009, e isto também permitiu que ideias que estavam na periferia entrassem na corrente dominante de uma forma muito profunda. Situo as origens das novas ordens econômicas nestes momentos de crise econômica.

·        Você ressalta que o neoliberalismo não é apenas um novo tipo de conservadorismo. Na verdade, argumenta que as ideias da Nova Esquerda e até mesmo de figuras anti-establishment como Ralph Nader ajudaram a legitimar a ordem neoliberal. Como é que os valores que agora associamos às chamadas atitudes progressistas – cosmopolitismo, multiculturalismo e libertação pessoal – se tornaram tão centrais para a ordem neoliberal?

GG - Este é um argumento controverso; Enfrentei fortes críticas sobre isso e espero receber mais. Digo isto como alguém que foi membro da Nova Esquerda no início dos anos 1970.

Não vejo o neoliberalismo inteiramente como um esforço das elites para acorrentar as massas e minar seus direitos democráticos. Este é certamente um elemento do neoliberalismo – privilegiar a propriedade, especialmente o capital, acima de todas as outras considerações. Mas, na minha opinião, se quisermos compreender a popularidade destas ideias nos Estados Unidos, temos também de ver como as ideias neoliberais foram capazes de se ligar às ideias liberais clássicas do século XVIII e início do século XIX, ideias de liberdade e emancipação.

Esses liberais clássicos acreditavam seriamente num tipo de liberdade que achavam não estar disponível na época. Viram um mundo oprimido por monarquias, aristocracias e elites, e as pessoas comuns não tinham chance. Eles transmitiram uma mensagem de emancipação: derrubar aristocracias e monarquias, libertar das restrições os talentos individuais e permitir que as pessoas trabalhassem arduamente e fossem recompensadas por isso.

Esta não é uma concepção errônea de liberdade; é uma noção profundamente atraente sobre seu significado. E está profundamente enraizado no pensamento e na mitologia da vida americana, associada à Revolução Americana no século XVIII, que fez parte deste movimento para derrubar a aristocracia e a monarquia.

Este sonho do liberalismo clássico se revelou muito eficaz na libertação das forças do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa. No final do século XIX e início do século XX, novas vozes começaram a aparecer, se autodenominando socialistas e comunistas, dizendo: “Ei, espere um minuto, a liberdade que o liberalismo clássico oferece é uma liberdade falsa; é simplesmente permitir que o capitalismo se liberte e privilegie as elites capitalistas.” Os socialistas e os comunistas assumiram a responsabilidade de redefinir a liberdade de uma forma benéfica aos trabalhadores e não às elites, tornando-se assim alguns dos movimentos mais poderosos e populares do século XX.

Mas na década de 1960, a opressão das pessoas comuns era vista não apenas como obra das elites capitalistas, mas como obra do governo. Os Estados se ornaram demasiado fortes e poderosos, como na União Soviética. No centro da ideologia da Nova Esquerda estava a noção de que “o sistema” – uma aliança de empresas privadas e reguladores estatais – estava privando as pessoas de sua liberdade.

Aos olhos de muitos Novos Esquerdistas, até as agências do New Deal criadas para regular o capital tinham sido capturadas por interesses privados. Já não regulamentavam o petróleo, o aço ou outras empresas de acordo com o interesse público; os reguladores serviam os interesses das empresas e do capital. Portanto, o que emergiu como parte da Nova Esquerda foi um anti-estatismo e uma centralidade do indivíduo e de sua consciência sobre todas as grandes estruturas, públicas e privadas, que poderiam restringir indevidamente a sua liberdade.

Depois de entrar nessa linha de pensamento, você começa a ver como poderia haver uma intersecção entre algumas ideias da Nova Esquerda e dos neoliberais. Isso não quer dizer que eles se fundiram, e não estou argumentando que a Nova Esquerda se vendeu. Não é uma discussão sobre pessoas que fingem ser uma coisa e intimamente são outra. É mais uma história de como as críticas às estruturas estabelecidas da esquerda surgiram de formas que as levaram a conversar com pessoas do outro lado do espectro político.

Uma das formas concretas em que isso se manifestou foi na revolução da informática. Era o sonho de Apple, Steve Jobs e Stewart Brand – que era um hippie e escreveu uma das bíblias do domínio hippie, o Whole Earth Catalog (“Catálogo da Terra inteira” em tradução livre) – libertar o indivíduo de todas as estruturas de opressão. É assim que a Nova Esquerda começa a contribuir para o desenvolvimento e triunfo final do pensamento neoliberal.

·        Os anos Clinton atingem esta tensão na forma como as pessoas à esquerda podem defender noções de liberdade pessoal ao mesmo tempo que são culturalmente distintas dos conservadores. O que aconteceu nesse período, que consolidou a ordem neoliberal?

GG - Parte disso foi a revolução da informática e o tecno-utopismo que a envolveu. Seriam gerados tantos dados – tanto conhecimento sobre os mercados estaria disponível instantaneamente em todo o mundo ao pressionar uma tecla – que o que antes exigia a intervenção do governo no interesse público já não precisava dela.

Isto dá forma ao que considero as peças legislativas mais extraordinárias aprovadas pelos Democratas no século XX: a Lei das Telecomunicações de 1996, que basicamente permite que a revolução da Internet seja livre de qualquer regulamentação pública séria.

Os Estados Unidos têm uma rica tradição de regulação pública dos meios de comunicação, incluindo telefone, rádio e televisão. Como a informação era considerada tão vital para uma democracia, as instituições que forneciam este sistema infra-estrutural tinham de ser regulamentadas de alguma forma.

Faz parte da herança do New Deal de Franklin Roosevelt.

Havia também algo chamado Doutrina de Justiça, que foi implementado no final da década de 1940; dizia que se a televisão ou a rádio divulgassem uma visão política controversa, teriam de dar tempo igual ao outro lado. Reagan se livrou dela na década de 1980 e Clinton e a sua administração não fizeram nenhum esforço para restaurá-la.

Quando chega ao ponto de precisar redigir um projeto de lei que responda ao desafio desta revolução tecnológica, abandonaram a herança da regulação dos meios de comunicação social que tinha sido tão central para o Partido Democrata durante a maior parte do século anterior. Parte disso se deve ao seu tecnoutopismo.

O outro fator é a queda do comunismo e da União Soviética, um colapso espectacular que ninguém esperava. Isso ocasionou dois efeitos principais. Primeiro, abriu o mundo inteiro à penetração capitalista numa extensão que não existia desde antes da Primeira Guerra Mundial.

De repente, todos estes mercados em países que tinham estado fora dos limites do desenvolvimento capitalista se tornaram um alvo fácil para a expansão do capitalismo. Isto alimentou um sentimento de arrogância pelo fato de o Ocidente ter vencido – de que o capitalismo liberal não tinha nenhum rival sério no mundo, de que o seu maior antagonista fora derrotado.

Para a esquerda, instituiu uma crise na análise marxista, porque o esforço mais ambicioso para estabelecer o socialismo falhou de forma espectacular. Não sabendo como reorganizar a economia numa base socialista, as pessoas começaram a definir o seu esquerdismo em termos alternativos. Os anos 90 se tornaram uma época de rico desenvolvimento do pensamento cosmopolita.

Um dos pontos que defendo no livro é que este pensamento cosmopolita é algo com que um mundo globalizado e neoliberal se sente muito confortável. Isto não quer dizer que as pessoas que procuravam a libertação na esquerda fossem elas próprias neoliberais, mas esta consonância, no entanto, promoveu a legitimidade das ideias neoliberais, que tinham elas próprias uma componente cosmopolita.

·        Quando começou o fim do neoliberalismo e quais são os fatores que provocaram este declínio?

GG - Sempre há fissuras na ordem política. As ordens políticas são formações complexas. Eles reúnem instituições e círculos eleitorais que, em algumas questões-chave, concordam e em outras questões não. Portanto, sempre há pontos de tensão e onde pode haver divergências.

Penso que George Bush preparou o cenário para a crise do neoliberalismo de duas maneiras. Ele seguiu uma política de habitação barata, que em sua mente pretendia aumentar a propriedade de casas para minorias nos Estados Unidos. Como ele não estava disposto a empenhar dinheiro real para isso – o que só pode ser feito através da extensão de dívidas e hipotecas a pessoas a quem anteriormente tinham sido negadas hipotecas pelos bancos – isso as levou ao fracasso. Mais uma vez, isto pode acontecer devido ao utopismo que rodeia a revolução tecnológica.

·        A ordem neoliberal obrigou todos os atores políticos a respeitar um determinado conjunto de crenças e regras, o que, claramente, não é o caso hoje.

GG - Bush também tentou reconstruir o Iraque numa base neoliberal. Ele descartou os planos que os Estados Unidos tinham usado para reconstruir a Alemanha e o Japão após a Segunda Guerra Mundial e basicamente entregou o trabalho de reconstrução a empresas privadas, a maioria delas sediadas nos EUA. Através de seus agentes no Iraque, ele também desmantelou toda a infra-estrutura da economia iraquiana, implementando um tratamento de choque que os neoliberais acreditavam ser a única forma de lidar com Estados inchados que não tinham tido sucesso no desenvolvimento econômico. Esta experiência neoliberal foi brutal para os iraquianos; levou à guerra civil no Iraque e fez explodir a popularidade de Bush.

A combinação da política de Bush para o Iraque e da crise imobiliária que conduziu à Grande Recessão persuadiu muitos americanos a pensar mais seriamente sobre o tipo de economia política com que se tinham comprometido através de sua liderança política.

Os protestos desenvolveram-se lentamente. Mas ao longo da década de 2010, foram bastante extraordinários, começando com o Tea Party à Direita e o Occupy Wall Street e depois o Black Lives Matter à Esquerda. Houve o ressurgimento do socialismo na esquerda e um poderoso protecionismo etno-nacionalista na forma de Donald Trump à direita. As eleições de 2016 foram o choque. As duas pessoas mais poderosas e importantes naquelas eleições, Donald Trump e Bernie Sanders, eram inimagináveis ​​como figuras políticas significativas no apogeu do neoliberalismo. Foi nessa eleição que decidi escrever o livro.

A ordem neoliberal obrigou todos os atores políticos a respeitar um determinado conjunto de crenças e regras, o que, claramente, não é o caso hoje. Isso não significa que o socialismo esteja chegando, mas que a ortodoxia e o poder do pensamento neoliberal sofreram.

·        A ordem do New Deal foi definida por uma espécie de compromisso entre capital e trabalho, enquanto a ordem neoliberal representou um triunfo do capital sobre o trabalho que resultou numa enorme transferência ascendente de riqueza. É lógico que os capitalistas estariam muito empenhados na preservação da ordem neoliberal, muito mais do que na ordem do New Deal. Você vê sinais de formação de outras ordens políticas? Ou você acha que o capital pode reviver a ordem neoliberal?

GG - Os capitalistas farão tudo o que puderem para manter suas riquezas e privilégios? Absolutamente. Mas não está claro se serão capazes de fazer isso. Parte da lição da ordem do New Deal é que existem circunstâncias que levarão o capital a se comprometer de formas que poderão não desejar, mas que, no entanto, se sentem obrigados a fazer, como sendo a melhor das alternativas que enfrentam. Uma questão importante agora é: o que causará medo nos corações do capital? O que os levará a fazer concessões?

Um fator importante é o ressurgimento do movimento trabalhista. Estamos vendo sinais disso, mas não ao ponto de prevalecer. No entanto, a revolta trabalhista da década de 1930 teve um início muito modesto.

·        Uma questão importante agora é: o que causará medo nos corações do capital? O que os levará a fazer concessões?

GG - Acabei de resenhar o novo livro de Thomas Piketty, que possui um argumento otimista em favor da igualdade e da possibilidade de alcançá-la no século XXI. Penso que é demasiado otimista porque ignora o que delineou tão brilhantemente em seu primeiro livro, O Capital no Século XXI: que a Primeira e a Segunda Guerra Mundial causaram uma catástrofe que o capital não conseguiu controlar. Desse desastre resultou, segundo ele, um avanço notável para a política social-democrata e para a política liberal de esquerda, que foram dominantes entre as décadas de 1940 e 1970.

Obviamente, não queremos que uma catástrofe da escala da Primeira Guerra Mundial ou da Segunda Guerra Mundial envolva novamente nossas vidas – embora a crise climática e a pandemia nos tenham obrigado a pensar que tais catástrofes não são impossíveis – mas as crises econômicas podem se desenvolver ao ponto em que os capitalistas não consigam controlar o resultado.

Não vejo este momento como uma ocasião em que o capitalismo esteja no comando, gerindo as coisas em seu interesse. O resultado da nossa crise atual poderá ser o ressurgimento de uma ordem neoliberal, privilegiando profundamente o capital, até ao final da década de 2020? Sim, isso é uma possibilidade. Mas é apenas um dos vários cenários possíveis. Penso que estamos num momento de inflexão, estamos num momento de transição e não sabemos realmente qual será a forma do mundo daqui cinco ou dez anos.

Não só não deveríamos presumir que o capital vai triunfar, mas também deveríamos perceber que este é um momento em que aqueles que têm outras ideias para reorganizar a economia e a política, devem intensificar a lutar por aquilo em que acreditam.

 

Fonte: Entrevista com Gary Gerstle, com tradução de Pedro Silva, em Jacobin Brasil

 

Há 200 anos era proclamada a Confederação do Equador, no Nordeste do Brasil

Nas províncias nordestinas, o clima era de descontentamento frente aos rumos que o Brasil independente galgava. O declínio do ciclo do açúcar deixava a região economicamente mais fraca frente ao Rio, transformado em capital, a Minas, com a exploração de metais preciosos, e a São Paulo, com o início da riqueza cafeicultora.

O escritor, religioso e político Frei Caneca (1779-1825) conclamava à indignação: "Por que razão o Senado do Rio deve ser a bússola do Brasil ou servir de guia a todas as demais províncias? O Senado do Rio tem tanto direito para nos dar a lei como o de Maragogipe nessa Bahia e o da Jacoca na Paraíba do Norte".

Caneca, ao lado do político Manoel de Carvalho (1774-1855), foi um dos principais líderes da Confederação do Equador, fundada em 2 de julho de 1824, no Recife. De inspiração liberal — em parte buscando seguir o modelo dos Estados Unidos, que eram país independente já desde 1776 —, o movimento pretendia criar uma nação autônoma formada pelas então províncias de Pernambuco, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e Alagoas.

O plano não funcionou. Apenas algumas vilas da Paraíba e do Ceará aderiram.

É controversa a ideia de que o movimento tinha caráter republicano. Como observa o historiador Evaldo Cabral de Mello no livro A Outra Independência: Pernambuco, 1817-1824, "os documentos oficiais expedidos a partir de 2 de julho não falam jamais em ‘república'”.

Era, na verdade, um movimento contra a centralização de poder pretendida por dom Pedro 1° (1798-1834). Que, nas palavras de Mello, "não visara fazer uma revolução nem destruir a monarquia constitucional, apenas opor-se ao projeto do imperador […]."

A oposição nordestina se tornou ainda mais intensa depois de dom Pedro dissolver a assembleia constituinte, em novembro de 1823, e impor sua constituição, em março de 1824. Segundo Azedo, foi esse o clima que permitiu o surgimento de fagulhas de insurgência.

"É importante situar a Confederação do Equador dentro de um processo, no plural, de independências do Brasil", pontua o historiador Victor Missiato, da Universidade Estadual Paulista.

Ele argumenta que havia uma postura muito crítica "em relação ao modo como a independência estava se colocando como muito centralizadora por parte de dom Pedro 1°".

"O clima político era de muita agitação em várias províncias", ressalta. Em confronto, estavam diversas "ideias de Brasil".

"As disputas entre interesses econômicos e sociais na organização política do nascente Império do Brasil assumiram expressões regionais, contrapondo, com maior ou menor intensidade e violência, segmentos diversos", contextualiza o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

"Comerciantes, burocracia civil, eclesiástica e militar, criadores de gado, donos de engenhos e de plantações, de gêneros de abastecimento e de exportação, arrecadação de impostos e cargos na administração local e regional foram ativos e recorrentes sujeitos políticos. A composição e as formas de disputas podiam envolver em maior ou menor número segmentos populares, soldados e marinheiros, libertos e rebeldes africanos escravizados."

Ele ressalta que o clima era de "tensão e imprevisibilidade constante quanto aos rumos políticos". "Reatamento da unidade com Portugal, autonomia e unidade territorial brasileira, fragmentação regional e diferentes formas de governo eram possibilidades concretas, ainda que sob risco de forte instabilidade e confrontos militares", explica Martinez.

"A Confederação do Equador foi o projeto político regional e divergente mais organizado e evidente de interesses contrapostos na primeira década de vida nacional autônoma", considera ele.

•           Repressão foi violenta

Depois da "independência” proclamada por Carvalho, não tardou para a Confederação do Equador ser reprimida pelo governo imperial.

Na esfera administrativa, a primeira medida punitiva veio por meio de uma canetada do imperador datada de 7 de julho — a província de Pernambuco foi reduzida de 250 mil metros quadrados para pouco menos de 100 mil.

D. Pedro 1° pegou dinheiro emprestado da Inglaterra e contratou uma tropa de mercenários para atuar no Recife, sob o comando do oficial naval britânico Thomas Cochrane (1775-1860). O militar comandou uma divisão naval formada por quatro embarcações e tropas de 1.200 homens, que desembarcaram em Maceió, na então província de Alagoas, com destino à Pernambuco.

No trajeto, soldados e milicianos passaram a reforçar o grupo, que chegou a contar com 3,5 mil combatentes. Hábil, Cochrane conseguiu que seu exército cercasse o Recife — sua ideia era forçar uma rendição de Carvalho e dos demais líderes.

Como os confederados não aceitaram, houve ataque — o primeiro, em 12 de setembro. Carvalho conseguiu fugir. Após sucessivas batalhas, com larga vantagem para os que estavam a serviço do império, o movimento foi completamente esfacelado em 29 de novembro.

A repressão é a considerada a mais violenta do período imperial brasileiro, com 31 dos revoltosos tendo sido condenados à morte — Caneca entre eles. Desses, nove conseguiram fugir e escaparam da pena capital — Carvalho entre eles. Centenas de revolucionários foram presos e não se sabe exatamente quantos foram mortos. Segundo Mello, houve "mais de uma dezena de vítimas".

"A campanha militar contra a Confederação do Equador foi extremamente violenta", avalia Missiato.

•           Projetos distintos

Martinez comenta que "permanece aberto o alcance do debate político e do pensamento constitucional na primeira metade do século 19", e a Confederação do Equador é um capítulo importante para essa discussão.

Afinal, dali poderia ter nascido um outro país latino-americano. Que não necessariamente seria republicano em sua origem, mas teria uma outra organização constitucional, seria fruto da circulação de ideias liberais.

"Os países da América latina e o Brasil, em particular, enfrentaram o desafio de ter de acertar o passo entre dois movimentos distintos, mas imbricados. De um lado, a reforma das estruturas e formas jurídico-políticas existentes e transplantadas da Europa ou mesmo dos Estados Unidos; de outro lado, tiveram que encontrar caminhos próprios, adequados às suas realidades socioeconômicas e conveniências políticas", afirma o historiador.

"Vivemos nesse labirinto, cujos habitantes mais emblemáticos foram Simón Bolívar, na América hispânica, e dom Pedro 1°, na América portuguesa. Este sonhou ser monarca absoluto no Brasil, e liderança do liberalismo político em Portugal", compara. "Sintomas sociais da incerteza e da experimentação política a que [até hoje] estão submetidas estas sociedades, em pleno século 21."

 

Fonte: Deutsche Welle

 

“Quase me matou”, diz homem viciado em alimentos ultraprocessados

O nativo de Chicago, Jeffrey Odwazny, diz que é viciado em alimentos ultraprocessados desde criança. “Eu era levado a comer e comer e comer, e embora eu exagerasse na comida saudável, o que realmente me pegava eram os doces, os bolos, as tortas, os sorvetes”, relata o ex-supervisor de armazém de 54 anos.

“Eu realmente gravitava em direção aos alimentos ultraprocessados açucarados — era como um impulso físico, eu precisava ter isso”, conta. “Meus pais encontravam sacos cheios de embalagens de doces escondidos no meu armário. Eu roubava coisas das lojas quando era criança e mais tarde como adulto.”

Cerca de 12% dos quase 73 milhões de crianças e adolescentes nos Estados Unidos hoje lutam contra um vício alimentar semelhante, de acordo com pesquisas. Para ser diagnosticado, as crianças devem atender aos critérios da Escala de Vício em Alimentos de Yale, tão rigorosos quanto qualquer um para transtorno do uso de álcool ou outros vícios.

“As crianças estão perdendo o controle e comendo a ponto de se sentirem fisicamente mal”, diz Ashley Gearhardt, professora de psicologia da Universidade de Michigan em Ann Arbor, que conduziu a pesquisa e desenvolveu a escala de vício de Yale.

“Elas têm desejos intensos e podem estar escondendo, roubando ou escondendo alimentos ultraprocessados”, disse Gearhardt. “Elas podem parar de sair com amigos ou fazer outras atividades que costumavam gostar para ficar em casa e comer, ou se sentem muito lentas por comer demais para participar de outras atividades.”

Sua pesquisa também mostra que cerca de 14% dos adultos são clinicamente viciados em alimentos, predominantemente alimentos ultraprocessados com níveis mais altos de açúcar, sal, gordura e aditivos.

Para comparação, 10,5% dos americanos com 12 anos ou mais foram diagnosticados com transtorno do uso de álcool em 2022, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde.

Embora muitas pessoas viciadas em alimentos digam que seus sintomas começaram a piorar significativamente na adolescência, alguns lembram de uma infância focada em alimentos ultraprocessados.

“Aos 2 ou 3 anos de idade, as crianças provavelmente comem mais alimentos ultraprocessados em qualquer dia do que frutas ou vegetais, especialmente se forem pobres e não tiverem dinheiro suficiente na família para ter alimentos de qualidade para comer”, disse Gearhardt. “Os alimentos ultraprocessados são baratos e literalmente estão em todos os lugares, então isso também é uma questão de justiça social.”

Um vício em alimentos ultraprocessados pode sequestrar o circuito de recompensa do cérebro jovem, colocando o “cérebro reptiliano” primitivo, ou amígdala, no comando — assim, ignorando o córtex pré-frontal, onde ocorre a tomada de decisões racionais, disse David Wiss, nutricionista registrado em Los Angeles, que se especializa no tratamento de vícios alimentares.

“O vício em alimentos ultraprocessados também ensina o cérebro jovem o que esperar da comida, como a quantidade de recompensa em açúcar que se deve obter ao comer um lanche”, disse Wiss, o que torna as opções mais saudáveis menos atraentes.

“É quase virtualmente impossível para uma criança, ou até mesmo um jovem de 14 ou 15 anos, ser capaz de superar toda essa biologia por muito tempo”, acrescentou.

O Instituto de Tecnólogos de Alimentos, uma associação de profissionais e tecnólogos de alimentos, não concorda com a pesquisa sobre o vício em alimentos ultraprocessados.

“Embora haja uma preocupação crescente de que alguns alimentos possam ser viciantes para certas subpopulações, incluindo crianças, atualmente não há consenso científico para apoiar essa preocupação”, disse o diretor de ciência e tecnologia do IFT, Bryan Hitchcock, em um e-mail.

O vício em alimentos também não é reconhecido pela Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde e é um tema de debate na comunidade científica, de acordo com a Aliança Internacional de Alimentos e Bebidas, uma associação da indústria.

“Alguns acreditam que os indicadores de vício em alimentos indicam distúrbios alimentares, em vez de transtornos por uso de substâncias”, disse o secretário-geral da IFBA, Rocco Renaldi, em um e-mail.

•           “Esse transtorno quase me matou”

Experiências traumáticas na infância ajudaram a desencadear e nutrir seu vício em alimentos ultraprocessados, disse Odwazny.

“Uma das minhas primeiras lembranças é estar em uma cadeira alta com cinzeiros passando sobre minha cabeça e pratos se espatifando nas paredes”, disse Odwazny. “Em vez de dizerem ‘sinto muito’ ou mostrarem amor, minha família me alimentava.”

No início, ele disse que seus pais achavam engraçado seu excesso de comida e começaram a chamá-lo de apelidos como “o rastejador” quando ele escapava do berço à noite para atacar a geladeira. No entanto, à medida que crescia, os pais de Odwazny começaram a colocar trancas na geladeira e nos armários da cozinha. Ele frequentemente se sentia envergonhado por causa da sua alimentação.

“Havia muitos apelidos. Eu era chamado de tudo, desde ‘bolota’ até ‘bundão’ e pior”, disse ele. “Você sabe, os pais de alguns garotos chamavam, ‘Ei, amigo ou camarada’, mas meu pai costumava me chamar de ‘a Orca’.”

Apesar de sua obsessão com a comida, Odwazny era cuidadoso para não comer demais na frente de estranhos enquanto crescia. Em vez disso, quando estava em uma festa com alimentos desencadeadores, como copos de manteiga de amendoim cobertos de chocolate, ele saía para comprar especificamente aquele alimento.

“Eu ia a uma loja até comprar tudo, e depois tinha que ir a outra loja”, disse ele. “Eu comprava dois ou três sacos de tamanho familiar e comia tanto de uma vez que ficava em um nevoeiro. Comida açucarada é uma droga para mim.”

O transtorno tomou conta da sua vida. Antes que uma refeição de alimentos altamente processados terminasse, ele já estava pensando onde encontrar a próxima. Em 2016, seu vício em comida estava no pior momento.

“Eu roubava comida ou comia coisas que estavam queimadas ou estragadas”, disse ele. “Frequentemente fiquei doente e tive que ir ao hospital. Na verdade, esse transtorno quase me matou várias vezes.”

•           O cérebro viciado em comida

Comer grandes quantidades de alimentos ultraprocessados aumenta o risco de obesidade e o desenvolvimento de condições crônicas, incluindo câncer, doenças cardiovasculares, obesidade, diabetes tipo 2 e depressão.

Ainda assim, muitas pessoas acham difícil parar de comer alimentos ultraprocessados, como cachorros-quentes, batatas fritas, biscoitos, pizza congelada, salsichas, refrigerantes, donuts, doces e sorvetes.

Os alimentos ultraprocessados frequentemente contêm sabores, diferentes texturas e “aditivos cuja função é tornar o produto final palatável ou mais atraente”, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.

Esses alimentos são projetados para maximizar os níveis do hormônio do bem-estar, a dopamina, no cérebro, dizem os especialistas. Gorduras adicionadas aumentam as calorias e melhoram a “sensação na boca” que torna a comida agradável. A textura também desempenha um papel importante.

“Alimentos que derretem na boca e são suaves ou cremosos, ou alternativamente, alimentos crocantes, podem criar uma recompensa neuroquímica imediata”, disse Wiss. “Muita ciência alimentar está envolvida nisso e muita pesquisa e desenvolvimento por parte dos fabricantes.”

Quantidades copiosas de sal melhoram o sabor. O açúcar é tão poderoso que é usado como substituto de analgésicos para cirurgias menores em bebês: “Para circuncisões ou vacinas, eles dão uma dose de açúcar aos bebês porque isso libera opioides no cérebro e alivia a dor”, disse Gearhardt.

Na verdade, estudos em animais sugerem que os níveis de açúcar em alimentos ultraprocessados podem ser tão viciantes para o cérebro quanto álcool ou tabaco, disse ela.

“Esses são estudos realmente invasivos, com fios no cérebro”, disse Gearhardt. “O açúcar cria a mesma quantidade de liberação de dopamina que imita o que você vê com nicotina e etanol — cerca de 150% a 200% acima do nível basal.

“A cocaína é muito mais viciante, entre 1.000% e 2.000% acima do nível basal”, disse ela. “Mas os animais ainda frequentemente escolhem um sabor doce em vez de cocaína.”

Os fabricantes de alimentos ultraprocessados se esforçam para alcançar esse “ponto de felicidade” da dopamina por meio de misturas secretas e proprietárias de açúcar, gordura, sal e aditivos de sabor que, segundo os especialistas, desencadeiam nossos instintos animais mais básicos — a necessidade de sobrevivência.

“Se há uma refeição de alto valor na sua frente, algo rico e gorduroso que tem muitas calorias, o cérebro está programado para dizer, ‘Vá em frente e coma’, mesmo que você esteja cheio porque nossos ancestrais não tinham garantia de encontrar comida no dia seguinte”, disse a especialista em apetite Alexandra DiFeliceantonio, professora assistente da Virginia Tech em Blacksburg.

O cérebro também está programado para lembrar e desejar o sabor agradável de um alimento e suas calorias que salvam vidas em um processo semelhante ao condicionamento pavloviano ou clássico, disse DiFeliceantonio, que também é diretora associada do Centro de Pesquisa de Comportamentos de Saúde da Virginia Tech.

“É o que todos aprendemos em Psicologia 101, certo? A luz acende; a comida cai; o cão saliva”, disse ela.

•           O processamento de alimentos desempenha um papel

Como os alimentos ultraprocessados são feitos pode também contribuir para o vício, dizem os especialistas. Devido aos métodos de fabricação que quebram as estruturas celulares dos alimentos — essencialmente pré-digerindo o alimento — muitos alimentos ultraprocessados passam rapidamente pelo trato gastrointestinal humano.

Isso é confuso para um sistema digestivo projetado para quebrar lentamente alimentos integrais que foram rasgados e mastigados, e para um cérebro que está acostumado a receber uma recompensa lenta.

Com os alimentos ultraprocessados, o cérebro recebe surtos de prazer quase tão rapidamente quanto o alimento é consumido, disse DiFeliceantonio.

“A maioria das calorias utilizáveis, intensificadas por sabores intensos de quaisquer aditivos que estejam ali, são rapidamente despejadas no intestino superior, enviando sinais ao cérebro de uma vez”, disse ela. “Isso acontece muito rapidamente e de maneira muito intensa.”

O resultado, dizem os especialistas, é um cérebro que não reconhece as calorias ultraprocessadas como saciantes. Isso, junto com a enxurrada de dopamina, pode ser uma razão pela qual o cérebro tem dificuldade em dizer “Pare!” aos alimentos ultraprocessados.

“Esses alimentos parecem deixar nosso cérebro em um estado de vulnerabilidade perpétua a substâncias recompensadoras e nunca se sentindo nutrido ou saciado”, disse Gearhardt.

A nutrição é outro problema. Alimentos ultraprocessados frequentemente carecem de nutrientes críticos que o corpo necessita, o que é especialmente importante durante a infância, quando o cérebro e o corpo estão crescendo.

“O que resta após todo o calor intenso e manipulação necessários para criar os alimentos ultraprocessados são os macronutrientes — as calorias, os carboidratos, as gorduras e, às vezes, um pouco de proteína”, disse Wiss.

“Os micronutrientes são tipicamente destruídos, o que inclui as vitaminas, minerais e compostos antioxidantes que são conhecidos por conferir benefícios à saúde”, disse ele. “Crianças que comem muitos alimentos ultraprocessados podem estar mal nutridas.”

No entanto, de acordo com a Aliança Internacional de Alimentos e Bebidas, não existe uma definição clara, objetiva, confiável ou cientificamente validada para “alimento ultraprocessado”.

“É um conceito abrangente, não científico, que não leva em conta adequadamente as diferenças nutricionais nos produtos: a evidência científica até o momento, e acordada por muitas autoridades internacionalmente, é que, em última análise, é a composição nutricional dos alimentos e da dieta de um indivíduo que importa”, disse Renaldi da IFBA.

•           “Nossa doença quer que fiquemos separados”

Superar seu vício em comida — e mais tarde em álcool — tem sido uma jornada difícil para Odwazny. Em uma tentativa de controlar sua alimentação, ele passou por duas cirurgias bariátricas que geralmente têm uma alta taxa de sucesso.

“Cada vez eu rezava: ‘Por favor, que seja isso, por favor, que seja a resposta.’ Mas eu acabava voltando a me empanturrar de alimentos ultraprocessados”, disse Odwazny.

“Aquelas cirurgias estavam operando na parte errada do meu corpo, no meu estômago, mas meu transtorno alimentar está bem aqui”, disse ele, batendo na cabeça.

Miserável e tão acima do peso que não podia mais fazer seu trabalho, Odwazny entrou em licença por invalidez de curto prazo e se internou em uma clínica de reabilitação para transtorno de compulsão alimentar. Esse plano de tratamento não funcionou, então ele tentou outro, e depois outro.

Finalmente, ele encontrou um programa que combinava tratamento tradicional para transtorno de compulsão alimentar com um para vício em comida. Ouvir outros pacientes e a equipe falarem sobre seus próprios problemas com a comida foi transformador, disse Odwazny.

“Nossa doença quer que fiquemos separados”, disse ele. “Nossa doença quer que não façamos parte de outra coisa, porque queremos nos isolar e pensar que somos os únicos. Mas quando ouvi a equipe e alguns dos médicos falarem sobre seus próprios vícios, soube que as pessoas que estavam me tratando finalmente entenderam.”

Um programa que incorpora intervenções para vício em comida com tratamento para transtornos alimentares restritivos é relativamente novo e um tanto controverso, disse a especialista em vícios alimentares Dr. Kimberly Dennis, que é cofundadora, CEO e diretora médica da SunCloud Health em Chicago, onde Odwazny está em tratamento.

“O tratamento para um transtorno alimentar restritivo, como compulsão alimentar ou bulimia, foca em ajudar a pessoa a superar qualquer aversão à comida”, disse Dennis, que também é professora assistente clínica de psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade de Illinois em Chicago.

“Assim que uma pessoa diz: ‘Eu não posso comer esse doce com segurança,’ o terapeuta de transtorno alimentar diz: ‘Isso é apenas o transtorno alimentar falando, todos os alimentos estão bem e nada está fora dos limites.’”

Esse tratamento é um padrão de ouro para alguém que está evitando comida e desnutrido, disse Dennis, que está em recuperação de vício em comida e transtorno de compulsão alimentar. “Então, um donut no café da manhã, um cupcake no almoço e biscoitos como lanche da tarde seriam um desafio muito bom para essa pessoa.”

No entanto, se essa pessoa também tem um vício em comida, essa abordagem pode fazê-la desistir do tratamento, disse ela. “A experiência dela ao comer aquele cupcake seria mais parecida com: ‘Eu me sinto muito desencadeado e preocupado que, se eu fizesse isso em casa, já teria acabado com toda a caixa de cupcakes.’”

Hoje, Odwazny está em recuperação e estudando para se tornar um conselheiro certificado em álcool e drogas na área de Chicago. Ele atribui grande parte do seu sucesso à sua esposa, Kimmy, que conheceu durante a pandemia de Covid-19 enquanto participava de grupos de apoio na SunCloud.

“Minha esposa também está no programa, então ambos conhecemos nossos planos alimentares. Minha esposa e eu fazemos nossas refeições juntos — não há furtos, não há esconderijos. Eu não me empanturro, mas também há certos alimentos que não como”, disse ele.

“Antes de estar em recuperação, eu nunca poderia imaginar que teria uma esposa tão bonita que me ama, porque ninguém me amava. Hoje estou livre.”

 

Fonte: CNN Brasil