segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

VIOLAÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS DE COMUNIDADES RIBEIRINHAS NO PARÁ

Em dezembro de 1989, o governo federal criou a Floresta Nacional de Saracá-Taquera (Flona) no município de Oriximiná (PA). Flona é uma modalidade de unidade de conservação (UC) que, de acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), permite, a partir de suas concessões minerais e madeireiras, a exploração de recursos naturais em escala industrial, comercializando-os, sob a lógica de commodities, para o Brasil e para o exterior.

As concessões minerais e madeireiras, localizadas dentro dos limites da Flona de Saracá-Taquera, sobrepõem-se, em parte significativa, às áreas de uso direto das comunidades ribeirinhas e quilombolas que ocupam os vales do Rio Trombetas, usadas tanto para agricultura como para extrativismos em geral – caça, pesca e extração de madeira, palhas, resinas, frutos etc. A ocupação quilombola na região remete aos tempos coloniais, e as comunidades ribeirinhas estudadas, sobretudo a Boa Nova e a Saracá, ocupam as suas áreas de uso há, no mínimo, quatro gerações. Essas ocupações ribeirinhas remontam ao tempo dos bisavós e avós dos moradores atuais, conformando uma ocupação, assim como a quilombola, centenária (Affonso, 2018).

Quando a Flona foi criada, pelo Decreto n. 98.704, com área aproximada de 429.600 hectares, além de comunidades tradicionais centenárias, havia, dentro de seus limites, o maior projeto nacional de exploração de bauxita desde a década de 1970, operado pela Mineração Rio do Norte (MRN). A partir da Lei de Gestão de Florestas Públicas (LGFP n. 11.284) de 2006, grandes porções de florestas públicas são concedidas a empresas madeireiras, com o direito de serem exploradas industrialmente, por até 40 anos, regulamentando, assim, as chamadas concessões florestais.

Em 2002, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) elaborou o primeiro plano de manejo (PM) da Flona. Esse documento norteia a gestão da UC. A gestão da Flona de Saracá-Taquera é realizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que a subdivide em diversas zonas. Dentre elas, destacamos as zonas de mineração, produção florestal e populacional. À zona de mineração e exploração de madeira são destinados 69,1% da área total da Flona. À zona populacional são destinados 10.690,75 hectares, o que representa apenas 2,49% de sua área total. Entretanto, o reconhecimento e delimitação da zona populacional, que “é aquela que compreende a moradia das populações tradicionais residentes dentro da Floresta Nacional, incluindo os espaços e o uso da terra, necessários à reprodução de seu modo de vida” (MMA, 2009, p. 37), continuam sendo ineficazes e contraditórios diante da realidade local.

No momento da elaboração do plano de manejo, a zona populacional abrangeu apenas uma faixa de aproximadamente dois quilômetros, que acompanha a margem direita do Rio Trombetas, onde residem somente comunidades quilombolas. As comunidades ribeirinhas não foram abrangidas.

Em 2010, por meio da Portaria Iterpa n. 729, foi publicado no Diário Oficial do Estado do Pará a criação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Sapucuá-Trombetas que, por sua vez, abrigava áreas contíguas à Flona ocupadas por comunidades ribeirinhas residentes no baixo Rio Trombetas, no Lago do Sapucuá e no Lago Maria Pixi.

O PAE Sapucuá-Trombetas contempla somente as áreas de moradia e algumas áreas de roçado dos ribeirinhos. As áreas de caça, pesca, cultivos e extrativismos em geral (de frutos, madeira, palha, cipós, óleos, resinas, cascas de árvores etc.) – chamadas de pontos de trabalho – ficaram de fora das áreas do assentamento e, desde 1989, são parte da Flona. Até o momento, as áreas de uso direto das comunidades tradicionais ribeirinhas dentro dos limites da unidade de conservação não são reconhecidas no plano de manejo. Seu Brasilino Lopes, da comunidade ribeirinha Boa Nova, lembra-se de quando foi morar com a sua mãe na comunidade vizinha, Castanhal, e não pôde voltar para o lugar em que havia nascido e crescido por causa da criação da Flona: “Aqui [no igarapé Araticum] eu nasci, aqui eu me criei. Daqui eu fui para lá com a mamãe, morava lá. […] De lá eu voltei. Ela foi pra Oriximiná e eu vim para cá, para nossa terra. Quando eu cheguei eu não pude mais estar lá naquele lugar, porque já tinha esse impasse, né, da Flona. Quem entrasse de recente […] ia ser punido”. A proibição de uso mediante emissão de multas afastou alguns moradores de seus pontos de trabalho. O que torna essa realidade uma verdadeira violação de direitos é o fato de que essas comunidades não foram ouvidas no momento do traçado do zoneamento, o que nitidamente viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura a oitiva aos povos e comunidades tradicionais nesses casos.

•        A CONJUNÇÃO DE FISCALIZAÇÃO PÚBLICA E A EXPANSÃO PRIVADA

O órgão ambiental gestor da Flona segue embargando, autuando e emitindo multas aos moradores locais que trabalham dentro dos limites da UC. Em março de 2021, o ICMBio realizou uma operação de fiscalização denominada “Operação Caipora”. Nessa ocasião, três ribeirinhos das comunidades do Lago do Maria Pixi, localidade compreendida dentro dos limites do assentamento, foram multados e autuados por abrirem áreas de roça e/ou por praticarem extrativismo de madeira dentro dos limites da Flona. Foi constatado em campo que uma das áreas autuadas estava dentro dos limites do PAE, logo, fora dos limites da UC. Na esteira dessa operação, segundo relatos dos moradores locais, o ICMBio autuou e multou, também, os ribeirinhos da comunidade Macedônia. Eles apresentavam as mesmas práticas – aberturas de roças e/ou extrativismo de madeira. A diferença é que, agora, não se tratava de áreas próximas à mineração, e sim, à madeireira.

Entretanto, próximo às áreas autuadas pela Operação Caipora, existe a Serra do Aramã, platô de bauxita inicialmente explorado pela Mineração Rio Norte em 2020, e com as suas operações de exploração já finalizadas. O que a empresa mineradora denomina de platô, os ribeirinhos chamam de serra, local em que é praticada a caça, o extrativismo de frutos e onde encontram-se diversas nascentes que alimentam os igarapés ocupados pelas comunidades.

Não podemos afirmar que as operações de fiscalização do ICMBio e o avanço das empresas de exploração de recursos naturais – mineral e madeireiro – estão diretamente relacionados, contudo, podemos garantir que esse não é um caso isolado. Em 2011, o platô a ser explorado pela empresa mineradora era o Bacaba, vizinho ao platô Almeidas – serra onde existia um castanhal denominado pelas comunidades ribeirinhas de “Castanhal do Almeidas”. No mesmo ano, em uma operação de fiscalização, sr. Domingos Gomes, morador da comunidade Boa Nova, por trabalhar com agricultura em áreas próximas ao platô, contraiu a maior dívida de sua vida; foi multado em R$ 108 mil pela abertura de cerca de nove hectares de roça.

Jesi Ferreira de Castro, morador da comunidade São Francisco, situada no Lago Maria Pixi: “Tiraram meia vida do pessoal do Sapucuá, arrancaram uma banda do coração deles. Aquele castanhal era o sustento de muitas famílias”.  Com a exploração do Castanhal do Almeidas, as famílias ribeirinhas da comunidade Boa Nova, e de outras, deixaram de ter uma de suas principais fontes de renda: o extrativismo da castanha.

Além das sobreposições existentes entre as áreas historicamente utilizadas pelas famílias e as áreas de exploração mineral e madeireira, outro impacto recorrente é o comprometimento da qualidade das águas dos igarapés. Tanto a mineradora quanto a madeireira constroem pontes sob os igarapés para atender à logística de escoamento dos recursos naturais explorados. Dessa forma, a construção dessas estradas contribui para o assoreamento do rio. Há repetidos relatos dos ribeirinhos de que a partir da exploração mineral das serras observou-se uma coloração mais alaranjada nas águas dos igarapés, aparentemente como a cor da bauxita.

A partir das multas emitidas pelo ICMBio e da exploração mineral do platô Aramã, pela MRN, a comunidade São Francisco se viu impossibilitada de trabalhar dentro da Flona, principalmente no extrativismo de madeira e de frutos, de acordo com o professor Antônio Bó, fundador da igreja e primeiro coordenador da comunidade. “Ficamos sem o minério, sem a floresta e sem os animais”.

•        ACUMULAÇÃO CONTEMPORÂNEA E O SELO DE SUSTENTABILIDADE

Jesi relata que a sua comunidade só ficou ciente da exploração mineral do platô Aramã a partir do barulho provocado pelo maquinário da empresa. Por causa da exploração da serra pela mineradora, os moradores observaram os seguintes impactos:

(i)      comprometimento na atividade de caça;

(ii)      (processo de afugentamento dos animais – houve o caso de onças que baixavam a áreas próximas às comunidades, relatos de que macacos se alimentavam das roças de jerimum dos comunitários, dentre outros; e,

(iii)     avermelhamento das águas. Sobre os impactos ao igarapé Aramã, Jesi afirma que as suas águas ficaram avermelhadas e relata também que, na beira do canal, é possível observar “o sujo”.

Podemos compreender o processo descrito como de acumulação primitiva de capital, noção formulada, inicialmente, por Karl Marx. Mesmo que as comunidades não sejam necessariamente deslocadas fisicamente, e nem sejam obrigadas a trabalhar de forma assalariada, sua existência é submetida a esse processo praticado pelo Estado e pelas mineradoras e madeireiras.

Tal processo ocorre a partir de três fatores: (i) não reconhecimento das áreas de uso direto das comunidades ribeirinhas no plano de manejo da Flona de Saracá-Taquera; (ii) aplicação de multas (pelo órgão ambiental gestor), restringindo e proibindo o uso, dentro dos limites da Flona de Saracá-Taquera, aos ribeirinhos e (iii) concessão e licenças de operação à mineradora e madeireira, para que explorem os recursos naturais presentes nos platôs/serras de seus interesses, até sua exaustão que, não raro, sobrepõem-se às áreas de uso das comunidades e comprometem a qualidade da água dos recursos hídricos em razão, principalmente, da construção de estradas sob igarapés e possivelmente a outros fatores. Trata-se de um verdadeiro cerco das terras de uso comum, o que expropria as comunidades dos seus meios de sustento e modo de vida.

“Depois que a Flona chegou, ela veio querer proibir da gente tirar madeira, de caçar”, afirma o ribeirinho Jesi, que contempla somente algumas, dentre muitas, das violações de direitos amargadas por sua comunidade. Na comunidade Macedônia, seu Zé Maria, ex-coordenador comunitário, aponta a seguinte ironia: hoje, a madeireira está explorando árvores que ele mesmo havia plantado, em uma área em que hoje ele é proibido de trabalhar.

Em relação à mineração, a MRN não consulta as comunidades, explora os recursos minerais e gera impactos às águas e às áreas de caça dos moradores locais. O governo criminaliza os comunitários, e, por fim, a empresa recebe o selo da Aluminium Stewardship Initiative (ASI) no padrão Performance Standard e no padrão de Cadeia de Custódia (CoC). Essa certificação é uma iniciativa global de sustentabilidade voluntária e, apesar das queixas das comunidades locais, abre as portas a um aumento de investimentos internacionais. A prova disso veio na forma da Glencore, sediada no Reino Unido/Suíça, que comprou 45% das ações da MRN, a um custo imediato de US$ 700 milhões, em abril de 2023. Podemos estabelecer aqui um diálogo com as formulações teóricas de Backhouse (2013) sobre a noção de “green grabbing” e o conceito de acumulação contínua de capital. Partindo da narrativa de uma mineração supostamente sustentável, a empresa se apresenta como um possível vetor de expropriação de comunidades ribeirinhas e explora, em escala industrial, recursos minerais sob a lógica de commodities dentro de uma unidade de conservação que não reconhece o grupo social estudado como sujeito de direitos.

Esse caso por nós aqui abordado é um dentre muitos que se repetem Brasil afora. O desrespeito às comunidades tradicionais e seus territórios é uma engrenagem da acumulação capitalista que tem no Estado um grande viabilizador. Para mudar essa lógica será preciso mais do que um verniz sustentável da indústria extrativa no Brasil. Será preciso transformar também a lógica de inserção do Brasil nas cadeias globais de valor.

 

Fonte: Por Hugo Gravina Affonso, Yamila Goldfarb, Thaís Borges, Mauricio Torres e Brian Garvey, para o Le Monde

 

 

Nenhum comentário: