Tuberculose: a primeira e última comunhão
A Primeira e Última Comunhão, pintura a óleo do
artista venezuelano Cristóbal Rojas, mostra um recinto desalentador e tomado
pela desesperança, na qual uma menina, de roupas brancas e reclinada em uma
poltrona vermelha, recebe a primeira e provavelmente última comunhão. Em sua
face emergem sinais de uma tuberculose de alto grau consumptivo, que a condena
à expressão caquética, devastada, à espera do fim. A comunhão, na obra,
torna-se um ato para o sacramento da morte. Em 1890, o próprio Rojas deixa o mundo
em decorrência da tuberculose.
A tuberculose, retratada há séculos no universo das
artes, é uma das doenças mais antigas do mundo. Descoberta em 1882 pelo
bacteriologista alemão Robert Koch, seus resquícios foram encontrados em ossos
humanos pré-históricos na Alemanha e há registros datados de 8.000 anos antes
de Cristo. Desconhecida na época, a doença era compreendida como um castigo
divino, e só foi desmistificada por Hipócrates, na Grécia, no século IV antes
de Cristo. A tuberculose passou a ser considerada algo natural e chamada de Tísica,
e sua expansão se deu com o advento das guerras, que estreitavam o contato
entre pessoas.
A doença passou a ser melhor compreendida nos
séculos XVII com o surgimento da Anatomia, recebendo seu nome atual. A partir
do final do século XVIII, a enfermidade foi vinculada a duas representações:
como uma doença romântica, que acometia poetas e intelectuais; e uma
enfermidade vinculada ao mal social, visão que permaneceu no século XX. Desde o
século XIX a doença foi tratada com a terapêutica higieno-dietética, que
consistia em boa alimentação, repouso e isolamento. Para isso, os pacientes
eram reclusos em sanatórios, distante do convívio com a sociedade.
Embora a prevenção e o tratamento da doença tenham
evoluído nas últimas décadas, ainda muitas pessoas morrem por tuberculose. Só
em 2020, acometeu 9,9 milhões de pessoas no mundo e foi responsável por 1,3
milhão de óbitos. Até 2019, a doença era a primeira causa de óbito por um
único agente infeccioso. No Brasil, em 2021, foram notificados 68.271 casos
novos, o que equivale a 32 casos por 100 mil habitantes. Ainda, 4.543 foram a
óbito no país em 2020, o que corresponde a 2,1 óbitos a cada 100 mil habitantes
(WHO, 2021).
Os números mostram que tratar do tema é urgente.
Para a Organização Humanitária Internacional Médicos Sem Fronteiras, é
essencial que as corporações norte-americanas Johnson & Johnson e Cepheid
tomem medidas robustas para melhorar o acesso à bedaquilina – medicamento para
tuberculose – e ao teste para diagnóstico GeneXpert. Essas ferramentas médicas
precisam ser disponibilizadas para todos que precisem delas, onde houver
necessidade, ressalta Francisco Viegas, assessor de inovação médica da Campanha
de Acesso de Médicos Sem Fronteiras.
Segundo Viegas, a bedaquilina,
medicamento desenvolvido pela Johnson & Johnson, é o principal remédio
recomendado pela Organização Mundial da Saúde para regimes de tratamento contra
a tuberculose resistente a medicamentos, o que permite um tratamento melhor,
mais curto, mais tolerável e mais eficaz para pessoas com essa forma da doença.
No entanto, o acesso em muitos países a versões genéricas acessíveis do
medicamento continua bloqueado pelas “patentes secundárias” adicionais que a
empresa obteve. A prática de registrar patentes adicionais de medicamentos,
conhecida como evergreening, para estender o monopólio sobre
o remédio, é
revoltante, uma vez que o investimento público para o desenvolvimento da
bedaquilina foi até cinco vezes maior do que o da própria corporação.
Recentemente, a Johnson & Johnson anunciou um
acordo com a Stop TB Partnership/Global Drug Facility – que é um mecanismo
global de medicamentos – permitindo o acesso a genéricos em muitos países e
anunciou uma queda de preço do tratamento de seis meses para US$ 130. No
entanto, o acordo ainda exclui países com alta carga de tuberculose, e a
Johnson & Johnson detém o poder para decidir quais localidades serão
beneficiadas e quais serão os laboratórios autorizados a produzir o
medicamento. Com isso, algumas nações ficaram de fora da lista, que, de certa
forma, manteve muito controle sobre o produto. Por exemplo, muitos países do
Leste europeu não serão beneficiados.
Já a tecnologia de testes de diagnóstico GeneXpert,
produzida pela empresa norte-americana Cepheid, revolucionou o teste de
tuberculose desde que entrou no mercado, em 2010. Contudo, por causa do alto
preço, ampliar a testagem da doença para todas as pessoas que necessitam segue
um desafio, que força muitas localidades a utilizar testes mais baratos, mas
menos sensíveis. Estima-se que custa à Cepheid menos de US$ 5 para fabricar um
teste de tuberculose GeneXpert. Enquanto isso, a empresa tem cobrado de Médicos
Sem Fronteiras e de países de baixa e média renda até o triplo desse preço. Com
base nisso, Médicos Sem
Fronteiras fez um apelo para que a Cepheid reduzisse o preço da unidade de
cartucho GeneXpert para US$ 5 para todos os tipos de doenças. No entanto, a
empresa anunciou uma redução de apenas 20%.
Os avanços no cuidado à tuberculose são notáveis
nos últimos anos, mas ainda há muito a ser feito. Viegas aponta que continuarão
a pressão pública e o monitoramento se as promessas feitas em relação à
bedaquilina serão cumpridas em termos de acesso concreto, observando se algum
país encontrará barreira para obter o medicamento a um preço mais justo e se
houve de fato redução do valor dos testes para diagnóstico. É preciso um maior
monitoramento da sociedade para ver se essas promessas serão cumpridas.
Cristóbal Rojas tinha razão. Entre o mercado e o
direito à vida, entre a primeira e a última comunhão, há ainda muita gente à
espera do sacramento, moribundas no leito da morte pela falta de acesso a
direitos básicos: diagnóstico e tratamento. É preciso resistir.
Fonte: Por Roger Flores Ceccon, no Le Monde
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