Por que o decreto de Milei revogou a Lei de Terras: o lítio, a água e o
solo como itens privados
Ágil e incisiva, Mirtha Legrand passou um
sábado à noite com Javier Milei e Patricia Bullrich, onde quase tudo girava em
torno de tocar em assuntos delicados.
–E o lítio? Há muito lítio em Jujuy… — provocou a
apresentadora.
–Bem, uma das coisas que aconteceu é que Elon Musk
me ligou. Ele está extremamente interessado no lítio. E o governo dos Estados
Unidos também está muito interessado, assim como muitas empresas americanas,
mas eles precisam de um marco jurídico que respeite os direitos de propriedade
— respondeu o Presidente com um sorriso e orgulho evidente.
O breve comentário de Milei deixa claro por que uma
das disposições do mega DNU 70/2023 é revogar a chamada Lei de Terras (26.737):
o objetivo é permitir a estrangeirização da terra para entregar os recursos
naturais da Argentina a outros países, corporações econômicas e financeiras,
poderosos do mundo e capitais desconhecidos. O lítio é um deles, mas até a água
está em jogo, assim como os direitos dos povos indígenas e até a produção
agropecuária em áreas chave.
O que é a Lei de Terras?
É uma lei de 2011 que estabeleceu limites à
propriedade e posse de terras rurais por pessoas físicas e jurídicas
estrangeiras que procuram aproveitar as riquezas argentinas. Estabelece que
apenas 15% das terras podem estar nas mãos de estrangeiros; um mesmo
proprietário estrangeiro não pode exceder 30% desse percentual, nem possuir
mais de 1000 hectares na zona agrícola núcleo (as terras mais produtivas) ou
seus equivalentes. Proíbe a venda para estrangeiros de terras “que contenham ou
sejam ribeirinhas de corpos de água significativos e permanentes”: mares, rios,
córregos, lagos, pântanos, lagoas, estuários, glaciares, aquíferos. A mesma
restrição aplica-se a “propriedades localizadas em zonas de segurança de
fronteira”. As compras e vendas devem ser autorizadas pelo Estado e criou-se um
Registro de Terras.
“Esta lei foi o resultado de anos de luta por parte
de organizações agrárias, ambientalistas e sociais e de partidos políticos.
Colocou um freio no processo de estrangeirização que se aprofundou nos anos
noventa com leis permissivas que permitiram que muitos grupos de investimento
estrangeiro, até mesmo aproveitando ofertas na internet que promoviam a venda
de terras com costas de rios e lagos, comprassem e colocassem cercas, portões e
fechassem passagens públicas, como o caso emblemático do Lago Escondido, que
não é o único. Isso se estendeu para o resto da Argentina. Esta lei está na
mira dos empresários estrangeiros, principalmente árabes”, explica a Página/12
Magdalena Odarda, advogada, Mestre em Políticas Públicas e Governo e
legisladora provincial de Río Negro (Bloco Vamos con Todos). Odarda lembra que
Mauricio Macri flexibilizou os controles por decreto, ao levantar as
regulamentações sobre as informações que deveriam ser apresentadas ao registro.
Isso permitiu a transferência de ações a estrangeiros sem controle. Se
permanecer, o DNU eliminará tudo.
“A lei de terras que se busca revogar foi
sancionada para impedir a estrangeirização dos bens naturais e evitar que bens
de domínio público que possuem um papel estratégico em termos de
desenvolvimento econômico, bem-estar social, cuidado ambiental, proteção de
corpos de água, direitos fundamentais dos povos indígenas e reivindicação da
soberania nacional sejam colocados em risco”, diz um texto do Centro de
Políticas Públicas para o Socialismo, que não vê motivos de necessidade e
urgência para sua revogação.
·
O lítio
O lítio é um mineral que é obtido de rochas ou
salinas de altitude. Na Argentina, ele é extraído em áreas da puna (em Jujuy,
Catamarca e Salta). É um insumo para a fabricação de baterias para veículos
elétricos e celulares, daí sua alta demanda. Também é usado para armazenar
energia renovável. Cerca da metade da reserva mundial de lítio está no
“triângulo do lítio” formado por Argentina, Bolívia e Chile. Em 2022, o país
aumentou as exportações de lítio em mais de 230 por cento. É o quarto produtor
mundial.
Entre a possibilidade de venda de terras e a ideia
de privatizar a YPF (e com isso a YPF Litio e a Y-Tec), por exemplo, o que
estava planejado como contribuição para as economias regionais e negócio
estratégico local iria para mãos privadas e/ou estrangeiras. Em outubro
passado, foi anunciada a primeira fábrica de baterias de lítio em um projeto do
Ministério da Ciência e Tecnologia e da Universidade Nacional de La Plata. A
YPF também havia assinado um acordo com a Catamarca Minera y Energética
Sociedad del Estado para exploração em Tinogasta. Um ponto central: os recursos
são das províncias e é necessária autorização para explorá-los. A compra de
terras, com a lei revogada, estará liberada. O conjunto é uma porta para as
negociações. A experiência em Jujuy mostrou que o ex-governador Gerardo Morales
organizou uma reforma constitucional que visava flexibilizar a exploração do
lítio, em detrimento dos povos indígenas e da gestão da água.
Aqui vem o outro lado da questão. “Quando Milei se
refere a Elon Musk e ao lítio, devemos ter em mente os direitos dos povos
indígenas e a reivindicação sobre o direito à consulta prévia, livre e
informada e o direito de decidir sobre seus territórios. Nas províncias com
zonas úmidas andinas, as reivindicações giram em torno das falhas nos padrões
de participação e de direitos humanos”, diz Florencia Gómez, ex-diretora do
Registro Nacional de Terras Rurais. A advogada lembra que há uma medida
cautelar na Suprema Corte desde 2019, onde “as comunidades de Salinas Grandes e
Laguna de Guayatayoc, juntamente com a Fundação Ambiente e Recursos Naturais,
alertaram sobre o dano irreversível que a mineração de lítio e borato
provocará”. Em março, o tribunal pediu informações sobre permissões de
exploração e explotação, mas não resolveu o mérito.
·
A água
“A estrangeirização da terra facilitaria a
estrangeirização dos recursos naturais de fato”, aponta Gómez, que considera a
Lei de Terras essencial para o desenvolvimento humano. A revogação da lei
estaria alinhada com a estrangeirização da água, algo que já ocorre na prática.
A água não poderia ser apropriada por privados, mas sim o acesso a ela.
O exemplo paradigmático é o de Joe Lewis, que, com
a conivência da província de Río Negro e do Poder Judiciário, além de seu
exército parapolicial, bloqueou o acesso ao Lago Escondido. O magnata é
investigado nos Estados Unidos, mas não na Argentina. Pior: o ex-titular da
Inspeção Geral de Justiça, Ricardo Nissen, que solicitou a intervenção da
empresa “Hidden Lake SA” de Lewis, proprietária de 12.000 hectares que contêm o
lago, será investigado por uma ordem da Câmara Federal da semana passada. Em
novembro, ainda sob Nissen, a IGJ proibiu no país a Fundação Humedales de Paul
Tudor Jones II, considerando-a uma fachada para se apropriar dos Esteros del
Iberá e outras áreas protegidas de banhados, esteros, lagoas e arroios.
Quando dirigia a Unidade de Informação Financeira,
Carlos Cruz solicitou informações sobre a titularidade dos portos do rio
Paraná. “Era para saber se estavam habilitados, se eram estrangeiros, quem os
explorava, a documentação dos sócios. Não tivemos resposta. Pelo corredor
litorâneo passam 80% das exportações argentinas. Operam cerca de uma dezena de
empresas estrangeiras e buscávamos ver se eram donas dos territórios
ribeirinhos”, explica. Cruz, titular da Associação de Advogados/as de Buenos
Aires, alerta: “Esta via fluvial sem controles é, além disso, usada para
narcotráfico, tráfico de pessoas, contrabando. Se a lei de terras for revogada,
as empresas estrangeiras poderão comprar legalmente a parte ribeirinha e
controlar este corredor com implicações geopolíticas. Até mesmo se quiserem,
poderão estabelecer uma base de distribuição de drogas”.
Ø Estudiosos
argentinos e brasileiros decifram a estratégica político-religiosa de Milei
Sem o mesmo apelo de seu parça Jair Bolsonaro sobre
a periferia evangélica, menos numerosa, mas crescente na Argentina empobrecida,
o presidente de ultradireita argentino Javier Milei já pegou a deixa: está ali
seu bolsão político, gente conservadora e anticomunista (ou antiperonista, na
versão local da paranóia antipetista), que conquistada pode ser o fiel da
balança com os católicos, maioria no país. Se somarmos a isso os influentes
judeus, Milei tem seu mapa eleitoral-político.
“Tenho acompanhado com atenção como Milei tem se
mostrado religiosamente”, relata ao DCM o pesquisador Ronaldo de
Almeida, coordenador do Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp e
pesquisador do Cebrap (Centro Brasiliro de Análise e Planejamento). “Vejo
muitas performances com a simbologia judaica, cuja presença na Argentina é
bastante significativa. O enfoque no judaísmo atrai um sionismo do meio
evangélico”.
Nenhum outro país na América Latina acolheu tantos
judeus europeus em fuga do nazismo quanto a Argentina. Até hoje, a cultura
judaica marca o dia a dia do país, especialmente o de Buenos Aires. A capital
argentina possui a maior concentração judaica do país, com 250 mil integrantes
da comunidade, isto é, 8% da população total portenha. No total, a comunidade
judaica argentina, a maior da América Latina, é a sétima maior do mundo fora de
Israel.
“Milei, consciente ou inconscientemente, mobilizou
a sociedade argentina. Milei se diz católico, mas tem uma vocação mística
pessoal. Mas a questão é seu projeto secreto, como ele vê a relação entre voto
e fé. A Argentina, não sendo judia, viu no judaísmo um valor, e isso pesa”, diz
o professor.
Tradicionalmente uma nação de forte maioria
católica, a Argentina passa também por uma mudança na sua configuração
religiosa que lembra a do Brasil. “Ninguém na Argentina está preparado para
tudo de ruim que está por vir”, diz ao DCM o sociólogo e antropólogo
argentino Pablo Semán, especializado em religião e cultura popular.
Ele vislumbra um pacto passional como os
argentinos, que já foram peronistas, mas encontrararam em Milei seu candidato
ideal: é anti-comunista ferrenho e tem a pauta conservadora dos sonhos. De
quebra, promete transferir a administração da assistência social dos grupos que
atualmente a têm para outros, e é aí que esses pastores poderiam se encaixar.
“Libertário”, Milei avilta publicamente o Papa
Francisco – argentino, de Buenos Aires -, a quem já chamou de “homem do diabo
na Terra” -, ao mesmo tempo em que tem conselheiros de outras religiões, um
evangélico e outro rabino, “para orar por sua gestão”.
No campo evangélico, o confidente de Milei é o
pastor evangélico Christian Hooft, presidente da ACIERA, Aliança Cristã de
Igrejas Evangélicas da República Argentina, que entre os hermanos representa
mais de 15 mil congregações no país.
Embora católicos, anglicanos, rabinos e até um
representante da comunidade islâmica tenham sido convidados para a cerimônia
inter-religiosa na Catedral de Buenos Aires após sua posse no Congresso, Milei
mirava a ACIERA. “Deus diz a você: Argentina, não tenha medo, levante-se”,
disse o pastor Hooft, que, após trocar afagos com Milei, prometeu que todas as
suas igrejas vão orar, conforme manda a Bíblia, “por todo o seu gabinete de
ministros”. Não é uma mensagem qualquer.
O apoio evangélico a Milei acontece apesar de ele
não se encaixar no molde típico de um candidato religioso. Conhecido por sua
linguagem grosseira e falta de frequência a eventos religiosos, afirma se
comunicar mediunicamente com seu cachorro falecido, Conan. Essa incongruência
sugere que o apoio dos evangélicos a Milei não se baseia em afinidades
religiosas, mas sim em um forte rechaço à esquerda.
E aí está o pulo do gato. De acordo com a última
Pesquisa Nacional sobre Crenças e Atitudes Religiosas, o número de argentinos
que se identificam como cristãos evangélicos passou de 9% em 2008 para 15,3% em
2019, números que estudiosos hoje admitem passar de 20%.
Paralelamente, a parcela da população que se
identifica com o Catolicismo caiu de 76,5% para 62,5% no mesmo período, uma
queda livre, como a que experimentamos aqui. Um estudo do Ipea (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada), mostrou que em 2021, as 87,5 mil igrejas
evangélicas com CNPJ representavam sete em cada dez estabelecimentos religiosos
formalizados no país, enquanto católicas eram 11% do total. Um salto e tanto em
relação a 1998, primeiro ano contemplado na pesquisa. Os locais de culto evangélicos
somavam, então, 26,6 mil, ou 54,5% do todo.
Como Bolsonaro, Milei também explora a ideia de,
além do poder dado pelas urnas, ter um mandato divino. O argentino, que estuda
a Torá, costuma citar frases bíblicas e às vezes o faz em hebraico. Assim como
Bolsonaro, Milei se declara católico, mas vai a eventos evangélicos com
frequência. Não se conhece nenhum conselheiro de Milei que seja Testemunha de
Jeová. Para eles, o fim do mundo está próximo. Para os argentinos, o inferno
ainda dura mais pelo menos quatro anos, mas pode acabar antes.
Ø Milei
propõe emergência pública na Argentina até 2025
O presidente da Argentina, Javier Milei, enviou ao
Congresso Nacional, nesta quarta-feira (27), a 'Lei de Bases e Pontos de
Partida para a Liberdade dos Argentinos', informou a agência Télam.
No projeto de lei, Milei solicita ao Congresso que
declare emergência pública em matéria econômica, financeira, fiscal,
previdenciária, de segurança, defesa, tarifária, energética, sanitária,
administrativa e social até 31 de dezembro de 2025.
O texto também estabelece que o prazo para a
emergência poderá ser prorrogado pelo Poder Executivo nacional pelo prazo
máximo de dois anos.
Ao longo do projeto, são estabelecidas reformas
tributárias, suspende-se a aplicação da fórmula para atualização dos benefícios
sociais, e autoriza-se a imposição de sanções a protestos, entre outras
medidas.
A Argentina está atualmente enfrentando uma grave
crise econômica, com a inflação disparando em 120% desde o início de 2023.
Milei é um defensor da dolarização da economia e de uma política externa
voltada para Israel e os Estados Unidos. Ele também é contra a adesão aos BRICS
e a cooperação com o Brasil, China, e Rússia.
Fonte: Página 12/DCM/Brasil 247
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